O cenário parece muito distante do Brasil. Uma classe média em ascensão nem sempre pode ser vista como âncora de estabilidade política, uma leitura usual na análise dos resultados eleitorais que levaram à reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2006 e à eleição de Dilma Rousseff para a Presidência no ano passado. Este ano, só há um país da América do Sul contaminado pela onda de insatisfação que ecoa em paisagens tão díspares como Egito e Reino Unido, Espanha e Bahrein.
É no Chile que grassa o espectro da revolta. A pátria por excelência da classe média latino-americana, o país onde a pobreza regrediu de 40% a 13% da população em 20 anos de democracia em que a alternância jamais significou ruptura de políticas, está exausta de seus governantes.
O primeiro sinal foi em 2009, quando o direitista Sebastián Piñera encerrou a experiência de quatro mandatos presidenciais seguidos da Concertación, a aliança de democratas cristãos e socialistas que desenvolveu políticas de proteção social sem alterar em sua essência os postulados liberais do ponto de vista econômico que marcaram o regime de Pinochet.
Educação como porta para a ascensão tem limite
Piñera já assumiu com um capital político reduzido. O crédito inicial que recebeu pouco foi além de seus próprios eleitores. No fim do ano passado, logo após seu maior triunfo - o perfeito resgate de 33 mineiros aprisionados por um desabamento -, conseguiu em pesquisas de opinião 55% de aprovação popular, apenas quatro pontos percentuais a mais do que obteve nas urnas um ano antes. No último levantamento, publicado na segunda-feira pela mídia chilena, sua aprovação ficou em 27%.
Por enquanto Piñera lida com uma insatisfação capitaneada pelos estudantes universitários e secundaristas, que já produziu a morte de um menino de 16 anos por balas dos "carabineros", a polícia militar. Mas a possibilidade de contágio para outros setores é grande. "Sem respostas efetivas rápidas do governo, esta onda vai crescer no próximo verão. E pode se espalhar para trabalhadores, mulheres e todos os setores organizados. Há uma ameaça de levantamento social e o governo já percebeu isso", comenta a cientista política Marta Lagos, chilena, diretora da ONG Latinobarometro, especializada em pesquisas de opinião comparadas no continente.
Está em dados compilados pelo próprio governo a chave para se entender o problema. O investimento das próprias famílias na educação de seus filhos é substancial em um país onde há muitos anos o gasto público em educação é reduzido. Mutilar o papel do Estado no setor foi o último ato de Pinochet como presidente, sancionado pelo ditador por decreto um dia antes de deixar o cargo, em março de 1990. Na universidade, segundo Marta Lagos, uma família aplica cerca de US$ 40 mil para obter um diploma.
Com 52% dos chilenos enquadrados nos segmentos médios de renda, uma avalanche de jovens procurou o ensino como a grande ferramenta de mobilidade social em um país onde o sentimento de injustiça na distribuição de renda é o mais forte do continente. Segundo a pesquisa do Latinobarômetro do ano passado, apenas 12% dos chilenos consideram a distribuição da riqueza adequada. No Brasil, essa percepção é compartilhada por 21%. Na Venezuela, por 38%.
Quando Pinochet começou seu poder autocrático, nos anos 70, apenas 9% dos chilenos estavam na Universidade. Em 2003, eram 37%. Hoje, a porcentagem ronda 40%, segundo dados do Ministério da Educação do Chile. Nesta década, tal evolução convive com o endividamento crescente da população emergente. Uma pesquisa feita um ano atrás pelo Banco Central chileno mostrou que a relação do total da dívida familiar frente à renda anual dos lares do país passou de 35,4% para 59,9% entre 2000 e 2009. A sensação de vulnerabilidade aumenta ao se levar em conta que 68% da renda familiar chilena provém de salários.
A magia da educação como a grande porta para a mobilidade social aparece com nitidez na pesquisa feita pelo Instituto Nacional da Juventude, outro órgão governamental, em 2009. A principal razão apontada por jovens entre 15 e 29 anos para estarem estudando foi "melhorar a situação econômica", com 35,8% das citações. "Trabalhar no que mais gosta" foi citado por 31,7%. Mas a mesma pesquisa mostrou que, na faixa de população entre 24 e 29 anos, portanto recém-saída da faculdade, nada menos que 51,2% - maioria absoluta - afirma que trabalha em uma função "pouco ou nada relacionada" com o que estudou.
"É claro que a educação é uma ferramenta para a mobilidade social, o problema é quando ela se torna o único instrumental para isso. Vemos aqui legiões de pessoas cada vez mais vulneráveis, fazendo dívidas para três ou quatro gerações em universidades privadas que não preparam para o mercado de trabalho. Oferecem cursos como "criminologia e prevenção de riscos", que não se sabe bem o que é", comenta Marta Lagos.
No sábado, Piñera reuniu-se pela primeira vez com os líderes estudantis, no Palácio de la Moneda, enquanto gerenciava o resgate dos mortos em um acidente aéreo que matou uma equipe de televisão e canalizou a atenção da opinião pública do país. Há razões para ceticismo sobre mudanças concretas. Há cinco anos, um movimento de estudantes secundaristas parou as cem maiores escolas do país e fez com que a presidente socialista Michelle Bachelet se comprometesse com reformas em cadeia nacional de rádio e televisão. Os estudantes pediam o fim da lei pinochetista e a presidente reformou a legislação, depois de dois anos de debate no Congresso. Foi uma resposta avaliada por Marta Lagos como limitada e lenta. No caso de Piñera, trata-se de um conservador obrigado pelas circunstâncias a promover uma renovação. Corre o risco de abrir um gigantesco fosso entre suas palavras e a ação.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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