- O Estado de S. Paulo
A mais recente safra de pesquisas de intenção de voto indica que o eleitorado brasileiro vai encontrando forma mais elegante do que a ofensa pessoal e mais eficaz do que a vaia para demonstrar o seu descontentamento com o governo Dilma Rousseff.
Ainda faltam quase três meses para a eleição, mas impressiona o virtual desaparecimento da diferença entre as intenções de voto na atual presidente e no principal candidato da oposição, Aécio Neves, num cada vez mais provável segundo turno. Essa diferença, que era de 27 pontos porcentuais no Datafolha de fevereiro, é hoje, segundo a última pesquisa do mesmo instituto, de apenas 4 pontos porcentuais. A tendência é consistente com a piora na avaliação do governo e com o aumento da rejeição à presidente-candidata.
Quando a comparação se faz com o outro candidato da oposição, Eduardo Campos, a tendência é a mesma, embora a redução da diferença seja menor.
O quadro eleitoral em formação põe por terra a ideia ventilada pelo ex-presidente Lula de que a insatisfação com o governo Dilma se concentra num grupo social restrito, a chamada "elite branca".
Não é ódio o sentimento que move o crescente descontentamento político-eleitoral. Fosse ódio, as oposições já apareceriam nos calcanhares de Dilma nas intenções de voto para o primeiro turno, pois o eleitor que odeia quem está no poder logo cristaliza o seu voto em quem possa derrotá-lo. Trata-se de um sentimento mais brando: um desejo de mudança que ainda não sabe quem quer, mas dá sinais de começar a saber quem não quer.
As pesquisas tampouco refletem um suposto cerco da "mídia conservadora" ao governo. Não tem faltado oportunidade para a presidente se comunicar com a população pelos meios de comunicação de massa. Se alguém se pode queixar do tempo de exposição na TV na fase de pré-campanha são os candidatos da oposição, que travam a disputa sem a vantagem de estar na Presidência da República, foco natural de atenção da mídia. Que culpa tem a imprensa se a economia está parando, a inflação segue alta e o mercado de trabalho esfria?
A imagem de um governo popular submetido ao cerco de uma "elite odienta" e de uma "mídia conservadora" é uma figura recorrente na retórica utilizada pelo ex-presidente Lula. Ele a empregou pela primeira vez em resposta à crise do "mensalão". Voltou a usá-la recentemente, na convenção que oficializou a candidatura de Dilma Rousseff. Em momentos de dificuldade política, para efeitos dramáticos, recorre ao paralelo histórico com o segundo governo de Getúlio Vargas, cujo trágico desfecho completa 60 anos no próximo dia 24 de agosto.
No imaginário lulista, o golpismo udenista ressurge encarnado no PSDB, que como a velha UDN, por não conseguir ganhar no voto, pretenderia chegar ao poder por vias tortas, ao arrepio da vontade popular. Essa narrativa faz lembrar a famosa frase de Marx segundo a qual a História ocorre duas vezes: uma como tragédia e outra como farsa.
É inegável a inclinação não democrática da ala ferozmente antigetulista da UDN. Basta lembrar o que escreveu Carlos Lacerda ainda antes de Vargas anunciar sua candidatura às eleições de 1950: "O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato a presidente da República. Candidato, não deve ser eleito.
Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar". Para interromper o mandato de Vargas a UDN conspirou com setores das Forças Armadas e da imprensa. O partido não reconhecia a legitimidade do "velho ditador", a despeito de sua volta ao poder pelo voto, e apontava a suposta ameaça de imposição por Vargas, em aliança com Perón, de uma "República sindicalista", que subverteria a ordem liberal da Constituição de 1946 e elevaria o risco de o País pender em direção ao bloco soviético.
O paralelo histórico com o presente é uma farsa. A legitimidade dos mandatos recebidos por Lula e Dilma nunca foi questionada. Os militares estão nos quartéis e atuam rigorosamente dentro dos limites que a Constituição estabelece. O PSDB, como partido de oposição, moveu-se sempre dentro da legalidade e com moderação, sendo não raro criticado por isso. A imprensa é hoje mais plural e politicamente independente do que jamais foi na História brasileira. As elites diversificaram-se e abriram-se a novos grupos, acostumando-se a lidar com governos de distintas cores políticas. As densas paranoias da guerra fria dissiparam-se.
Com todos os seus defeitos, temos hoje uma democracia melhor que no passado. A queda da presidente nas pesquisas não resulta de uma orquestração de pequenos grupos poderosos contra o governo, da mesma maneira que a piora de todos os indicadores da economia brasileira não é produto de uma "conspiração dos mercados". Ambos os fenômenos respondem a um processo típico em regimes democráticos e em economias de mercado, duas criações humanas que costumam andar juntas: um ciclo vicioso de deterioração das expectativas por perda de confiança no governo.
Para o eleitor, eleições são tanto um julgamento sobre o passado (estou melhor do que estava?) quanto sobre o futuro (tenho uma expectativa realista de que estarei melhor do que estou?). A estratégia petista para outubro é convencer o eleitor a julgar o governo Dilma como base em todo o período de 2003 a 2014, para obscurecer o fato de que os últimos quatro anos não sustentam a retórica triunfalista dos anos Lula.
Será isso suficiente para recuperar a esperança em "mais futuro, mais mudança"? Ou o PT deixará o futuro e a esperança de lado e martelará a tecla do passado e do medo, pintando o PSDB como a reencarnação da UDN e o governo de Dilma como a cidadela a defender em nome dos interesses do "povo"?
Acontece que, numa democracia, sem restrições ao direito de votar, o eleitorado é expressão do povo. E se uma nova maioria eleitoral começa a formar-se, como dizer que ela é contra os interesses do povo?
Sergio Fausto é Superintendente Executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
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