Por falta de melhor nome para definir o jeito comprometido de operar a engrenagem pública no próprio interesse, o chamado mensalão vai finalmente ser dissecado e avaliado de acordo com a participação de cada um dos que não conseguiram isentar-se das conseqüências. Pelo visto, nenhum dos 38 nomes apresentados à opinião pública pela justiça se livrará da mancha senão com a ajuda do tempo. A marca é indelével. Entre muitos dos chamados às falas, desde a estrondosa CPI que não melhorou a reputação parlamentar incumbida de revirá-la pelo avesso, no primeiro mandato de Lula, o eleitor vai se deparar com nomes que lhe lembrarão uma democracia que se deixou ludibriar pela ilusão de que a quantidade ilimitada de partidos políticos viesse a beneficiá-la.
Ainda bem que não se evaporou a aparência negativa das vinte e tantas legendas admitidas a pretexto de harmonizar incompatibilidades pessoais e escamotear outros interesses de mais peso do que o currículo de cada um deles. Com 29 partidos, ainda falta muito ao Brasil para alcançar a marca olímpica dos 40 ladrões que Ali Babá, herói infantil até hoje, em astuciosa manobra, prendeu na caverna. As histórias infantis e juvenis de sucesso universal não se amarram a datas, ao contrário da História que se escreve com a inicial maiúscula, carimbada como farsa por Karl Marx sempre que se repete.
O mensalão legou aos políticos a desconfiança residual e um certo sentimento de culpa pela CPI no que lhes diz respeito, embora pudesse também ser um passo maior do que as pernas na direção da democracia negligente, que muitas vezes se comporta como os gatos que, uma vez escaldados por água quente, ficam com horror à água fria.
Pelo que lhe dizia respeito, a oposição teve medo de contribuir para o golpe de misericórdia, ao isentar de culpa a democracia relativamente recente, que mandara às urtigas a diferença indispensável entre interesse público e interesse pessoal. A social-democracia e avulsos oposicionistas desistiram de ir às últimas. Ficar nas penúltimas traz do anonimato histórico a frase de Clemenceau, cabelos e bigodes brancos para impor respeito, não é mais lembrada, mas continua viva graças às palavras com que fulminou aquele patriotismo do seu tempo como o último refúgio da canalhice. Nada de pessoal, apenas circunstancial.
Antes de ser cobrado, à época mais quente do mensalão, a oposição se deu por satisfeita relativamente ao que lhe pareceu apenas amostragem da arte de formar maioria politicamente heterogênea por fora e comprometedora por dentro. A perda do pudor cívico era oficialmente tolerada pela expectativa governamental, que percebia tudo que se passava e, como se viu e vê, não deixou de passar. O zelo oposicionista e o desconforto oficial não consideraram a hipótese de se entenderem enquanto era tempo. Desde então, a confiança na democracia foi limitada aos efeitos legais para os que se deixaram apanhar em flagrante por falta de espaço para voltarem atrás.
O mensalão, com o tempo consumido na troca de opiniões pessoais, esfriou como tema de debate e se distanciou da prioridade política de chegar às causas localizadas no vazio das reformas políticas enroladas como bandeiras depois das solenidades cívicas. O vazio deixado pelas reformas localizadas à margem do tempo, à espera de solução política mais alta do que a disputa de votos, move o Congresso ao estilo de feira-livre no vazio que o isolou como um plenário à espera do imponderável.
O mensalão chega ao fim como episódio que tem mais a ver com as causas que o geraram do que solução para o exercício de governo: as conseqüências batem à porta de uma democracia equivocada e sem eloqüência para reanimar as reformas e sem o cuidado de evitar as tentações desatentas à linha invisível que deveria separar interesse público de tudo que o comprometa.
Sem perder de vista o mensalão, não se faz democracia com trinta partidos: o que se vê parece não ter fim ao alcance dos olhos.
Wilson Figueiredo, jornalista
FONTE: JORNAL DO BRASIL
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