domingo, 8 de julho de 2018

Cacá Diegues: Na porta do gol

- O Globo

O principal eleitor de Obrador foi Trump e sua fúria antimexicana, sua insanidade que fez o cidadão do país ao sul do Rio Grande escolher alguém disposto a enfrentá-lo

Perdemos. Mas nem por isso temos do que nos envergonhar. Há muito tempo não víamos uma seleção brasileira tão cheia de qualidades. E tão parecida com o Brasil. Temos dificuldade em combater o infortúnio, sempre deixamos a bola escapar na porta do gol. Há de haver outros Neymares, tomara que a gente não desista. Nunca. 
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A eleição no México do novo presidente Andrés Manuel López Obrador, que seus eleitores chamam, com carinho e muitos significados, de AMLOve, é mais significativa do que muita gente pensa. Não se trata apenas de uma virada do país para a esquerda democrática, como também a potencial consagração de uma nova ordem política no futuro da América Latina.

Pela primeira vez, desde o ocaso da Revolução Mexicana do início do século XX, um político e seu partido, o Morena, retomam as teses sociais daquela esquerda, sem autoritarismo, apelos populistas e apoios suspeitos. Não se trata de construir um capitalismo de compadrio, como já aconteceu e acontece em alguns países de nosso continente; nem de inventar uma democracia cabocla demagógica e de fachada, como algumas do passado e do presente latino-americano. Mas de experimentar o nosso próprio jeito de ser, de ser o que somos, para o bem de todos.

O principal colaborador de Obrador na economia é Carlos Urzúa, um professor que já foi seu secretário no governo da Cidade do México. Urzúa avisou que não pretende fazer nada de diferente do que ele e AMLO faziam na administração municipal. Uma declaração de confiança nas forças econômicas que, desde alguns anos, estão tirando o México da miséria social.

O principal eleitor de Obrador foi Donald Trump e sua fúria antimexicana, sua insanidade colonialista que fez o cidadão do país ao sul do Rio Grande escolher alguém disposto a enfrentá-lo. Num de seus discursos de campanha, o novo presidente fez ironia certeira com a insensatez de Trump, ao lembrar que, se ele quer construir um muro para evitar os mexicanos, esse muro pode servir também para evitar os americanos invasores que, no passado, tiraram na porrada a Califórnia, o Novo México, a Flórida e o Texas do México, senhor original dessas terras. Uma observação parecida com a do grande ator seu patrício, Gael García Bernal, a uma revista dos Estados Unidos.

Resta torcer para que essa virada política no México dê certo. No Brasil, em situação parecida, quando deixamos a ditadura sonhando com um futuro democrático, acabamos criando leis e regras que, graças aos compromissos de nossos libertadores com militares moderados, políticos espertos e democratas conservadores, impediram uma reforma mais radical do regime, em direção a uma justa democracia política, econômica e social.

A Lei de Anistia de agosto de 1979, por exemplo, criada por aqueles militares moderados, promulgada pelo último general-presidente e garantida por todos os governos posteriores, de Collor e Itamar, de FHC e Lula, de Dilma e Temer, nos impede de conhecer o que se passou de fato durante a ditadura, para que se faça justiça e nada daquilo volte a acontecer. Ela livrou a cara daqueles que prenderam, torturaram e mataram nosso jornalista, escritor e cineasta Vladimir Herzog, em 1975, encenando ridiculamente um suicídio na prisão, não apenas improvável como também impossível.

Agora, a Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de condenar, pela primeira vez, o Estado brasileiro pelo assassinato de Herzog, finalmente tratado como o que ele foi, um crime contra a humanidade. Para que dure e seja bem-sucedido, tomara que AMLOve, o amor atual dos mexicanos, não sofra esse tipo de constrangimento. 
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O prefeito do Rio de Janeiro continua nos surpreendendo. A gente acha que já viu tudo, o seu descaso pela cidade, a sua falta de amor pelo Rio, seu povo e sua cultura, a sua falta de compaixão ao propor pintar a favela, o seu desrespeito por nossos cidadãos mais pobres, e de repente ele acrescenta a essa lista mais um capítulo de desatino cívico.

Desta vez, Marcelo Crivella nos brinda, esta semana, com uma declaração imperial, mais típica do século XIX, antirrepublicana e antidemocrática, num discurso solene, em cerimônia na prefeitura: “Só o povo evangélico pode mudar este país; os políticos sabem que só nós podemos dar um jeito no Brasil”.

Ou seja, voltamos ao poder da Igreja sobre o Estado e a sociedade, não importa qual seja a Igreja em questão. Não tenho, nem é justo que tenha, nada contra a religião evangélica. Os evangélicos são brasileiros que têm o direito de se expressar espiritualmente através da fé que escolherem. Mas, se o prefeito continuar nessa onda, falta pouco para assistirmos a uma nova Inquisição religiosa, capaz de colaborar com a violência que ele deixa rolar pelas esquinas da cidade.

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Cacá Diegues é cineasta

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