- O Estado de S.Paulo
O afrouxamento monetário precisa vir e ficar como opção de política monetária
Essa proposta de emenda à Constituição (PEC) surgiu em 1.º de abril na Câmara dos Deputados, onde recebeu o n.º 10/2020. Originalmente se limitava à área fiscal federal. Estabelece que, “em razão de emergência de saúde pública (...) decorrente de pandemia, a União adotará regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações (...), nos termos definidos” nessa emenda. E o “Executivo (...) poderá adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras que assegurem (...) competição e igualdade de condições a todos os concorrentes, dispensada a observância” de vários dispositivos legais que usualmente regulam esses processos.
Ou seja, há esse estado de calamidade pública, seu combate é uma guerra, e é dada à União essa “arma” que facilita a gestão orçamentária, o que explica a referência a essa PEC como a do “orçamento de guerra”.
Na mesma linha guerreira, “bazuca” é o termo com que tem sido chamada outra PEC cuja minuta foi apresentada ao Congresso pelo presidente do Banco Central (BC) e incluída na PEC 10/2020. Essa outra PEC propôs a adoção de medida moderna de política monetária, o relaxamento quantitativo da oferta de dinheiro, internacionalmente chamado de quantitative easing, ou QE.
Há quase um ano, com base na experiência do banco central dos EUA, conhecido como Fed, na crise de 2008, e na do Banco Central Europeu (BCE) em 2012, passei a pregar a adoção do QE no Brasil. O Fed voltou ao QE neste ano e o BCE, no ano passado. Vários países em desenvolvimento também passaram a usá-lo.
Num QE, um banco central, via expansão dos meios de pagamento, compra no mercado financeiro títulos privados ou públicos com o objetivo de regular a liquidez desse mercado, e também para estimular o crédito em situações de esfriamento da atividade produtiva, com fraca resposta desta a quedas da taxa básica de juros, a Selic no Brasil. Na crise de 2008 nos EUA o QE foi também largamente utilizado para adquirir hipotecas imobiliárias, injetando mais recursos nas instituições que as detinham e permitindo também a ampliação de financiamentos desse tipo. O Fed ainda tem cerca de US$ 1,5 trilhão (!) dessas hipotecas. No seu site (www.federalreserve.gov) também há artigo sobre o impacto favorável do QE na geração de empregos.
Meu objetivo era, e continua sendo, enfrentar com o QE o baixíssimo desempenho da economia, agora negativo. E neste caso o foco do BC deveria ser na aquisição de hipotecas imobiliárias, gerando mais recursos para financiamentos habitacionais e para a construção civil, marcada por alta geração de empregos. E, também, via compras de créditos do BNDES de financiamentos à infraestrutura.
Dados os maiores gastos públicos ligados à covid-19, a situação das contas fiscais governamentais se agravou ainda mais. E também porque vem caindo a receita tributária, por conta da nova e forte recessão em andamento, o que também recomenda o QE, que atua apenas no âmbito das contas monetárias.
A minuta da PEC do QE foi incorporada à PEC do “orçamento de guerra” e esta passou pela Câmara, pelo Senado e voltou à Câmara. Nesse caminho recebeu alterações que balizaram a ação do BC, algumas delas, felizmente, retiradas. No último dia 4, a versão atual foi aprovada em primeira votação na Câmara. Mas mesmo nessa versão permaneceram modificações, algumas das quais inconvenientes.
No seu artigo 7.º, II, é exigido que os ativos privados a serem adquiridos “em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro” (...) acreditada pelo BC.
Ora, essa forma muito restrita de avaliação tomaria tempo, e realizada por essas agências também teria custo elevado. Pelo que sei, elas são a Fitch, a Moody'’ e a Standard & Poor’s. E mais: no § 1.º do mesmo artigo é dito que “será dada preferência à aquisição de títulos emitidos por micro, pequenas e médias empresas”. Nada contra isso, mas parece-me algo inconsistente com o referido recurso a essas enormes agências internacionais que examinam riscos. E, em qualquer caso, por que recorrer apenas a esse cartel de agências de avaliação?
Vi também que a PEC 10/2020, se aprovada, ficará automaticamente revogada ao fim do atual estado de calamidade. Ora, não cabe ver o QE apenas como uma simples “bazuca” a ser usada na situação atual. Eu o vejo enorme, algo como um porta-aviões de transporte com cargas monetárias para uso em situações de baixa liquidez e/ou desempenho muito fraco da economia. Nunca soube que países que já adotaram o QE tivessem de recorrer a reformas constitucionais para aplicá-lo.
* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e HARVARD), professor sênior da USP e Consultor econômico e de ensino superior
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