- Folha de S. Paulo
O uso do poder para o bem comum e o cálculo amoral de como conquistar e manter poder andam juntos
Os desejos do público nem sempre coincidem com o real interesse do público. Por exemplo: a população está -com razão- preocupada com a segurança, e a resposta espontânea para esse problema são punições mais severas, inclusive a pena de morte. Contudo, as melhores evidências apontam que esse não é um caminho eficaz para reduzir a violência.
Nessa situação, o que um político pode fazer? Ele pode abertamente ignorar o desejo popular, ou tentar persuadir o eleitorado a mudar de ideia. Em ambos os casos, não terá sucesso. O tempo da política é muito diferente do tempo de uma campanha educacional ou cultural, que pode levar décadas. Ou então ele pode surfar a opinião pública e, uma vez no poder, implementar as medidas que realmente funcionam.
A relação com o público sempre será pautada pela distância entre os desejos do eleitorado, o que é tecnicamente possível e o que é de fato desejável. As pessoas não querem ouvir a verdade: não querem saber o tempo real de uma obra e muito menos das limitações do orçamento, elas querem uma sociedade melhor em tudo e agora. Talvez tolerem uma ou outra verdade se vier devidamente embalada. O político precisará usar isso. E por mais bem intencionado que ele seja, essa boa intenção só será relevante se ele chegar lá.
É por isso que, no mundo todo, político tem fama de mentiroso. O uso do poder para o bem comum e o cálculo amoral de como conquistar e manter o poder caminham juntos. O primeiro não tem
como existir sem o segundo.
Esse sistema pode "funcionar" enquanto existir uma distância entre a percepção popular e o dia a dia da política. Hoje, essa distância está sendo reduzida pela tecnologia (gravadores, câmeras, redes sociais) e pela politização da sociedade. A ideia de que tudo deve ser vigiado o tempo todo ganha corrência, levando alguns representantes até a tomarem a dianteira e filmarem o próprio gabinete.
O ímpeto é compreensível neste momento de ressaca da corrupção generalizada. Mas o exercício do poder sempre necessitará de algum sigilo. A transparência plena e irrestrita, assim como a cobrança constante de coerência, podem ser superficialmente virtuosas, mas inviabilizam o tipo de negociação e de decisão (para além de partidos, ideologias e moralidades) das quais a sociedade depende.
Às vezes isso é levado a um excesso. Como foi, por exemplo, a campanha presidencial de 2014, na qual Dilma se elegeu acusando os outros candidatos de quererem fazer exatamente aquilo que ela fez no primeiro dia de seu segundo mandato. Nesse caso, perdeu-se qualquer vínculo entre o que o candidato fala para se eleger e o que ele faz uma vez eleito. E, se é assim, a campanha serve para quê?
Portanto, verdade e transparência seguem sendo valores importantes, que operam como contrapesos da tendência natural da política de degenerar em puro interesse próprio. Contudo, não são possíveis nem desejáveis como valores absolutos. Num mundo de pessoas imperfeitas e de visão estreita, não é virtude agir como se fossem todos agentes plenamente racionais e de mente aberta.
Um futuro de representantes vigiados e acuados por um eleitorado que acredita piamente na pureza de suas convicções; esse sonho nos jogaria no pesadelo do imobilismo ou da guerra civil. A politização, para ser benéfica,
tem que ser acompanhada de uma maior capacidade de olhar de fora da própria ideologia e da própria tribo.
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