Examinando o persistente mal-estar provocado pelas teses de Maquiavel, Isaiah Berlin, filósofo britânico, argumentou que a novidade do pensador florentino não residia na constatação de que os maus prosperam. Nem na advocacia da violência e da fraude na conquista do poder. Quem repudia Maquiavel - porque vê nele apenas a bíblia dos bandidos e a defesa do divórcio entre a ética e a política - ignora a novidade à qual Isaiah Berlin se referiu e; portanto, a fonte do próprio mal-estar.
Essa novidade consiste no fim do monismo - segundo o qual há somente uma realidade e apenas uma ética. Maquiavel tomou patente o contraste entre a moralidade pagã da Roma antiga e a alternativa: a nossa costumeira moralidade judaico- cristã kantiana. Segundo o código pagão do Império Romano, a conduta humana deveria colocar-se acima do bem e do mal como hoje os entendemos, pois a ética estava a serviço do social. Maquiavel dá o passo seguinte: a arte do assassinato em massa tem método e você precisa aprendê-lo se deseja sucesso nessa prática.
Maquiavel, como Aristóteles, acredita ser a atividade política intrínseca à natureza humana. Um indivíduo isolado pode afastar-se desse processo, mas a maioria da humanidade não pode fazê-lo. E, para ambos os filósofos, a vida da comunidade determina os deveres morais de seus membros. Para Maquiavel, a política e a ética pertencem à mesma esfera: o que é "político" é "moral". Ele rejeita a ética cristã a favor de outro universo, isto é, a favor da sociedade disposta a matar na busca de seus próprios fins. Ele não sofre de conflitos morais. Fez sua escolha e a revela por escrito: amava a pátria mais do que a própria alma. Também não se preocupa com a ambição oportunista de alguns indivíduos. Só a grandeza da nação lhe importa.
Os valores de Maquiavel podem ser abomináveis, mas ele não é cínico, nem hipócrita. Acredita no que diz. Sabe que os crimes que advoga são crimes e não tenta defendê-los, como Hegel e Marx tentaram fazer. Não procura racionalizar suas ações, como fizeram os seguidores e políticos que adaptam suas doutrinas, alegando que os fins justificam os meios. Como Maquiavel, esses políticos estão dispostos a cometer crimes. Mas, ao contrário de Maquiavel, procuram justificar suas ações como se fosse possível torná-las compatíveis com a moralidade comum. Ao contrário de seus seguidores, Maquiavel não defende teorias abstratas. Nem o casuísmo que justifica crimes alegando sua necessidade para a harmonia futura.
Maquiavel não se ocupa apenas de situações excepcionais. A verdade terrível que desvenda é a existência de dois mundos, de dois conjuntos de virtudes, sendo que um não é necessariamente superior ao outro. Não temos razões para supor que a justiça e a misericórdia - ou a sabedoria e a santidade, ou a felicidade e o conhecimento, ou a liberdade e a igualdade - coincidam. E não podemos nem mesmo supor que sejam compatíveis.
Situações que põem fins igualmente sagrados em contradição, sem permitir uma escolha puramente racional, ocorrem não apenas excepcionalmente - como no encontro entre Antígona e Creonte mas fazem parte da condição humana. O público e o privado não se separam. E Maquiavel nos choca porque força uma tomada de consciência e nos leva mais além da hipocrisia do dia a dia. Ao mostrar a existência de duas moralidades, aponta para a necessidade de escolhas angustiantes entre fins incompatíveis na prática.
Nicolau Maquiavel escolheu a moralidade pagã da Roma antiga. Marina Silva escolheu a moralidade comum do mundo ocidental depois de Cristo.
Políticos mal-intencionados acusam Marina de ter escolhido a religião no lugar da política. Erram. Ela escolheu a moralidade do cidadão comum. Ela carrega a bandeira de cada um de nós que desejamos a política limpa de corrupção e tramoias hipócritas. Exatamente porque ela responde a uma demanda popular, como demonstram os milhões e milhões de votos que obteve nas últimas eleições presidenciais, sua Rede sairá do papel.
Uma das críticas a Marina alega que sua roupa segue a "estética da santa". A ironia deve vir de quem ainda não teve a oportunidade de admirar de perto a elegância impecável e discreta de Marina, elegância comparável a de Aung San Suu Kyi, a birmanesa que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1991.
Quem lhe critica a voz um pouco aguda procura obscurecer o discurso articulado, pronunciado com clareza e sem titubeios, em português gramaticalmente impecável. Um discurso que ainda não tem o fascínio do à-vontade de FHC, pois o ex- presidente leva a vantagem de quem se dirige ao público há mais de 50 anos. Mas Marina supera tanto a demagogia de Lula quanto a fala enfática e autoritária de Dilma.
Os oportunistas lembram que a ética pregada por Marina se assemelha à que o PT defendia há três décadas e acreditam j que o fracasso ético do PT deverá repetir-se. Quem assim argumenta comprou a tese maquiavélica segundo a qual, ao escolher o código cristão-kantiano, você terá de abrir mão da sociedade produtiva. Segundo a qual quem desacredita dos métodos maquiavélicos não deveria participar da política e, se insistir, será ignorado ou destruído.
Os injustos proclamam que não podemos saber onde está Marina, porque ela diz que não é de direita nem de esquerda. O eleitor poderia negar que o PT tenha aderido ao conservadorismo, pois, embora se dizendo de esquerda, ainda assim teme as mudanças das reformas indispensáveis ao progresso?
Erram os que dizem que Marina Silva não toma posições. Ao contrário, ela as explica com firmeza: em defesa do meio ambiente, da proteção das minorias, da ética na política. Ela escolheu o que era bom em Aristóteles e jogou fora a moral pagã.
Sou ateia, mas professo a ética kantiana e bato palmas para Marina Silva.
Ele escolheu a moralidade pagã da Roma antiga. Ela, a do cidadão comum.
Professora Titular da FGV /S. Paulo
Fonte: O Estado de S. Paulo
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