O revolucionário Maximilien Robespierre dizia que seu negócio era combater o crime, não governá-lo
Na história, situações há em que personagens do Estado, da política ou da cultura se veem obrigados a assumir papéis que os levam a adotar medidas radicais, daquelas que mudam o curso dos acontecimentos. Analisados em perspectiva histórica, crescem ou diminuem conforme as respostas que deram aos desafios de seu tempo, desde antes dos gregos e romanos até os modernos, como Galileu, Napoleão, Roosevelt, De Gaulle, Mandela, todos aliás grandes leitores de livros de história.
Hoje, é a ex-revolucionária Dilma Rousseff que se acha sob a luz dos holofotes. Nas pesquisas da mídia e nas torcidas desorganizadas desta "sociedade civil" com lideranças precárias, vem se tornando mais difícil a posição da herdeira de um modus político neopopulista e desse ethos nacional insuportável, em que a noção de República é manipulada e banalizada por agentes desqualificados. A presidente com sua caneta vai assumindo papel inesperado de agente moralizador para repor nos trilhos a máquina desgovernada de um imenso Estado patrimonialista, familista, clientelista. Difícil a faxina, pois ainda chafurdamos na transição de uma ditadura explícita para essa ordem constitucional confusa e pseudodemocrática em que personagens, dejetos e, sobretudo, mentalidades herdadas dos vários tempos históricos, da Colônia e do Império às Repúblicas de 1889 a 1988, permitem qualificar o modelo atual de democracia de meia-confecção.
Como jamais ocorreu nestas plagas a consolidação de uma sociedade capitalista de contrato democrática, muito menos uma revolução popular, tem-se (temos?) que conviver com o tal "presidencialismo de coalizão". Ou seja, com essa invenção pervertida que jogou o País no patamar mais baixo do brejo da Conciliação, ideologia arquitetada pelas elites imperiais escravocratas do século 19 e imperante até hoje.
O resultado é o aprimoramento desse centralismo obtuso com imposição de normas jurídicas e de formas de comportamento que revelam o atraso de nossas instituições jurídico-políticas e, como decorrência, preocupante conformismo coletivo nacional. É nesse quadro que soam como radicais a atuação da promotoria com nova visão social e política, as ações rigorosas da Polícia Federal, de jornalistas e de lideranças iracundas da sociedade civil que tentam romper com um passado nefasto para a implantação de uma nova democracia.
Ora, impõem-se de fato maior transparência na gestão da coisa pública, efetiva representatividade dos políticos e rigor no combate à impunidade, com a prisão dos corruptos de variada ordem. Paralelamente, urge requalificar os quadros administrativos, políticos, educacionais, científicos, diplomáticos e militares. Nesse processo, como dizia Martin Luther King, "não me preocupa o grito dos violentos, os corruptos e os desonestos, mas o silêncio dos bons".
A presidente Dilma crescerá - ou não - nessa encruzilhada desafiadora. Na construção de uma nova sociedade civil, reunida em torno de liderança não populista e não coalescente, poderá ela ter papel histórico se não se acomodar docilmente à tal "coalizão", nociva por reaquecer hábitos que suporíamos ultrapassados pelo governo anterior, que se propunha "popular".
O governo de Dilma parece firme. Pois "nunca antes na história deste país" três ministros de Estado caíram em tão pouco tempo - por razões distintas - e outros passaram a ser fiscalizados de perto. Dado que a Polícia Federal está submetida ao Ministério da Justiça e o ministro é subordinado à Presidência, torna-se claro que a presidente terá papel decisivo com sua pouca disposição para conciliar a qualquer preço com partidos da base, sobretudo com os recheados por agentes do fisiologismo tacanho, no caldo de oportunismo boçal.
Poderá ela, se quiser, passar à história como aquela que pôs fim à "transação cordial" pouco séria que nos denigre interna e externamente. E o vice-presidente, Michel Temer, se escolher o lado correto e controlar com mão forte seu partido, poderá jogar papel importante na reconfiguração nacional em curso. Ou ficar fora da história.
Agora é torcer, pois com a corrupção à solta e em conjuntura mundial de crise, não há Estado que aguente. A violência urbana (arrastões em restaurantes e praias, latrocínios e sequestros) e a violência rural (agravada nos últimos anos), mais o retorno da inflação, exigem medidas fortes. Pois os simpáticos "capitães da areia" de Jorge Amado, malformados e famintos, migraram para as cidades e uma multidão deles engrossa as estatísticas de assaltantes e de jovens motoboys mortos em nossas travadas anticidades.
A história ensina que, desde antes da Revolução Francesa, o pânico coletivo pode sempre ocorrer e ser "contagioso", como se verifica na Inglaterra, no Chile, na Síria e outros países. Quanto a nós, somos filhos da Revolução Francesa ou do quê? A expectativa é que a presidente Dilma não passe por cima da lição do revolucionário francês Maximilien Robespierre, o Incorruptível, em seu célebre discurso de 1794: "Sou talhado para combater o crime, não para governá-lo".
Carlos Guilherme Mota, historiador, professor emérito da FFLCH da USP e professor titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é autor de História e Contra-História (Editora Globo)
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