- O Globo
Uma sociedade acostumada a naturalizar a hierarquia social, democracia só existe como projeto inconcluso
Governos de matriz autoritária vêm sempre acompanhados por rituais, não menos autoritários, de subordinação.
Numa sociedade acostumada a naturalizar a hierarquia social — que eternizou o mandonismo colonial o qual desembocou nos coronéis da Primeira República e na atual “bancada dos parentes” da Câmara; que conviveu com a escravidão por quase quatro séculos e enraizou o racismo —, democracia só existe como projeto inconcluso e cidadania enquanto uma definição para poucos.
Cidadão vem de “aquele que mora na cidade” e que precisa, pois, estabelecer relações horizontais para com o “outro”, com quem divide espaços.
Cidadão é também aquele que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos por este garantidos e desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos.
Já o conceito de cidadania foi historicamente definido como um ideal de libertação, uma vez que se dirige a uma comunidade política que compartilha expectativas e reivindicações.
Se cidadania é uma noção construída coletivamente, ela só ganha significado nas experiências sociais e individuais. Por isso, no Brasil, cidadania funciona, muitas vezes, tal qual história mal contada ou contada pela metade.
O episódio protagonizado pelo casal de engenheiros num bar do Rio virou “sintoma” do nosso pouco apego à cidadania.
A frase dita pela mulher em desafio ao agente público da Vigilância Sanitária, doutor em medicina veterinária, virou prova, em flagrante, de como muitos brasileiros faltaram à aula de Revolução Francesa, Americana e Haitiana.
Virou também um “evento”, pois ganhou significado social, político e moral. No Brasil em que, como dizia Lima Barreto, “todo mundo quer ser doutor”, e onde ser engenheiro é valor social, a cena tornou-se emblemática.
Expôs a incompatibilidade entre a prática e a realidade de “engenheiros cidadãos” que, em tempos de pandemia, precisam evitar aglomerações e usar máscara para não serem contaminados e contaminar.
Entretanto, a lógica conservadora do “você sabe com quem está falando?” pareceu ganhar no tapetão. Afinal, ela serviu para inferiorizar o “outro”, a partir da afirmação implícita e silenciosa da naturalização de um certo lugar social.
Escancarou também nosso apego frouxo às leis, instituições e à regra social. Aliás, desde os tempos coloniais, a lei sempre foi para o “outro” e não para aqueles que se julgam acima dela.
Temos revelado grande dificuldade em reconhecer a cidadania como um valor universal. Isso porque esse não é um país de direitos e deveres universais.
Nos faz falta uma agenda moral e ética, sobretudo nesse momento em que valores democráticos têm sido questionados por dirigentes e por parte da população que vê no autoritarismo uma prática democrática. Não é; e essa torção conceitual nos faz muito mal.
O problema é que, assim como se agigantam, esses eventos costumam sumir na pátina do tempo. A atitude do casal descreve velhas feridas que estão longe de cicatrizar. É hora de fazer da reação breve um propósito cidadão e acreditar que aqueles que não usam máscaras serão, algum dia, desmascarados.
* Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga e historiadora
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