quinta-feira, 7 de maio de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Aliança despudorada e ruinosa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Nociva em tempos normais, a maneira despudorada com que parcela não desprezível dos congressistas costuma decidir sobre o destino do dinheiro público pode ser ruinosa para o País no momento em que os recursos humanos, materiais e financeiros deveriam ser canalizados prioritariamente para salvar vidas ameaçadas pela covid-19. Sem nenhum pejo, porém, e desconectada da grave realidade dos brasileiros, essa parcela – agora amiga íntima do governo do presidente Jair Bolsonaro e sua parceira em transações com recursos orçamentários – agiu decididamente para que a Câmara dos Deputados desfigurasse o projeto de auxílio financeiro para Estados e municípios e nele incluísse benefícios para várias categorias de servidores.

A versão aprovada pelo Senado já favorecia algumas categorias especiais. Era o máximo que se podia conceder para estimular o trabalho dos profissionais que cuidam de vítimas da covid-19 sem comprometer a necessária austeridade financeira. Mas, com a ativa participação do líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), e do líder do PP, deputado Arthur Lira (PP-AL), a lista foi ampliada para atender a interesses eleitorais específicos de um determinado grupo político.

Mais uma vez, a perniciosa combinação de fisiologismo, populismo e corporativismo venceu, desta vez com o apoio decisivo, muito mais do que simples conivência, do governo cujo chefe se elegeu prometendo abandonar a velha política do toma lá dá cá. Coincidência ou não, muito provavelmente não, no dia seguinte à decisão da Câmara, o Diário Oficial da União publicou a nomeação de Fernando Marcondes de Araújo Leão para dirigir o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), um dos cargos mais cobiçados por parlamentares do Nordeste por causa das dimensões do orçamento desse órgão federal e da abrangência de sua atuação.

É a primeira nomeação para um cargo dessa importância como consequência da aliança que o presidente Jair Bolsonaro fechou com o grupo de deputados que, em lugar de princípios e programas, têm prioritariamente interesses políticos e eleitorais a serem atendidos pelo governo federal. Não por acaso o nomeado foi indicado pelo PP do deputado Arthur Lira. Esse partido vem tendo papel importante na aliança com a qual Bolsonaro procura assegurar o mínimo de votos no Congresso para não ver seu cargo sob risco. Esse mesmo grupo sinistro tenta agora adonar-se da estrutura do Ministério da Agricultura, ainda nas boas mãos de Tereza Cristina.

Ao desfigurar o projeto de ajuda financeira aos Estados e municípios, a decisão da Câmara praticamente demole uma das condições essenciais negociadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O congelamento de vencimentos dos servidores, salvadas pouquíssimas exceções, era a contrapartida para a ajuda aos Estados e municípios no combate à pandemia. Guedes foi derrotado com a colaboração de integrantes da base do governo.

Também Alcolumbre perdeu, pois a Câmara alterou os critérios para a repartição do auxílio federal, estimado em R$ 60 bilhões, e reduziu a desproporcional participação do Amapá, Estado que o senador representa, no bolo. Como foi alterado no mérito pela Câmara, o texto voltará para o Senado.

A lista aprovada pelo Senado de carreiras de servidores que ficariam fora do congelamento de vencimentos incluía militares das Forças Armadas, servidores dos serviços de segurança pública dos Estados e profissionais de saúde. Emenda apresentada na Câmara pelos líderes do governo e do PP estendeu o benefício para as Polícias Federal e Rodoviária Federal, agentes penitenciários, técnicos e peritos criminais, agentes socioeducativos, garis e assistentes sociais. Até policiais legislativos, que atuam na Câmara e no Senado, saíram ganhando. Outro destaque preserva os aumentos dos professores. Os deputados retiraram do projeto a restrição de que os aumentos salariais seriam autorizados somente para carreiras diretamente envolvidas no combate ao coronavírus.

Enquanto isso, estima-se que praticamente três quartos (ou 75%) dos assalariados do setor privado terão sua remuneração cortada.

• O vírus pegou uma indústria já frágil – Editorial | O Estado de S. Paulo

Sem ilusões, é preciso reconhecer o mau estado da indústria – e da economia nacional – antes da chegada do novo coronavírus. Não se trata de menosprezar o impacto da pandemia, mas de olhá-lo sem perder a perspectiva. Primeiro ponto: os danos econômicos ocasionados pela covid-19 foram sem dúvida consideráveis. Com o isolamento social, a redução do consumo, as mudanças nas condições de trabalho e as novas incertezas, a produção industrial caiu 9,1% de fevereiro para março. Com essa queda, aproximou-se do nível de agosto de 2003 e ficou 24% abaixo do recorde alcançado em maio de 2011. Houve perdas em todas as grandes categorias de produtos e em 23 dos 26 segmentos empresariais cobertos pela pesquisa. Em relação a março de 2019 o recuo foi de 3,8%. Isso conduz ao segundo ponto e à indispensável perspectiva realista.

Com a queda em relação a março do ano passado, pela quinta vez seguida foi negativo o confronto com igual mês do ano anterior. Em outras palavras, desde a comparação de novembro de 2019 com novembro de 2018 esse tipo de verificação tem mostrado recuo. O balanço recém-divulgado pelo IBGE aponta uma piora inegável em março, mas toda a sequência é indisfarçavelmente ruim. Os números encontrados a partir de novembro/novembro são -1,7%, -1,3%, -0,9%, -0,3% e -3,8%. As informações publicadas até fevereiro, antes, portanto, dos primeiros impactos da pandemia, mostravam de forma inequívoca a fraqueza da maior parte da indústria.

Não se pode, portanto, falar de uma recuperação interrompida pela chegada do novo coronavírus. Pode-se falar de efeitos desastrosos para a economia, de enormes problemas para a maioria das empresas, de sacrifício para os trabalhadores e de empobrecimento de milhões. Acima de tudo, é preciso levar em conta as perdas de milhares de vidas e os lamentos de tantas famílias. Mas seria um erro atribuir ao coronavírus as falhas da política econômica. Essas falhas se acumularam bem antes de seu desembarque no Brasil.

Em março os primeiros efeitos da pandemia somaram-se às consequências da política. Com isso, a produção no primeiro trimestre foi 1,7% menor que a registrada nos meses de janeiro a março de 2019. O resultado em 12 meses foi uma queda de 1%. Nesses números, nada parece muito diferente do quadro final do ano passado, uma queda de 1,1%, segundo a série do IBGE. Mas o retrospecto é sem dúvida bem pior que o dos dois primeiros anos depois da recessão.

Em 2017 a indústria produziu 2,5% mais que em 2016. No ano final da recessão a perda havia chegado a 6,4%. Em 2018, na segunda etapa da recuperação, o crescimento foi de 1%, bem mais modesto, é verdade, mas um resultado, enfim, ainda positivo. Nesse ano a economia foi duramente prejudicada pela paralisação do transporte rodoviário, ação apoiada pelo candidato Jair Bolsonaro, e pela enorme incerteza quanto às eleições e ao futuro da economia.

Apesar de tudo, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 1,3% em 2018.

No ano seguinte, início do novo mandato, a expansão ficou em 1,1%. O novo presidente assumiu o posto com declarações de confiança de muitos empresários e com amplo suporte eleitoral, mas suas prioridades, logo se viu, estavam longe das questões econômicas. Os desempregados ainda eram, no primeiro trimestre de 2019, cerca de 12,4 milhões de pessoas, 12,7% da força de trabalho. Mas o presidente mostrou-se mais preocupado com outros assuntos. Começou o mandato cuidando de facilitar o acesso às armas, criando caso com grandes importadores de produtos brasileiros, cortejando o presidente americano, Donald Trump, e tentando impor à educação seus critérios ideológicos e religiosos. Tratada pelo Executivo federal como assunto menor, a recuperação da economia perdeu vigor, o crescimento ficou em miserável 1,1%, o desemprego pouco diminuiu e a indústria até se enfraqueceu. Com a pandemia, o governo foi forçado, enfim, a enxergar a economia real, a fragilidade de milhares de empresas e as péssimas condições do emprego. Quem pagou por essa lição tão cara foi o País.


• A pergunta – Editorial | O Estado de S. Paulo

Por que o presidente Jair Bolsonaro queria tanto trocar o superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio de Janeiro, como informou, em depoimento, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro?

Essa pergunta, que agora consta oficialmente em inquérito policial, terá de ser respondida pelo presidente Bolsonaro mais cedo ou mais tarde. Melhor para o País que seja mais cedo, para que fiquem logo afastadas as suspeitas de que o presidente pretendia interferir na estrutura da PF, em especial no Rio de Janeiro, Estado que concentra seus interesses políticos e familiares, ora expostos em investigações constrangedoras para o clã presidencial.

A Polícia Federal é órgão subordinado ao Ministério da Justiça, que por sua vez responde à Presidência da República. Isso significa, em outras palavras, que o presidente tem total liberdade para escolher o diretor da PF, mas isso não quer dizer que ele ou qualquer outra autoridade do Executivo possa se imiscuir no trabalho do órgão – cuja autonomia, garantida pela Constituição, é essencial para conduzir suas investigações, em especial quando dizem respeito, ainda que indiretamente, às autoridades do Executivo. Seria intolerável, além de ilegal, que um presidente da República colocasse na chefia ou em qualquer Superintendência da PF um preposto para influenciar o trabalho policial, para obter informações sigilosas ou, pior, para fazer dela uma polícia privada.

A julgar pelo depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à PF, contudo, abundam razões para supor que era precisamente isso o que o presidente Bolsonaro pretendia fazer quando pressionou Moro a trocar o superintendente do Rio de Janeiro. “Moro, você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro”, disse o presidente Bolsonaro a seu então ministro da Justiça em uma das tantas mensagens de texto apresentadas por Moro à PF. Ou seja, o interesse do presidente era especificamente o Rio de Janeiro.

Segundo seu depoimento, Sérgio Moro teve que esclarecer ao presidente que a escolha dos superintendentes cabe ao diretor-geral da PF, em respeito à autonomia do órgão para fazer seu trabalho. Então, para Bolsonaro, a solução era simples: substituir o próprio diretor-geral por alguém que fizesse o que ele queria. O ex-ministro qualificou tal interferência de “arbitrária”, o que, a ser verdadeiro o depoimento, é evidente para qualquer pessoa de bom senso.

Mais do que isso: Sérgio Moro informou à polícia que Bolsonaro lhe cobrou diversas vezes a entrega de “relatórios de inteligência da PF”, embora, conforme disse o ex-ministro, o presidente recebesse regularmente esses relatórios; logo, deduz-se que Bolsonaro estivesse interessado em informes de outra natureza, sabe Deus a respeito de quê. Em uma reunião ministerial, depois que Bolsonaro tornou a cobrar de Moro os tais relatórios, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, teria dito, segundo Sérgio Moro, que “o tipo de relatório que o presidente queria não tinha como ser fornecido”. O general Heleno terá a oportunidade de esclarecer esses fatos quando for chamado a testemunhar.

Em todo caso, a interrogação mais delicada permanece em aberto, e só pode ser respondida pelo presidente da República: por que Bolsonaro quis tanto trocar o superintendente da PF no Rio, primeiríssima providência que o novo diretor-geral da PF tomou assim que assumiu o cargo? “O Rio é meu Estado”, justificou Bolsonaro, como se fosse a coisa mais natural do mundo o presidente da República escolher a dedo o superintendente da PF no “seu” Estado.

Para assessores palacianos e para os militantes bolsonaristas, o depoimento de Sérgio Moro nada provou contra o presidente. No afã de defender o indefensável – a tentativa de ingerência na Polícia Federal, o que é inadmissível numa República –, os aduladores não percebem que o ônus da prova está com Bolsonaro, ou seja, é o presidente quem deve explicações consistentes, melhores do que as que tem regurgitado em suas irascíveis declarações, para ter causado tamanho tumulto em seu governo e no País, em meio a uma pandemia mortal, apenas para trocar um superintendente da Polícia Federal.

• Bolsonaro sofre avarias no embate com Moro – Editorial | O Globo

A crise da saída do ex-juiz e a aliança com o centrão trazem de volta o verdadeiro presidente

Ao tomar conhecimento das dez páginas do depoimento prestado no sábado pelo ex-ministro Sergio Moro a procuradores e à Polícia Federal, o Palácio do Planalto teria comemorado, por não encontrar nenhuma revelação ameaçadora, além da essência do que o ex-juiz declarara ao sair do cargo. Pode ser uma leitura simplista do que foi relatado, sem colocar o depoimento no contexto do que está se formando em torno de um presidente irritadiço, que reage como se sentisse sob cerco.

Moro deu um roteiro para a procuradoria-geral da República investigar. É provável que Bolsonaro confie em que o procurador Augusto Aras — indicado por ele sem que constasse da lista tríplice que os procuradores costumam enviar ao presidente — arquivará o inquérito, haja o que houver. Poderes para isso Aras tem, mas sua biografia também está em jogo; os desdobramentos das crises ganham vida própria, e não se sabe o que acontecerá.

Segundo Moro, Bolsonaro não desistia de intervir na PF, na qual gostaria de ter um diretor-geral e um superintendente no Rio de Janeiro com os quais pudesse “interagir”, obter relatórios de inteligência. Tudo ilegal, pois o que a PF, uma polícia judiciária, produz está protegido por sigilo. Quanto a informações de que as autoridade se valem para tomar decisões, estas, quando colhidas pela PF, são passadas para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que por sua vez remete relatórios periódicos para a Presidência.

Mas ele insiste em tornar a PF um organismo ligado ao gabinete do presidente. Legalmente, não há como. É lógico que colocar o delegado Alexandre Ramagem, amigo dele e da família, no lugar de Maurício Valeixo seria, no entender do presidente, uma forma de driblar óbices legais. Não pôde, devido à liminar concedida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes à reclamação impetrada pelo PDT.

Assumiu o delegado Rolando de Souza, que promoveu o superintendente do Rio para seu segundo. Parecia se armar uma manobra neste posto, que preocupa tanto Bolsonaro. Porém, ele está sendo preenchido pelo delegado Tácio Muzzi, com boa imagem profissional. A ver como o presidente e família interagirão com o novo superintendente. De acordo com Moro, Bolsonaro chegou a fazer um apelo: “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma”.

O comportamento do presidente, a saída de Moro e o que este tem falado ajudam a reconstruir o verdadeiro Jair Bolsonaro, uma obra já em andamento: político do baixo clero, autoritário, que não respeita os limites entre governo e Estado. Sua aproximação com fisiológicos dos partidos do centrão, de que ele já fez parte, dá retoques importantes nesta restauração de Bolsonaro, que, como qualquer militante da velha política, que dizia execrar, oferta cargos e verbas a Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e outros para ter em troca proteção contra o impeachment. Bolsonaro trata de construir sua rede de proteção. Mas ronda o presidente o perigo de passar o resto do mandato refém da fisiologia. Um videoteipe.

• A globalização da solidariedade em busca de vacina contra a Covid-19 – Editorial | O Globo

União Europeia cria fundo mundial para apoiar pesquisas de combate ao novo coronavírus

A pandemia do novo coronavírus, surgida provavelmente no fim do ano passado, na China, pôs o mundo inteiro numa situação, se não inédita, rara na história da Humanidade. Pela facilidade com que se dissemina — fator potencializado pela mobilidade entre cidades e países num mundo globalizado — e pelo considerável grau de letalidade, o Sars-CoV-2 tem provocado estragos em todos os continentes, causando mortes aos milhares, paralisando os sistemas produtivos e fazendo as economias desabarem.

Até agora, não existe forma de pará-lo. Daí governos do mundo inteiro terem decretado quarentenas que, se não resolvem o problema, ao menos reduzem a pressão sobre as redes de saúde, incapazes de absorver tantos pacientes em tão pouco tempo, especialmente numa doença que exige longo tempo de internação e, em parte dos casos, tratamento em UTIs.

A esta altura parece claro que na dura batalha contra a nova doença não há lugar para isolacionismos, até porque o vírus desconhece fronteiras, como provado. Ao contrário, talvez nunca o mundo tenha trocado tantas informações sobre uma doença. Cada pesquisa, cada descoberta, cada terapia testada, bem-sucedida ou não, é compartilhada. E pode significar um passo adiante.

Nesse sentido, é louvável a iniciativa da União Europeia, que, na segunda-feira, anunciou a criação de um fundo mundial para dar suporte ao desenvolvimento de uma vacina e de medicamentos eficazes contra a Covid-19. De imediato, o movimento, que, ressalte-se, não está restrito à UE, arrecadou 7,4 bilhões de euros (R$ 45,4 bilhões), bem próximo do total pretendido pela Organização Mundial da Saúde (7,5 bilhões).

Na lista de doadores, destacam-se a Comissão Europeia (um bilhão de euros); Japão (762 milhões); Canadá (551 milhões); Alemanha (525 milhões); França (500 milhões); Arábia Saudita (456 milhões); Itália (150 milhões); Espanha (125 milhões) e Israel (60 milhões). A Fundação Bill & Melinda Gates contribuiu com 91 milhões, e Madonna, com um milhão. No longo rol de doações, não figuram EUA e Brasil.

Não é a única iniciativa global de combate à doença. A Fiocruz, por exemplo, participa, junto com instituições científicas de outros países, de pesquisas sobre a eficácia de medicamentos já existentes contra a Covid-19.
Os números no mundo — 3,7 milhões de infectados e 260 mil mortos — são eloquentes o suficiente para demandarem soluções globalizadas para a doença, ainda pouco conhecida. Ninguém vencerá sozinho o novo coronavírus. Mas o mundo, atuando de forma integrada e com apoio de organizações multilaterais, é capaz de derrotá-lo.

• Maratona inglória – Editorial | Folha de S. Paulo

Beneficiários do auxílio emergencial enfrentam filas evitáveis com organização

Sem dúvida fundamental neste período de colapso econômico, a concessão de um auxílio temporário de R$ 600 para trabalhadores de baixa renda, com custo total na casa dos R$ 100 bilhões, tem esbarrado em graves problemas de logística.

O ineditismo do programa, aprovado pelo Congresso, e a massa de beneficiários, estimada por ora em cerca de 50 milhões de brasileiros, explicam até certo ponto as dificuldades que se observam para fazer com que o recurso chegue rapidamente aos destinatários.

São deploráveis, ainda assim, cenas chocantes como as que se viram no sábado (2), quando pessoas pobres, muitas delas com problemas de saúde, enfrentaram filas intermináveis em agências da Caixa Econômica Federal (CEF) para tentar retirar o dinheiro.

Num momento em que a pandemia do novo coronavírus recrudesce, impondo o distanciamento físico e o uso de máscaras, formaram-se aglomerações que poderiam ter sido evitadas com melhor orientação e planejamento.

Cabe questionar se a concentração das ações na instituição estatal foi o melhor desenho para o programa. No lançamento da proposta, apontou-se aqui a importância de o Executivo mostrar capacidade de articulação e recorrer a todos os meios disponíveis para cumprir de modo eficiente o prometido.

Além da estrutura já espalhada pelo país para a distribuição de inúmeros benefícios sociais, a própria rede privada de bancos poderia prestar algum apoio.

Os problemas, na realidade, já começaram pelos meios eletrônicos oferecidos para cadastrar e habilitar os que teriam direito à ajuda. Foram vários os relatos de lentidão, queda do sistema e outros empecilhos técnicos e burocráticos.

Diante do quadro, a Caixa anunciou que vem tomando providências e teria registrado nesta quarta-feira (6) “redução considerável” das filas em todo o país. Parcerias com prefeituras de cerca de 500 municípios estariam ajudando a ordenar o atendimento.

Os próximos dias revelarão se tais decisões irão de fato representar uma mudança de patamar na prestação do serviço —ainda mais se o número de beneficiários vier, como se teme, a aumentar.

A maratona inglória, que não deixa de expor um traço cultural perverso de desconsideração no trato dos estratos de baixa renda, remete a uma deficiência que o país precisa enfrentar o quanto antes: a falta de um sistema digital de identidades e cadastros públicos.

Trata-se de projeto indispensável, para o qual existe tecnologia disponível —como atestam, aliás, os dois países mais populosos do planeta, a China e a Índia.

• Máscaras e multas – Editorial | Folha de S. Paulo

SP acerta ao tornar proteção obrigatória, mas punição deveria ter valor menor

Motiva algum espanto que só nesta quinta-feira (7) o uso de proteção facial se torne obrigatório no estado de São Paulo, depois de 3.000 mortes e mais de dois meses desde o primeiro óbito por Covid-19. Atrasos têm consequências funestas, já se escreveu, e persistir no atraso implicaria obtusidade e grave impacto na saúde da população.

Oferecem as máscaras proteção perfeita contra o coronavírus para quem as porta? Não. Mas o dispositivo a cobrir narizes e bocas contribui para reter gotículas e aerossóis infectantes emitidos por meio de respiração, tosse ou espirros de pessoas contaminadas, apresentem ou não sintomas.

Como no caso do isolamento, entretanto, a medida só terá alguma eficácia se for amplamente adotada pelos habitantes. Daí a providência de torná-la mandatória, e felizmente já se verifica nas ruas de vários municípios paulistas adesão significativa ao equipamento.

Não importam muito modelo e material da máscara, desde que sejam trocadas, descartadas ou lavadas de forma periódica, após algumas horas de uso. O decreto estadual que obriga o uso acerta ao defini-las de maneira vaga como “proteção facial, preferencialmente de uso não profissional”.

Trata-se de incentivo correto à fabricação caseira que, além do potencial de gerar alguma renda para quem as vende, diminui sobremaneira o custo de um recurso intrinsecamente barato.

Quando se toma em conta o alto custo econômico do distanciamento social, aumenta a surpresa com o fato de essa imposição não ter chegado há mais tempo.

Antes tarde do que nunca. A norma procede bem ao condicionar a entrada em estabelecimentos acessíveis ao público e transportes coletivos ao emprego das máscaras.

Deixar a fiscalização do cumprimento às autoridades municipais, por outro lado, pode revelar-se pouco eficaz, dado que prefeitos poderão considerar a providência eleitoralmente prejudicial.

Também é acertado prever advertências e multas, uma vez que alguns refratários só serão convencidos quando tiverem de sacar do próprio bolso. As punições fixadas no Código Sanitário paulista são elevadas, variando de R$ 276 a exorbitantes R$ 276 mil. Um valor mínimo menor, mais simbólico, seria o adequado.

Multas precisam ser proporcionais ao delito, além de comportar aplicação e recolhimento céleres. Caso contrário, somam-se ao longo rol de leis que o poder público não consegue fazer cumprir.

• Pandemia paralisa atividades, menos a destruição da Amazônia – Editorial | Valor Econômico

A MP 910 que está no Congresso é uma obra prima da desfaçatez com que se pretende premiar grileiros, empresários desonestos

Enquanto o coronavírus promove a devastação de vidas nos grandes centros urbanos, o governo de Jair Bolsonaro se incumbe, também silenciosamente, de acelerar a devastação ambiental do país. Depois de arrumar uma encrenca global e desmoralizar o Brasil ao desmentir a existência das maiores queimadas em muito tempo na Amazônia no ano passado, e demitir um renomado cientista que a relatou, o governo continua a agir no varejo e no atacado para desmontar a capacidade de fiscalização e controle das instituições de proteção.

A destruição legal do arcabouço institucional de proteção ao ambiente está mais avançada. A MP 910 que está no Congresso é uma obra prima da desfaçatez com que se pretende premiar invasores de terras, grileiros, capangas, empresários desonestos e aproveitadores de todo tipo que lucram com a dizimação da floresta amazônica. A legalização da posse da terra é uma árdua tarefa que vem sendo tentada há décadas por vários governos e que tem esbarrado na incapacidade, ou no desinteresse, de o Estado se fazer presente na região e ordenar sua ocupação.

O presidente Jair Bolsonaro defende o avanço do garimpo na floresta e nas terras indígenas, para as quais propõe também a mineração como atividade. Seu governo agora legaliza fraudes da ocupação desenfreada e predatória da floresta. A MP, abraçada pelos setores mais reacionários ao agronegócio, permite que residentes em imóveis rurais na região, mesmo os que se apossaram deles pela força, roubo ou falsificação, façam uma autodeclaração declarando-se legítimos ocupantes. Há uma ressalva de peso: na declaração deve constar que eles o fizeram de forma “mansa e pacífica”. A única checagem será feita por imagens de satélites.

E como o crime na Amazônia com frequência compensa, os ocupantes de imóveis de até 1.650 hectares pagarão apenas 5% do valor de mercado, uma iniciativa com potencial para desfalcar o erário, por meio de renúncia fiscal, em R$ 88 bilhões, segundo cálculos da Ong WWF (Valor, 4 de maio). Tampouco se trata de regularizar conflitos antigos, e sim de incentivo à grilagem recente. A comprovação de posse valerá para ocupações ocorridas até dezembro de 2018 - o prazo era até 2008, no projeto original. A MP é péssima para a preservação da floresta, mas pode espalhar seus males. Congressistas gostaram tanto dela que propuseram estendê-la a outras áreas públicas do país.

A MP é a maior ameaça no presente de uma série de outras. Um decreto em gestação prepara a liberação para exploração agrícola e especulação imobiliária de áreas protegidas da Mata Atlântica. A Mata encolheria algo como 110 mil km2, segundo o SOS Mata Atlântica, por obra da redução legal dos biomas protegidos - restariam apenas as formações tipicamente florestais. Perderiam proteção o cerrado e a vegetação nativa de ilhas costeiras, oceânicas. A autorização para desflorestamento deixaria de ser do Ibama e passaria a autoridades locais. Os limites para o desmatamento permitido pulariam de 50 para 150 hectares e, em áreas urbanas, de 3 para 30 hectares.

Desaparecido do público desde o vexame das queimadas na Amazônia e do seu papel destrutivo na suspensão dos recursos externos do Fundo Amazônia, o ministro Ricardo Salles continua trabalhando contra o ambiente. Ele demitiu dois membros da chefia de fiscalização do Ibama por reportagem apresentada no “Fantástico” sobre extração de ouro em terras indígenas. No que se tornou uma tradição, o loteamento dos cargos da pasta por policiais militares, o novo coordenador geral da fiscalização será o coronel da reserva Walter Magalhães Jr, da mesma patente de Homero Cerqueira, presidente do ICMBio.

Bolsonaro se indignou recentemente quando técnicos do Ibama destruíram equipamento de madeireiros ilegais que destruíam a floresta e disse que isso não mais aconteceria. Sem respaldo do presidente ou do ministério, os fiscais do Ibama são os elos frágeis de uma corrente de violência que amplia a destruição na Amazônia.

A pandemia esvaziou as metrópoles globais. A emissão de gases estufa deverá ter queda recorde em 2020, depois de bater picos em 2019. Mas no Brasil as emissões vão crescer. O sistema Deter do Inpe indicou aumento de 51% nos alertas de desflorestamento no primeiro trimestre, elevação incomum para a estação de chuvas. Na seca virão os incêndios para limpar os terrenos - que provavelmente serão desmentidos, sem nenhuma credibilidade, pelo governo.

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