O presidente eleito Jair Bolsonaro tem dado a preocupante impressão de que possui insuficiente domínio sobre alguns assuntos relevantes que pretende tratar assim que começar seu governo. O caso mais recente foi sua declaração em que disse ter a “intenção” de rever a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. “É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional, e no lado dos índios dando royalties e integrando o índio à sociedade”, disse Bolsonaro, aparentemente desconhecendo o fato de que a demarcação dessa área foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, em processo já transitado em julgado – portanto, sem possibilidade de recurso.
Bolsonaro e sua equipe de transição não podem alegar ignorância a respeito desse rumoroso caso, que mobilizou a opinião pública na época. A reserva Raposa Serra do Sol, onde vivem 19 mil indígenas de 5 etnias, foi demarcada em 1998 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e homologada em 2005 por decreto do presidente Lula da Silva. Com esse decreto, ordenou-se a retirada dos não índios da área, de cerca de 1,7 milhão de hectares de terra contínua. Desde a demarcação havia conflitos entre os índios e agricultores do Sul do País que haviam se instalado na região para plantar arroz naquelas terras públicas, sob incentivo do governo de Roraima.
A demarcação não refreou a atividade agrícola. Ao contrário, outros rizicultores se juntaram aos que já estavam na região para tentar consolidar um enclave na reserva, de cerca de 100 mil hectares, contestando na prática a configuração contínua da área destinada aos índios.
O caso foi parar no Supremo, que, por 10 votos a 1, decidiu que as terras da reserva tinham de ser contínuas, conforme o decreto original. Além de encerrar o conflito sobre a demarcação, o acórdão do Supremo, em seu aspecto mais relevante, estabeleceu o que se pode chamar de “estatuto das reservas indígenas”.
Segundo a decisão, válida para todas as reservas, os índios não podem constituir um “Estado” nas terras demarcadas, que continuam a pertencer à União. Assim, se autorizado pelo Congresso, o governo federal pode continuar a explorar as riquezas minerais e os recursos hídricos da região. Além disso, o Exército e a Polícia Federal podem entrar na área sem terem que pedir permissão à Fundação Nacional do Índio (Funai) ou às comunidades indígenas que ali vivem. O Supremo também decidiu que a União pode criar serviços públicos na região, como redes de comunicação e vias de transporte. Por fim, aos índios não é facultado explorar os recursos energéticos, garimpar, cobrar pedágios ou arrendar terras. Só eles podem pescar, caçar ou exercer atividades agropecuárias na reserva.
Além de todas essas restrições, o Supremo determinou que as reservas já demarcadas não poderão ser ampliadas. E, não menos importante, a decisão reiterou que a Funai pode criar reservas de acordo com demandas legalmente válidas, mas não como resposta à alegada “dívida histórica” do País em relação aos índios.
O presidente eleito Jair Bolsonaro, a julgar por suas declarações, não tinha familiaridade com o acórdão do Supremo – e, no afã de manter aceso um dos principais temas de sua campanha eleitoral, expôs seu desconhecimento sobre o caso. Pouco depois, provavelmente alertado de que não seria possível rever a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol por decreto, Bolsonaro mudou o tom: “Quem sabe um dia o Supremo acorde para isso e nos ajude a fazer com que essas reservas venham a ser exploradas com racionalidade, obviamente em benefício do próprio povo indígena”.
Com Bolsonaro ainda na condição de presidente eleito, confusões como essa não têm consequências práticas. Mas casos assim prenunciam uma Presidência inclinada a rompantes destinados apenas a manter a militância mobilizada. Os resultados desse tipo de demagogia populista nunca são bons para o País.
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