- O Estado de S. Paulo
Anistiar parlamentares ou seus chefetes é uma afronta ao princípio basilar da moralidade
Discute-se hoje o caixa 2: seria crime ou prática tolerável, pelo costume político? Chegou-se a minimizar, no julgamento do mensalão, o caixa 2 como fato irrelevante, chamado eufemisticamente de “recursos não contabilizados”.
Trata-se, contudo, de conduta prevista no Código Eleitoral, artigo 350, como crime de falsidade ideológica na forma omissiva, consistindo o delito em “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar (...), para fins eleitorais”. A norma tutela a fidedignidade, a transparência, da contabilidade nas eleições. Visa a revelar quanto se arrecadou, a proveniência do dinheiro e como se gastou, para controle do abuso do poder econômico.
Segundo a legislação vigente por ocasião dos pleitos de 2010 e 2014 – Lei n.º 9.504/97, alterada em 2015 –, duas diversas disciplinas regravam, respectivamente, a eleição majoritária (presidente, governador e senador) e a proporcional (deputados federal e estadual). Essa lei, em seu artigo 28, § 1.º, determinava que as prestações de contas dos candidatos às eleições majoritárias deveriam ser feitas por comitê financeiro, enquanto, de acordo com o § 2.º do mesmo artigo, as prestações de contas dos candidatos às eleições proporcionais caberiam ao comitê financeiro ou ao próprio candidato.
Todavia o artigo 21 da mesma lei estabelecia haver plena solidariedade entre o candidato a cargo majoritário ou proporcional e a pessoa por ele designada para administrar financeiramente a campanha. Estatuía, então, o artigo 21: “O candidato é solidariamente responsável com a pessoa indicada na forma do art. 20 desta Lei pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha, devendo ambos assinar a respectiva prestação de contas”.
Havia, portanto, na forma da legislação então incidente, o dever de ser feita uma prestação de contas com a indicação dos valores sabidamente recebidos e de quem, bem como das importâncias despendidas. Se assim não fosse, caracterizava-se o crime na forma omissiva, o qual constitui um não fazer o devido, tendo por objeto do querer o não realizar aquilo que reconhecidamente cabia ser feito. Todas as quantias recebidas cumpria ser contabilizadas, assim como os gastos havidos. A não contabilização constitui uma omissão relevante para fins eleitorais.
Por que se omite o registro de entrada e saída de dinheiro?
Em geral há uma coincidência de interesses. De um lado, a empresa pode pretender esconder que contribui em eleição, afastando novos pretendentes; pode, também, buscar ocultar o fato para não se indispor com candidatos concorrentes.
De sua parte, o candidato tem interesse em receber dinheiro não contabilizado para suprir gasto a se realizar por fora, no pagamento de compromissos não passíveis de ser registrados, como diárias pagas a vereadores ou a presidentes de associação de bairro na condição de cabos eleitorais. O candidato precisa de dinheiro por fora para despender por fora. Mas pode-se também deixar de contabilizar para esconder o uso de uma fortuna considerável na eleição, em valor excessivo, além do permitido. Essa forma constitui o primeiro grau do caixa 2. Há o crime de falso, sem conexão com nenhum outro tipo de delito, cuja pena pode ser de um dia a três anos de reclusão.
Mas a contribuição não contabilizada de uma empresa pode ter sido um meio de distribuição de propina, como retribuição por apoio político prestado pelo deputado, por exemplo, na aprovação de medida provisória. Aí continua o caixa 2, mas com uma agravante: a origem do dinheiro é ilícita.
Sobressai, no caso, nesse grau mais elevado de reprovabilidade do caixa 2, o crime de corrupção passiva, com a percepção de vantagem indevida para a prática de ato funcional. A propina, ao ser distribuída em período eleitoral, pode constituir, ademais, manobra tendente à ocultação do caráter ilícito da contribuição, disfarçada em doação eleitoral por fora, caracterizando eventualmente lavagem de dinheiro.
E há finalmente uma forma mais grave, objeto de julgamento recente e importante no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do pagamento de propina por meio de contribuição eleitoral oficial (caixa 1), devidamente contabilizada. Configura-se, na hipótese, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O fato delituoso precedente – corrupção – constitui a fonte geradora das vantagens ilícitas, criando-se, então, relação genética entre esse crime em seus resultados financeiros e o fato posterior de ocultação ou dissimulação dessa origem, por via de doação oficial.
A ação delituosa de “lavagem de dinheiro” consiste, então, em ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, movimentação ou os valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime, visando a dar-lhes aparência de legalidade.
Assim, o comportamento consiste em tentar escamotear o caráter ilícito do bem, de forma a permitir que dele se usufrua, promovendo sua reintrodução no mercado como se lícito fosse.
Ao se fazer doação legal com dinheiro de propina, correspondente, por exemplo, a parcela de sobrepreço de contrato de estatal com empreiteira, transforma-se importância suja em valor limpo, utilizando a Justiça Eleitoral como lavanderia. A aprovação das contas pelo Tribunal Eleitoral apenas comprova o sucesso da operação de branqueamento do valor contaminado pela corrupção. O dinheiro sujo vem a ser reintroduzido no mercado mediante uso indevido da Justiça Eleitoral.
Pior é fazer pagamento fictício a gráficas para depois delas receber a importância dada.
Por via desses delitos são atingidos valores do processo democrático. Mas, agora, parlamentares anistiarem a si mesmos ou a seus chefetes, em face desses fatos, é uma afronta ao princípio da moralidade, um dos pilares da República.
* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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