No fim de março, o Brasil tinha 14,2 milhões de pessoas sem emprego. Mas havia felizardos com dois empregos no serviço público, um ambiente à prova de demissões e, em um caso que não é singular, um deles conseguiu com esse acúmulo dois proventos. Pode-se imaginar que a dupla jornada se deva à escassa remuneração de ambas as funções, mas não eram dois salários de fome - somados, eles ultrapassaram R$ 33,7 mil, o teto dos vencimentos dos servidores e remuneração do presidente da República. Engana-se quem acredita que isso é uma ilegalidade. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito de um funcionário público de Mato Grosso ganhar mais que o presidente do país, por uma espantosa margem de 10 votos favoráveis e um contra, o do ministro Edson Fachin.
A decisão do STF ocorreu quase que simultaneamente a fatos que revelam que o corporativismo da Justiça, onde estão os funcionários mais bem remunerados do Estado, se exerce sem disfarces em um mundo completamente à parte do Brasil. No mesmo dia, quinta-feira, o governo central registrou seu maior déficit para um mês de março nos últimos dez anos. Está a caminho uma reforma da Previdência que obrigará a esmagadora maioria dos brasileiros a trabalhar mais para receber a mesma coisa ou menos quando se aposentar. E, na mesma semana da decisão do STF, foi aprovada na Câmara uma reforma trabalhista que modifica direitos e retira proteções, várias delas de fato indevidas, dos trabalhadores. O Judiciário não só passa ao largo do espírito das reformas, como reafirma, quase como escárnio, seus privilégios.
O STF apenas deu guarida, com base em um inciso do artigo 37 da Constituição, à farra de vencimentos de desembargadores, procuradores e juízes, que há muito embolsam mais que o teto, por cujo cumprimento o Supremo deveria zelar. Recentemente, os magistrados do Paraná investiram sua fúria contra o jornal "Gazeta do Povo", obrigando-o a responder a dezenas de processos em muitas cidades do Estado por ter simplesmente divulgado os salários que constavam do site oficial do Judiciário - havia não poucos vencimentos acima de R$ 50 mil e não era raro os que extrapolavam R$ 100 mil. Essa tem sido a regra, e não a exceção, pelos sucessivos relatos da imprensa ao longo dos anos. O Judiciário considera isso um direito legítimo e o STF é o guardião maior das leis, logo assim será.
Procuradores do Ministério Público, inclusive os que estão na linha de frente da luta contra a corrupção, fazem parte dessa elite bem remunerada. Nada menos de 97% dos procuradores paulistas têm remuneração acima do teto, ao adicionar a seu salário, que já é muito superior à média do próprio serviço público, gratificações, indenizações e auxílios de toda a espécie ("Folha de S. Paulo", 28 de abril). No Estado do Rio, não à toa falido, magistrados e procuradores têm direito a mais de uma dezena desses penduricalhos, que se tornam ainda mais escandalosos diante da penúria dos Estados e do déficit público em ascensão, que ameaça a solvência da União.
Em vez de exibir um bom índice de produtividade, que ao menos desse um laivo de justificativa para os salários elevados, o Judiciário se notabiliza pela lentidão que, na prática, significa a denegação de Justiça. Mas, com ou sem ela, está entre os mais custosos do mundo. No caso dos procuradores paulistas, a remuneração embolsada equivale a mais que o dobro da recebida pelos seus congêneres suecos, a praticamente o dobro da dos alemães e maior que a de portugueses e espanhóis.
O serviço público brasileiro é avesso à meritocracia e, em sua bagunça salarial, sequer preza a hierarquia. Não há argumento, lógico ou jurídico, que justifique que um servidor do Mato Grosso receba mais que um presidente da República, cujas responsabilidades são infinitamente maiores. No caso da decisão do STF, buscou-se o inciso XVI, que garante acumulação remunerada de cargos para professores e profissionais da saúde, ou de professor com outro cargo técnico e científico - onde entram os magistrados, procuradores e suas aulas em instituições públicas. Mas quanto à remuneração, o inciso IX é claro. Remuneração, subsídio, "proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas vantagens pessoais ou de outra natureza" não poderão exceder o teto. Ao dar a interpretação mais vantajosa para seus pares, o STF ratifica, em um momento sumamente impróprio, a insensibilidade social do Judiciário.
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