- O Globo
Não sei quanto a vocês, mas eu gostaria de um pouco de silêncio. E nele iria passear pelas obras dos escritores que acabaram de nos deixar. Eles foram em bloco, em mortes sequenciais, e o espaço que ficou foi grande demais. O pressuposto é que eles estariam sempre por aí, afinal todos tinham vários projetos, livros em andamento, poesias prontas, colunas escritas.
O Brasil vive um ano intenso com Copa, eleição, crise, incertezas. A economia definha, e a energia entra em curto-circuito. A Copa nos exauriu em vários sentidos. Atrasou o trabalho, anulou dias do calendário e nos deixou uma certa tristeza. A derrota para a Alemanha foi apenas uma parte dela. Pior que o 7 a 1, que ficará conosco pelas décadas vindouras, há o amargo de olhar para os dirigentes do futebol e não vislumbrar neles nem uma única esperança.
A eleição vai frustrar o debate. Ela será um teatro, no qual os marqueteiros farão filmetes e construirão frases para serem declamadas pelos candidatos; exércitos pagos ocuparão a mídia social; e o governo, no palanque, fingirá que governa. Pouca chance de haver o que realmente precisamos: um bom e sincero debate sobre o Brasil. Não devia ser assim. Devia ser tempo de reflexão e escolha. Mas os marqueteiros, como os dirigentes do nosso futebol, dominam o jogo.
Por tudo isso seria melhor visitar os prolíferos personagens do povo brasileiro que se apresentam do ponto inicial em que o jovem Alferes Brandão Galvão, na Ponta das Baleias, é morto sem nada saber. “Onde fica mesmo o Brasil, sabendo-se que certamente isso aqui não é o Brasil e pode o bom soldado ignorar onde fica o Brasil?”
Certa vez, João Ubaldo escreveu uma coluna que começava assim: “Ah, nem conto a vocês como era, fico com medo de acharem que estou mentindo. Mas sei que não estou, quando lembro o dia se esgueirar por entre as frestas dos grandes janelões do casarão térreo em que morávamos, e eu, menino de oito ou nove anos, pulando afobado da cama, para mais uma vez me embarafustar pelo meio dos livros. Quase febril, ansioso como se o mundo fosse acabar daí a pouco, eu nem sabia com quem ia me encontrar e aonde viajaria, em nova manhã encantada”. Quem, na infância, teve a mesma febre matinal sabe de que tipo de prazer João Ubaldo falava. E agora a vontade é que o tempo pare um pouco, com suas exigências e agendas repletas, para que se possa ficar com os livros de Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves, Ivan Junqueira.
O que deu no Céu para convocar tantas letras brasileiras de uma vez só? É uma festa? Uma academia celeste? Se for, será uma festa e tanto. Imagina só o que fará Ariano Suassuna no palco, com o microfone na mão, defendendo a pureza do verbo. No princípio, era o verbo. Quem o ouviu falar sabe que nada havia de igual. Ocupava o espaço todo e contava seus casos e filosofava em frases torrenciais. De repente, quando menos esperava, você estava rindo de suas próprias crenças. O palestrante Suassuna era capaz de converter qualquer um. Uma vez, ao chegar para ouvi-lo, vi logo que haveria confusão. O programa impresso pela empresa que o oferecia, para deleite da plateia, vinha escrito: Welcome Coffee e Coffee Break. No meio dos dois estrangeirismos, o nome de Ariano Suassuna. Imagina só o que fez o cabra com aquele papel na mão? Ele se esparramou sobre o deslize para defender o português cristalino e puro; sertanejo de estilete em punho. Épico.
O que pode nos alegrar é saber que todos eles morreram bem vivos. João Ubaldo escrevia novo livro. Eu tive o privilégio de receber dele alguns e-mails. Poucos. Em maio, escreveu. “Com um treco cardiorrespiratório, fui internado na quinta e estou saindo hoje. Não foi infarto, minhas coronárias estão bem, mas eu quase morri.” Em seguida avisava. “Por enquanto, continuo bastante vivo.”
Ariano Suassuna também esteve mal, recuperou-se, retomou seus muitos projetos. Rubem Alves dava a impressão de que escreveria eternamente. E Ivan, discreto, lapidava suas poesias.
Ficamos sem eles. A sensação é de um empobrecimento intelectual súbito. Há livros que duram uma temporada. Alguns, os grandes, escrevem obras que ficam. Não sei quanto a vocês, mas eu queria um dia de fazer nada. Apenas para me embarafustar por certos livros vendo o sol se esgueirar pela janela.
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