Ilegalidades cometidas na rede social justificam propostas para haver transparência na internet
A prática de crimes ou violação de direitos por meio da divulgação de informações falsas sempre existiu. No entanto, a Constituição e a lei sempre foram capazes de enfrentar o problema, limitando seus efeitos danosos, equilibrando, de um lado, a liberdade de pensamento e expressão, vedado o anonimato, e, de outro, a responsabilização do autor da mensagem falsa pelos danos que causar e os crimes que cometer — injúria, calúnia, difamação, racismo etc.
O advento das redes sociais e dos sites de postagens criou um ambiente perfeito para a explosão desse tipo de crime, pela ampliação do alcance das mensagens falsas e pelo acobertamento da identidade dos autores das mensagens. Robôs disparam conteúdos sabidamente falsos, induzindo os usuários a acreditarem que têm origem em pessoas reais, e por meio desses disparos são propagadas ofensas de toda sorte, quando não graves ameaças. Um processo que destrói reputações, afeta de forma ilegítima processos eleitorais e cria uma tensão social profundamente prejudicial para a democracia.
O cenário se agrava porque as plataformas utilizadas para a divulgação de notícias falsas são dominadas por um pequeno grupo de empresas multinacionais, com alta dominância ou mesmo poder de monopólio em seus mercados, grande cacife financeiro, capacidade praticamente ilimitada de influenciar, além de um discurso poderoso e com grande apelo, especialmente para a juventude, a favor da liberdade de expressão e de informação.
A liberdade de expressão e informação não é incompatível com a responsabilidade pelos danos causados a terceiros. Muito ao contrário, liberdade e responsabilidade são conceitos interdependentes: na prática democrática, liberdades somente podem ser exercidas na medida em que não interfiram na esfera de direitos do outro; quando isso ocorre, o caminho passa a ser o da responsabilização do agente pelo dano causado. É esta possibilidade de responsabilização que permite que as liberdades continuem sendo garantidas e exercidas em sua plenitude: se não existir ou falhar a atribuição de responsabilidade por eventuais abusos, abre-se espaço para que remédios amargos como o da censura prévia passem a ser cogitados, em total afronta ao nosso regime constitucional. Algo que obviamente não se pode admitir.
Nesse sentido, a regra é sim a liberdade para expressar qualquer pensamento, mas ela estará invariavelmente sujeita à responsabilização nos casos especificados em lei em que há grave ofensa. E o Poder Judiciário se encarregará de solucionar eventuais conflitos.
Garantir essa harmonia entre liberdade de expressão, informação e responsabilidade é o desafio do projeto de lei das fake news, aprovado no Senado, e em início de análise na Câmara. O resultado das discussões legislativas tem sido promissor. É certo que aspectos do texto ainda precisam ser aperfeiçoados. Não há no projeto, por exemplo, previsão quanto à responsabilização dos provedores pela disseminação de conteúdo infringente. Tem-se, assim, excelente oportunidade para se incluir a previsão expressa de que os provedores serão penalizados pelos conteúdos postados em sua plataforma depois de notificados pelos ofendidos. Será o passo necessário para que possamos finalmente introduzir no país o tão esperado modelo do “notice and take down”, em que, notificado, o provedor poderá ser denunciado e punido pela Justiça, considerando o período desde que foi comunicado formalmente por quem se sentiu prejudicado pelo conteúdo.
Tal alteração será medida extremamente importante nesta luta contra a disseminação de notícias falsas. A última década deixou evidente que as plataformas digitais são muito mais que meros intermediários neutros que viabilizam a expressão de seus usuários, conforme elas próprias defendem. Estas plataformas concorrem pela atenção do usuário e por verbas publicitárias como verdadeiros veículos de mídia, com o bônus de contarem com posição dominante ou mesmo de monopólio em seus respectivos nichos de atuação.
Por terem se tornado os grandes “porteiros da internet”, estas plataformas possibilitam uma audiência e um alcance até então jamais vistos a todos os conteúdos nelas postados, incluindo aqueles de natureza ilegal. Neste contexto — e considerando que as plataformas lucram, e muito, com esta disseminação de conteúdos, legais ou ilegais —, já era hora de trazê-las para este debate, adotando-se um regime legal de responsabilização compatível com a envergadura do papel que elas exercem hoje na internet.
É igualmente relevante que se inclua, dentre os destinatários das novas regras, os provedores de ferramentas de busca, abrangendo-se com isso todos os provedores de aplicações que possuem capacidade para, em larga escala, disseminar a desinformação.
Além disso, é questionável se um conselho federal poderá regular a circulação de informações sem sucumbir à tentação de influenciar o que pode ou não ser divulgado. Também questionável é a vaga autorização para autorregulação das plataformas, desacompanhada de um regime legal expresso de responsabilização. É de um otimismo extremo esperar que, apenas pela via da autorregulação, as plataformas se engajem firmemente no processo de luta contra a disseminação da desinformação, que gera para elas lucros de milhões de dólares todos os anos.
Se por um lado é certo que esses pontos merecem atenção e precisarão ser abordados para que o projeto de lei possa alcançar seus objetivos originais, por outro é também inegável que ele já possui méritos bastante relevantes, privilegiando a liberdade de expressão.
De fato, a começar pelo seu próprio intuito. O projeto tem como objetivo aumentar a transparência no funcionamento das big techs, obrigando que prestem informações à sociedade sobre suas políticas, os algoritmos que usam para o oferecimento de mensagens e publicidade aos usuários, as medições de tráfego de informações que realizam, medidas que tomam para a aplicação de suas políticas etc. Mais informação não pode, por óbvio, ser um risco à liberdade de informação.
Outro objetivo do projeto é aumentar as informações sobre os usuários que postam mensagens, prevendo, inclusive, que os provedores, em casos graves, possam requerer dos usuários e responsáveis por contas a confirmação de sua identificação, com apresentação de documento.
É igualmente objetivo do projeto de lei criar regras para que os provedores de aplicação não usem o fato de serem empresas transnacionais para se esquivar ao cumprimento da lei. Essas big techs armazenam as informações em servidores que se encontram no exterior e, quando instadas pelas autoridades nacionais a fornecer informações sobre as mensagens postadas em suas plataformas, criam todo tipo de dificuldade, alegando que não estão submetidas à jurisdição brasileira.
Por tudo isso, o projeto de lei das fake news é uma boa novidade, que só pretende trazer a divulgação de informações na internet para a normalidade democrática, sintetizada nesses dois princípios básicos: liberdade e responsabilidade.
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