sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Guilherme Amado - A esquerda perdida

- Revista Época

O barata-voa tem sido uma constante nas legendas, que parecem incapazes de formular uma proposta alternativa e sólida a ponto de voltar a inspirar confiança

Semanas depois de deixar a cadeia, Lula marcou uma conversa com um cientista político, alguém que durante anos aconselhou não só o PT, mas também boa parte dos quadros da política tradicional. Aturdido pelo cenário adverso para seu partido, Lula perguntou ao interlocutor: “Onde foi que erramos?”. Incrédulo, o cientista político não levou o papo muito além. O episódio é mais um a mostrar como Lula, o PT e a esquerda estão perdidos.

Quando estava preso, o comentário no partido era que todos estavam de certa maneira presos com o ex-presidente. Solto, tem demorado a entender o que se passa no país, o que se passa no PT e, o mais importante, como dar a volta por cima. Principal partido de oposição, a sigla completou 40 anos com sinais de cansaço.

Não conseguiu até hoje sair do fosso da Lava Jato, erra no Congresso e não consegue colocar candidaturas competitivas de pé para outubro. O barata-voa tem sido uma constante também em outras legendas da esquerda — a retroescavadeira de Cid Gomes (PDT) foi o símbolo mais forte —, que parecem incapazes de formular uma proposta alternativa e sólida a ponto de voltar a inspirar confiança. Na corrida para 2022, a esquerda já larga algumas posições atrás.

Perto de completar quatro meses solto, Lula mostra a cada manifestação pública que não aprendeu a ser humilde nem na cadeia. Diz que fazer uma autocrítica seria dar munição ao inimigo, como se os processos contra ele, os números da economia e sua surpreendente inabilidade política não tenham sido por si só mais eficazes que qualquer disparo adversário. Suas entrevistas são uma mistura de rancor com pitadas de populismo à esquerda, que desanimam quem esperava ver nele a mesma postura do líder que em 2002 uniu classes e conseguiu fazer um pacto contra a desigualdade social.

Não aceita que outras siglas, a exemplo do PDT e do PSB, não se engajem na causa. Perguntado outro dia se toparia fazer como Cristina Kirchner e disputar a Presidência como vice de outro candidato, em nome de uma vitória, só riu.

Enquanto o partido segue centrado em seu líder máximo, a condução da escolha dos candidatos a prefeito vai mal. Apesar dos esforços de Lula, Fernando Haddad não quer ser candidato em São Paulo, porque sabe que, ganhando ou perdendo, deixaria a corrida presidencial. As outras opções para a cidade perigam relegar ao partido um quarto ou quinto lugar na disputa.

A capital — única das regiões Sul e Sudeste em que o PT, se o candidato for Haddad, tem força para ir para o segundo turno — ou não terá candidato ou terá somente para ocupar espaço, sem chance concreta. Nas demais praças expressivas, o quadro não é muito diferente. Em Recife, por exemplo, Lula segue usando a possibilidade de uma candidatura de Marília Arraes, prima de Eduardo Campos, para pressionar o PSB. Em troca de o PT apoiar a candidatura de João Campos, filho de Eduardo, a prefeito da capital pernambucana, o PSB teria de fazer o paulista Márcio França apoiar o partido na disputa pela prefeitura de São Paulo. Mas o diretório de Pernambuco não tem essa força, e há o risco de o PSB ir sem o PT, que ficaria isolado em uma das principais capitais nordestinas.

No Congresso, o partido também segue errando. Está prestes a passar a perna no PDT para tentar manter o domínio da liderança da minoria na Câmara, como foi em 2019, quando Jandira Feghali foi a líder e manteve boa parte dos nomeados do PT. Pelo acordo feito no ano passado, desta vez seria o PDT. O mais grave, entretanto, vem ocorrendo na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News.

O partido não tem se concentrado na investigação sobre os disparos maciços e ilegais de mensagens na campanha de 2018, mas sim no jogo político. Tentam convocar, por exemplo, o secretário de Comunicação de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, por causa de outro escândalo que nada tem a ver com o objeto da CPMI. Em depoimentos importantes, seus parlamentares não têm tido o preparo mínimo. Quando as sessões são deliberativas e há o risco de que sejam votados requerimentos convocando Lula e Dilma Rousseff — o que, de fato, não tem cabimento diante do tema da CPMI — eles simplesmente faltam, para que não haja quorum. E assim nada avança.

O uso de desinformação e a incitação ao ódio, aliás, têm sido uma estratégia que só faz igualar parte da esquerda à direita extremista. Recentemente, ao falar para o UOL, Lula concordou com os ataques de Jair Bolsonaro a jornalistas, deturpando fatos da cobertura política e, bem ao gosto dos populistas, evocando o nazismo para se referir ao trabalho de um veículo jornalístico.

Em outro partido, o PCdoB, Orlando Silva, deputado federal e pré-candidato à prefeitura de São Paulo, compartilhou no domingo 16 um vídeo de 2017, em que Bolsonaro era vaiado, como se fosse daquele dia, no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Alertado sobre as imagens serem antigas, ignorou e só foi apagá-las uma semana depois, sem retratação. Já havia centenas de compartilhamentos.

Não é só nessa seara que outras siglas da esquerda têm tido movimentos erráticos. No ano em que completa 15 anos de registro definitivo na Justiça Eleitoral, o PSOL, nascido de uma costela do PT, parece estar voltando ao corpo original. Colou sua atuação na do partido que lhe deu origem e perdeu a criticidade sobre os erros do governo petista, que combateu durante todos os anos de Lula e Dilma Rousseff. O ex-presidente se tornou vítima e a Lava Jato não passou de um arroubo jurídico para dizimar a legenda. No Rio de Janeiro, Benedita da Silva, descrita até outro dia por psolistas como uma das maiores entusiastas do “Partido da Boquinha”, como a legenda é chamada por seus críticos no estado, será vice de Marcelo Freixo.

O PSB vai tentando construir um caminho próprio para 2022, ainda na expectativa de que Joaquim Barbosa ou outro outsider tope disputar pelo partido. Entretanto, à medida que não consegue, a legenda de Miguel Arraes vem aos poucos perdendo densidade e voltando ao tamanho que tinha antes de Eduardo Campos, um conjunto de agremiações regionais, sem alavancagem nacional.

Na semana que começa no domingo 1º, os partidos de esquerda vão se reunir em Brasília para debater um eventual caminho que possa punir ou ao menos constranger Jair Bolsonaro por ter compartilhado um vídeo convocando protestos contra o Congresso. Vai ser difícil conseguir algo mais forte além de mais alguns repúdios públicos. Quatro anos depois de o PT deixar o poder, a esquerda, tragada pelos erros do partido, ainda não fez o dever de casa para voltar a ter a voz de outros tempos.

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