- Valor Econômico
Presidente eleito avança sobre o apito do Supremo
A julgar pela estreia de sua 'live' semanal, o presidente eleito pretende manter acesa a chama do antilulismo. Se imagina ser um recurso contra resultados de seu governo, não tardará a se convencer do contrário, seja qual for a decisão final sobre a prisão em segunda instância. A contribuição do ex-presidente para Jair Bolsonaro termina com sua eleição, mas deixa lições para um antagonista que terá de compensar o déficit na arbitragem de conflitos.
Ainda que Luiz Inácio Lula da Silva tenha se investido das esperanças dos que acreditavam ter chegado ao poder pela primeira vez e Jair Bolsonaro o faça em nome daqueles que se sentiram desalojados ou traídos pelo lulismo, a posse de ambos é marcada pela expectativa de que seriam capazes de por fim às negociatas de Estado.
Lula afrontou o PT ao colocar uma trinca do mundo empresarial/financeiro no governo e se firmar como árbitro de uma Esplanada que abrigava Meirelles e Mantega, Marina e Rodrigues, Furlan e Lessa. Levou mais de ano para ver eclodir o primeiro escândalo com a queda do subchefe de assuntos parlamentares da Casa Civil.
Bolsonaro não afronta seu partido, por inexistente, e respondeu, com seu ministério, à plataforma de campanha. Mas ao se deparar com os primeiros furos na blindagem anticorrupção que o elegeu, antes mesmo da posse, Bolsonaro se revela uma liderança popular sem a mesma capacidade de arbitragem sobre interesses, mais do que antagônicos, fagocitários de seu entorno.
A arbitragem se fará mais necessária entre Tereza Cristina (Agricultura) e Ernesto Araújo (Itamaraty) do que entre a ministra e o titular do Meio Ambiente (Ricardo Salles). E, principalmente, entre os interesses de Paulo Guedes em tramitar suas reformas no Congresso e aqueles da lupa de Sergio Moro, por ora engavetada, sobre os malfeitos do bolsonarismo.
Mas é a convivência, num mesmo governo, de um epicentro de informações nas mãos de Moro, de um fortalecido aparato militar que detém estruturas como o Centro de Informações do Exército (Ciex), de um ministro da Economia que fez carreira na gestão de investimentos e de filhos comprometidos em destravá-los, que tem a capacidade de corroê-lo por dentro.
O ministro da Justiça de Bolsonaro é filho, em grande parte, de Márcio Thomaz Bastos, seu antecessor no cargo durante o governo Lula. Sem uma Polícia Federal mais independente e as iniciativas que promoveram o cruzamento de informações entre os órgãos de fiscalização e controle do Estado não existiriam mensalão ou Lava-jato. As ambições de Sergio Moro, no entanto, tendem a afrontar interesses enquanto a retomada da carreira de advogado de Marcio Thomaz o levou a acomodá-los.
Lula começou seu governo com a intenção de envolver os militares na logística do Bolsa Família e o concluiu com a soma de 37 operações de garantia da lei e da ordem, da segurança pública no Rio à hidrelétrica de Tucuruí. Dezesseis anos depois, um ex-capitão ganharia a Presidência da República ao transformar a lei e a ordem em mantra de campanha e está prestes a ter seu próprio governo transformado numa GLO. A percepção de que a presença de militares é a garantia de que o governo não desande se disseminou até mesmo na esquerda.
O entorno de Lula era PT puro-sangue (Dirceu, Palocci, Gushiken, Dulci e Wagner). A despeito do assento de Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e de Gustavo Bebiano (Secretaria-Geral da Presidência) no Planalto, é a onipresença dos generais Augusto Heleno (Segurança Institucional) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), nas diretrizes, e do vice Hamilton Mourão na opinião da caserna para consumo público, que predomina.
Da mesma maneira que Lula, e ao contrário de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, Bolsonaro também inicia o governo sem maioria parlamentar. Para aprovar uma agenda não coincidente com os interesses do Congresso, o PT vergou-se à ideia de que é preciso se lambuzar para fazer história. Na estreia, Lula entregou duas únicas pastas a aliados de fora do campo da esquerda, Transportes (PL) e Turismo (PTB). Depois escancarou para o grupo parlamentar que brilharia no mensalão, para, finalmente, armar a cama do MDB no governo de sua sucessora.
Bolsonaro tem mais convergência com o Congresso, na pauta de costumes e no desmonte das instâncias regulatórias. Ainda assim, viu-se na contingência de entregar ministérios de peso como Agricultura, Saúde, Cidadania, Turismo, além da Casa Civil para parlamentares do DEM, MDB, PSL. Não precisa nem ter ambição de fazer história. Mesmo que se limite à aprovação da agenda Paulo Guedes, o presidente eleito terá dificuldades de fazer seu governo descer a rampa de mãos limpas. Não é uma coincidência qualquer que a posse de Lula e Bolsonaro tenha o senador Renan Calheiros em desabalada campanha pela presidência de sua Casa.
Hugo Chávez e Fidel Castro foram as atrações internacionais da posse de Lula. Dezesseis anos depois, a de Bolsonaro é marcada pela ausência de representantes de Venezuela e Cuba e a presença do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Lula fez a posse mais popular da história, com 150 mil pessoas, vindas em caravanas do país inteiro, na Esplanada. E estreou na expectativa de que mobilizaria a sociedade para empurrar sua agenda. Depois teve que enfrentar um número ainda maior de pessoas que saíram às ruas para pedir sua prisão em grande parte porque o lulismo perdeu a arbitragem para o Judiciário.
Ainda que conte com audiência virtual, parece improvável que Bolsonaro repita a multidão de 2003. Mas a avidez com que avança sobre o Supremo, a começar pela revisão da terra indígena Raposa Serra do Sol, demonstra que o presidente eleito desconhece o apito final da toga. O alheamento parece convergir com o recolhimento pretendido pelo presidente da Corte, Dias Toffoli. A começar pelos filhos, "porta-vozes não oficiais do pai", na definição de Mourão à "Crusoé", não lhe falta motivo para desejá-lo. Sobram razões para a caserna ter a expectativa de herdar este apito.
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