- O Globo
Lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação
Com economia de adjetivos de fazer inveja a Graciliano Ramos, Jane Loureiro, da Vigilância Sanitária carioca, assim respondeu à indagação sobre o teor dos insultos recebidos de gente rompida com o restante da humanidade: “A maneira com a qual se ofende uma mulher”.
Com dignidade sociológica, acrescentou: “Ofensas de uma classe abastada, que a gente acha que tem respeito e educação”.
A ocasião: a reação iracunda de frequentadores de um bar, na Barra da Tijuca — núcleo impávido do bolsonarismo de raiz —, à ação da Vigilância, no zelo das regras mínimas de proteção diante da pandemia. Gente que bem sabe como “se ofende uma mulher”.
Na mesma noite, Flavio Graça, superintendente da mesma Vigilância e no mesmo bairro, viu-se diante de dois exemplares do horror pátrio e pétreo a qualquer fumaça de igualdade: um casal indignado com tratamento dispensado, que envolveu o emprego da palavra “cidadão”.
O apego atávico a marcas de distinção faz do termo uma imposição de rebaixamento. Cada um, afinal, deve ser chamado pelo que o distingue: daí o aceitável uso do termo “elemento” para os tidos por inferiores.
O casal colérico exibiu sua distinção, mas, no dia seguinte, perdeu os empregos. Ao que parece, há lapsos de vigília no sono dos deuses.
A frase de Jane Loureiro dá o que pensar. Em um de seus mais importantes poemas — "A flor e a náusea", de 1945 — Carlos Drummond de Andrade inscreveu o seguinte verso: “Sob a pele das palavras há cifras e códigos”.
Sob a epiderme da frase de Jane não há somente cifras e códigos, mas a exibição do abismo civilizatório no qual nos precipitamos sob o consulado inominável da extrema-direita.
Por certo, a vociferação de impropérios misóginos está inscrita na geologia dos nossos hábitos nacionais. Da mesma forma, lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação dos discrepantes e inferiores.
O que agora se acrescenta, é que todos possuem um Chefe e um exemplo, algo que lhes dá unidade e direção. Tornam-se, assim, operadores da obra de desconstrução dos filamentos civilizatórios mínimos que, mal ou bem, vínhamos acumulando.
Fascismo? Necropolítica? Autoritarismo? Outro nome? Qual? Dar um nome é supor que há uma forma. E o bolsonarismo não tem forma alguma; não faz sistema; é pura obra de destruição; sequer merece um nome para chamar de seu.
É constituído por práticas díspares, potências de degradação dos ambientes nos quais são engendradas. Obra que exige tanto iniciativas pelo alto quanto ações e comportamentos na base: negar água potável aos indígenas e humilhar fiscais sanitários; ofender uma mulher.
Cada um faz a sua parte: o Chefe e seus alegres acólitos, protagonistas de uma liberdade, enfim conquistada, de causar danos aos demais. E daí?
* Renato Lessa é professor de Filosofia Política da PUC-Rio, pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, e pesquisador visitante do Centre Roland Mousnier, da Lettres Sorbonne Université (antiga Paris IV), 2020/2021.
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