- O Globo
Amorte duplamente indesejada e quase simultânea de João Ubaldo e Ariano Suassuna nos faz pensar sobre a importância da literatura nordestina na construção da identidade do país. Se recuarmos no tempo, veremos que no século XIX um escritor como Machado de Assis, que é um cânone de nossa língua, produzirá toda a sua obra extraordinária em torno do Rio de Janeiro, então capital do país.
Derrubada a monarquia, sepultada a República Velha com Getúlio Vargas, esboça-se o primeiro esforço de construção de uma sociedade mais urbana e industrializada. Curiosamente, nesse mesmo período surgirá o grande ciclo regionalista, com autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e a obra também literária de Gilberto Freyre. Esses autores voltam a sua atenção e o foco de sua criação para seus ambientes e habitats naturais de origem agrária e nordestina. Cria-se uma nova identidade nacional até então desconhecida do próprio país e do mundo.
Tolstoi nos ensinou que em literatura “se queres ser universal, escrevas sobre tua aldeia”. Esses autores irão mergulhar no âmago de suas infâncias e na estrutura muitas vezes ainda feudal dos donos da terra e seus empregados e agregados. Irão assim desconstruir a origem econômica dessas relações sociais de um Brasil que durante séculos se apoiou na escravidão e no latifúndio.
Penso que foi fundamental para essa revolução a plasticidade do português falado no Nordeste. Quando me refiro à língua, penso naquela falada pelo povo, e não pelos acadêmicos e filólogos.
Não há dúvida que o português falado nesses nove estados que parecem constituir uma nação dentro do Brasil é muito mais fluído, mais rico em nuances, expressões, apelidos e aliterações que o português do Sul e Sudeste, mais contido, próximo da norma culta. Essa liberdade linguística me parece ter sido essencial na construção dessa nova literatura mais próxima do povo.
Além disso, a região salientou aspectos importantes de nossa nacionalidade como a religiosidade mística, a tradição das festas juninas e dos presépios, a simbologia poderosa do cangaço, as comidas típicas e uma música rica como o frevo, o xaxado e o forró.
Mesmo escritores nordestinos como Graciliano Ramos, ao se mudarem para o Rio de Janeiro continuaram a escrever sobre sua realidade natal. O gênio mineiro de Guimarães Rosa — ainda que represente uma ruptura com o grupo regionalista por empreender uma revolução também na linguagem — vai escrever sobre o sertão que “está em toda parte”.
Curioso assinalar que outro meio de expressão artística fundamental que é o cinema foi buscar no Nordeste sua inspiração modernizadora. “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte; o canônico “Deus e o diabo na Terra do sol”, de Glauber Rocha; e “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos, são expressão disso. É esse Brasil nordestino, esse Cinema Novo, que será exibido e premiado no exterior.
Resta uma indagação importante. Quando conseguiremos traduzir proporcionalmente em termos culturais o Sul e o Sudeste do país? São Paulo, por exemplo, é uma megalópole capitalista fascinante. Talvez até hoje, o melhor filme sobre a cidade tenha sido “São Paulo S/A”, de Luís Person, realizado ainda em 1965. Há um outro país urbano e industrial que ainda não foi descoberto culturalmente para nós mesmos. Claro que autores como Mário de Andrade, Érico Verissimo, Drummond, Mário Quintana, Clarice Lispector, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca são exemplos desse Brasil ainda desconhecido; mas falta muito a ser dito.
A homenagem a João Ubaldo e a Ariano Suassuna — autores fundamentais para a compreensão de nosso país e nosso povo — é também uma oportunidade para introduzir esse debate.
Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco
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