quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Um país no purgatório – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sob o comando do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde transformou-se em cidadela do xamanismo bolsonarista

Consta que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, é especialista em logística. Que a sorte poupe o Brasil de uma guerra em que esse intendente seja o responsável por encaminhar à linha de frente os suprimentos necessários para a batalha. A julgar pelo seu desempenho na guerra contra o coronavírus, seríamos massacrados antes mesmo de chegar o primeiro carregamento de cantis.

Quando o general Pazuello assumiu interinamente o Ministério da Saúde, em 16 de maio passado, o Brasil contabilizava 15.633 mortos pela covid-19; quando se tornou o titular da pasta, em 16 de setembro, o total já chegava a 134.106 mortos; agora, o número caminha velozmente para a marca de 180 mil. Ou seja, sob a gestão do intendente Pazuello, o Brasil viu o número de mortos mais que decuplicar. Uma marca e tanto, com poucos paralelos no mundo.

A progressão geométrica da pandemia no Brasil é resultado direto do modo irresponsável como o governo de Jair Bolsonaro vem lidando com a crise desde o início. Já está gravado nos anais da infâmia nacional o dia em que Bolsonaro qualificou a covid-19 de “gripezinha”, bem como o momento em que o presidente cobrou de seus governados que deixassem de ser “maricas” e que enfrentassem a doença “de peito aberto”.

Mas Bolsonaro não se limitou a ofender os brasileiros. Colaborou decisivamente para reduzir a capacidade do Estado de responder às demandas provocadas pela pandemia, a começar pelo fato de que trocou de ministro da Saúde duas vezes no meio da crise – e tudo porque os anteriores, ambos médicos, insistiam em se socorrer da ciência para poupar vidas em vez de fingirem que a pandemia não existia, como queria Bolsonaro.

O atual ministro da Saúde, que ficou nada menos que quatro meses como interino, ganhou a titularidade, a despeito de sua flagrante falta de qualificação para o cargo, porque deve ter convencido Bolsonaro de que ali estava um soldado raso disposto a fazer tudo o que o chefe mandasse, mesmo que mais alguns milhares de “maricas” morressem no caminho, como de fato aconteceu.

O despreparo técnico e ético do ministro Pazuello ficou explícito quando este voltou atrás do anunciado compromisso de adquirir a vacina que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, depois que o presidente Bolsonaro o desautorizou de forma vexatória. Em vez de entregar o cargo, como faria qualquer um com o mínimo de responsabilidade, bom senso e amor próprio, Pazuello aceitou a humilhação: “Um manda, o outro obedece”, explicou o submisso ministro ao lado do presidente.

Assim, sob o comando do general Pazuello, o Ministério da Saúde transformou-se em cidadela do xamanismo bolsonarista, deixando de organizar os esforços nacionais de combate à pandemia. Não fosse a iniciativa isolada de governadores e prefeitos, o País estaria completamente ao deus-dará justamente no momento em que a doença dá sinais de recrudescimento.

Mas o general Pazuello, não contente em descumprir o papel que cabe ao ministro da Saúde na prevenção da doença, parece empenhado também em sabotar os esforços dos que se mobilizam para conseguir imunizar a população, só porque Bolsonaro os considera seus inimigos. A respeito da vacina produzida pelo Instituto Butantan, por exemplo, o ministro disse que a autorização para sua aplicação pode levar até 60 dias, como se não houvesse nenhuma urgência, e que ela só será comprada e distribuída pelo governo federal “se houver demanda”.

O insulto aos brasileiros não parou por aí. O ministro que apresentou um plano pífio de vacinação informou que “compete ao Ministério da Saúde realizar o planejamento e a vacinação em todo o Brasil”, e não aos Estados. Ora, os Estados tomaram a iniciativa de planejar a vacinação justamente porque o governo federal, inspirado na entropia bolsonarista, foi até agora incapaz de fazê-lo.

Para completar, o ministro Pazuello, sem nada a oferecer a não ser a verborreia típica de seu chefe, apelou: “Erguer a cabeça, dar a volta por cima é um padrão brasileiro. É diante de uma crise que criamos soluções para avançar e temos que acreditar que podemos vencer. Vamos ter fé. Tudo isso vai passar”. Vai, mas, se depender do ministro da Saúde e do presidente, teremos ainda uma longa e penosa temporada no purgatório.

A tirania chavista se blinda – Opinião | O Estado de S. Paulo

Agora, como em Cuba e na Nicarágua, regime domina os Três Poderes e as Forças Armadas

Caiu o último bastião da democracia venezuelana. Nas “eleições” – com muitas aspas – de domingo passado, a ditadura de Nicolás Maduro recuperou o controle do Congresso. A janela de oportunidades aberta há cinco anos, quando a oposição ganhou a maioria absoluta no Parlamento, foi trancada com o mais duro ferrolho. Agora a Venezuela se junta a Cuba e Nicarágua como os únicos países no continente americano em que um regime domina os Três Poderes e as Forças Armadas.

A vitória da oposição nas eleições de 2015 foi quase acidental: o regime chavista, então há 16 anos no poder, sentiu-se tão confortável em sua tirania que acabou relaxando o aparato de fraude e repressão. Passado o susto, ele não tardou a apertar o torniquete. As marionetes bolivarianistas na Suprema Corte vetaram todas as leis aprovadas pelo Congresso e Maduro fabricou uma “Assembleia Constituinte” para servir como Legislativo de fachada.

Em 2018, em novas “eleições” presidenciais, Maduro ganhou um mandato de mais seis anos. Alegando fraude, o presidente oposicionista do Congresso, Juan Guaidó, declarou-se em 2019 presidente da Venezuela, e foi reconhecido como tal por mais de 50 países, incluindo os EUA, quase todos os membros da União Europeia e as maiores democracias da América Latina.

O regime de Donald Trump apertou suas sanções, na esperança de que Guaidó se aproveitasse da revolta do povo venezuelano e mobilizasse um levante com os descontentes nas Forças Armadas. O levante chegou a ser ensaiado, mas malogrou. Entre os subornos e a repressão, os resquícios de resistência no Exército foram desmantelados.

A oposição chegou em 2020 desacreditada e dividida. A maioria dos seus líderes já acompanhara os 5 milhões de venezuelanos – 1/6 da população – que desde 2013 se refugiaram no exterior. Maduro, que já defenestrara os oposicionistas no Conselho Nacional Eleitoral, estabeleceu líderes biônicos para três dos maiores partidos da oposição. Uma ala liderada por Henrique Capriles participou do pleito, enquanto o bloco de Guaidó optou pelo boicote.

A abstenção foi expressiva. Os números do próprio governo apontam que quase 70% dos eleitores não foram às urnas – a oposição fala em 85%. Guaidó e seus correligionários estão promovendo um “referendo” na rede digital. Mas é difícil vislumbrar ganhos nessa estratégia. EUA, Reino Unido e alguns países latino-americanos, incluindo o Brasil, declararam que manterão o reconhecimento a Guaidó como presidente, mas na prática é provável que a sua legitimidade se deteriore gradualmente até desaparecer. Na própria Venezuela, a sua popularidade, embora alta comparada aos 14% de Maduro, caiu em pouco tempo de 60% para 30%.

Há quem veja alguma esperança na ascensão de Joe Biden. Mas qualquer mudança dependeria de um concerto diplomático mais do que improvável com apoiadores do regime chavista, como Turquia, Irã e principalmente Rússia e China. No curto prazo, Biden deve fazer pouco mais do que aliviar a crise humanitária agravada pelas sanções de Trump. Já em relação ao regime, mais realistas são as apreensões do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe: “Quando eu era jovem, todo ano se dizia ‘neste ano a revolução cubana cairá’. Mas ela se estabilizou e perdemos três gerações. É doloroso, para mim, pensar que a história se repetirá na Venezuela”.

Mas o que é dor para alguns, é gozo para outros. Em nota, o Partido dos Trabalhadores celebrou a “grande manifestação da vontade popular” contra os “golpistas” e o “imperialismo”. A vontade popular brasileira, é verdade, varreu o lulopetismo nas eleições municipais, mas nunca é demais lembrar que ele ainda tem a maior bancada na Câmara dos Deputados, disputou um quinto mandato consecutivo e se autoproclama a liderança de uma “frente democrática ampla” para 2022. Não se pode deixar de pensar o quanto a “festa da democracia” petista – caso os freios e contrapesos brasileiros tivessem sido desintegrados como foram na Venezuela – seria semelhante ao funeral da democracia de Caracas.

Cracolândia, uma chaga aberta – Opinião | O Estado de S. Paulo

Dificuldade para acabar com problema não pode ser sinal de rendição do poder público

“É uma situação insana e inadmissível. Quando eles querem fazer bagunça, fazem. Alguém deveria se debruçar sobre a situação da área para tomar consciência do que isso representa.” O dramático relato de uma moradora da região da Cracolândia, no centro de São Paulo, retrata muito bem uma ferida aberta há demasiado tempo na maior cidade do País.

De fato, é inadmissível que o poder público não seja capaz de impor a ordem em um espaço tão circunscrito. Quando haverá uma solução definitiva para um problema que tanto aflige os paulistanos? Sucessivos prefeitos já passaram pelo Edifício Matarazzo e elaboraram seus planos para acabar com a degradada região da Cracolândia, todos sem sucesso, como qualquer um é capaz de constatar com os próprios olhos. Só o drama dos moradores, comerciantes, dependentes químicos, traficantes e transeuntes da região central é perene.

Na tarde de terça-feira passada, um grupo de usuários de crack promoveu mais um arrastão que levou pânico aos motoristas parados no congestionamento na Rua Helvétia com a Conselheiro Nébias. Dezenas de homens e mulheres visivelmente fora de si apedrejaram carros, chegando a entrar em alguns deles, e levaram tudo o que conseguiram carregar dos motoristas. Estes, aterrorizados, aceleraram seus veículos quando podiam e avançavam sobre as calçadas. Foi um milagre não ter havido mortos ou feridos com gravidade.

Noticiou-se que o arrastão teria começado após uma operação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região. A verdade é que a irrupção de violência na Cracolândia não precisa de uma causa. Quando quer “bagunçar”, como relatou a moradora ao Estado, o grupo que lá está “bagunça”. E não raras vezes atiçado pelos próprios traficantes que atuam na região, que têm todo o interesse em usá-los como uma espécie de contenção às ações de repressão ao tráfico.

A bem da verdade, a Cracolândia hoje não é mais o que já foi em um passado recente, uma terra de ninguém onde milhares de pessoas sem qualquer controle sobre seus atos praticamente vegetavam em uma área confinada à espera da próxima dose de droga para aplacar sua dependência. Políticas públicas de acolhimento social, atendimento médico e psicológico, combate ao tráfico de drogas e reurbanização da região mitigaram o problema, com resultados pontuais, mas, como está claro, não o resolveram. Hoje, pode-se dizer que não há mais uma Cracolândia, mas pequenas “Cracolândias” em algumas áreas da cidade.

É dever da Prefeitura de São Paulo, com o apoio do governo do Estado no que for cabível, traçar um plano para, se não acabar de imediato com a Cracolândia, ao menos reduzir danos e projetar a reinserção daquela área degradada à vida da cidade no futuro. Estima-se que a população que frequenta a Cracolândia diariamente para consumir drogas – em sua maioria homens, negros ou pardos e com idade média de 35 anos – seja de, aproximadamente, 1.700 pessoas. Há que se entender as razões que levaram essas pessoas à situação tão degradante e traçar políticas públicas que, enfim, deem uma solução definitiva para um flagelo que, antes de tudo, é humanitário.

A solução para o problema da Cracolândia passa, necessariamente, por uma política de longo prazo que combine ações de assistência social, atendimento médico, suporte psicológico aos dependentes, reurbanização e, não menos importante, um combate incessante ao tráfico de drogas.

O crack há muito deixou de ser um problema da cidade de São Paulo. De acordo com o Observatório do Crack, da Confederação Nacional de Municípios (CNM), a droga está presente em 558 dos 645 municípios de São Paulo.

É de reconhecer que o problema da Cracolândia é de difícil solução. Envolve a brutal dependência química, dramas sociais e familiares muito particulares e a expansão cada vez maior do tráfico de drogas. A dificuldade, no entanto, jamais poderá servir como sinal de rendição do poder público.

Reforma do Estado deveria incluir todas as carreiras – Opinião | O Globo

Pesquisa revela apoio elevado no Congresso a mudanças que também atinjam a elite do funcionalismo

A proposta de reforma administrativa encaminhada pelo Executivo ao Congresso foi um avanço, mas é tímida em vários aspectos. Poupa os servidores da ativa, conserva regalias em carreiras tidas como “típicas de Estado” (como auditores, policiais ou diplomatas) e mantém intocados aqueles identificados como “membros de Poder” (juízes, promotores, procuradores ou parlamentares).

É verdade que uma reforma dessa natureza tem vários objetivos. Entre os principais, conferir racionalidade à gestão do pessoal, melhorar a qualidade do serviço público e reduzir o desperdício de recursos que faz do Estado brasileiro um dos mais caros e ineficientes do mundo. Mas simplesmente não há lógica em promover mudanças que, para as categorias que formam a elite do funcionalismo, preservam os privilégios mais absurdos (como férias com mais de 30 dias, promoções automáticas ou aposentadoria como punição).

Um dos argumentos usados pelo governo é que a manutenção facilitaria a tramitação do texto, pois pouparia os parlamentares da pressão das corporações incrustadas no Estado, sempre alertas para resistir a mudanças. Ora, trata-se de um argumento frágil, como demonstra uma pesquisa realizada pelo Instituto FSB com 170 parlamentares (143 deputados e 27 senadores, distribuídos proporcionalmente às bancadas partidárias).

Nada menos que 73% da amostra se disseram contra deixar de fora das novas regras do funcionalismo juízes, procuradores, promotores, parlamentares e militares. Para 72%, deve ser criado um novo modelo de avaliação de desempenho com a possibilidade de demissão. Para 57%, devem acabar, em todas as carreiras, a promoção automática por tempo de serviço e as férias de mais de 30 dias. Mesmo o fim da estabilidade, que costuma sofrer resistência feroz das corporações do funcionalismo, é apoiado por 54% (com exceção das carreiras típicas de Estado, para as quais o mais razoável mesmo seria vigorar uma regra própria, capaz de proteger os funcionários de ameaças para garantir sua independência).

No geral, 62% dos congressistas se disseram favoráveis à reforma (64% na Câmara e 53% no Senado). Sempre se pode argumentar que a amostra não é representativa, que os parlamentares evitam responder de modo honesto ou que, na hora de votarem para valer, as pressões corporativas se farão sentir com mais força. Mesmo assim, o nível de apoio a um tema que sempre foi visto como “difícil” ou “polêmico” é uma notícia positiva.

Trata-se de um motivo bastante persuasivo não apenas para que Executivo e Legislativo deem prioridade máxima à reforma, mas para que ela contemple todas as categorias de servidores. Por que mesmo o governo demora tanto para acelerar a votação? A única explicação plausível é que o presidente Jair Bolsonaro não acredita na reforma ou não quer pagar seu custo político. O custo social e econômico da omissão em tema tão urgente será bem maior.

Falta d’água é prova eloquente de que Cedae precisa ser privatizada – Opinião | O Globo

Na capital, desabastecimento atinge 30 bairros. Problema só deve ser reparado às vésperas do Natal

Há quase um mês, cerca de um milhão de moradores de 30 bairros da capital e de três municípios da Baixada Fluminense (Nilópolis, Mesquita e São João de Meriti) enfrentam problemas de abastecimento de água. Nada a ver com as altas temperaturas típicas desta época do ano — até porque elas estão moderadas. A seca que afeta a Região Metropolitana está ligada às intempéries da Cedae, e a sua ineficiência crônica, não aos humores do tempo.

Desde 14 de novembro, uma falha num conjunto de bombas do Lameirão limita em 75% a capacidade de operação da estação elevatória, na Zona Oeste do Rio. Como o problema só deve ser solucionado entre 15 e 20 de dezembro, a Cedae optou por fazer rodízio no fornecimento. Não adiantou. Em plena pandemia, muitos ficaram sem água, e caminhões-pipa passaram a fazer parte da paisagem nas zonas Norte, Sul e Oeste.

Em entrevista à Rádio Melodia, o governador em exercício, Cláudio Castro, pediu desculpas e disse que os moradores prejudicados terão desconto nas contas de água — só faltava terem que pagar o que não receberam. Disse que houve uma “fatalidade”, mas que isso não exime o governo de assumir responsabilidade pelo problema.

A companhia alegou dificuldades para obter matéria-prima durante a pandemia e fazer o reparo dos motores. Não há acaso nessa história. Como mostrou reportagem do GLOBO, uma das sete bombas estava quebrada desde dezembro de 2018. Só foi enviada ao conserto em abril, 16 meses depois. Se já estivesse funcionando, os prejuízos seriam menores. A Cedae diz que apura os motivos da falha de manutenção. Numa estatal, não deve ser tão difícil descobrir onde está o problema: faltam recursos para investimento.

A indigência do serviço prestado pela Cedae, que atende a 64 dos 92 municípios do estado, é mais uma prova da necessidade de privatizá-la o quanto antes. O lançamento do edital de concessão, condição do acordo fechado pelo Rio com a União para ter acesso ao Regime de Recuperação Fiscal, está previsto para o próximo dia 18. Na modelagem feita pelo BNDES, a Cedae ficará responsável apenas pela produção e tratamento da água.

Há pouco mais de um mês, Castro questionara a privatização, mas pelo menos recuou da insensatez. Na terça, admitiu que o estado não teria recursos — estimados em R$ 40 bilhões — para universalizar os serviços, como prevê o marco do saneamento. A questão é simples. Uma companhia de água e esgoto tem que fornecer água e coletar e tratar esgoto. Se não consegue fazer o básico, precisa ceder a vez. Nenhum argumento em favor da urgência da privatização é tão eloquente quanto a falta d’água nas torneiras.

Ameaça inflacionária – Opinião | Folha de S. Paulo

Alta do IPCA tem motivos temporários, mas demanda cuidados; BC acerta nos juros

Com a alta de 0,89% observada em novembro, a inflação ao consumidor medida pelo IPCA e acumulada em 12 meses atingiu 4,31% e superou a meta de 4% fixada para 2020.

Trata-se de uma mudança e tanto em relação ao quadro vigente há poucos meses, quando a preocupação dominante do Banco Central era com a recessão e o risco de a alta dos preços ficar muito abaixo de seus objetivos por longo período.

As pressões ainda estão concentradas primordialmente em alimentação —que sobe 15,7% no ano— e parecem decorrer sobretudo de fatores temporários, mas o desconforto cresceu e o risco de repasses mais generalizados persiste.

Um dos principais problemas foi a combinação da alta forte nos preços em dólar das matérias-primas com a desvalorização da moeda nacional, que chegou à casa dos 30% nos piores momentos da crise.

A escalada das cotações de grãos e da cadeia de proteínas, em razão da demanda chinesa e do impulso local propiciado pelo auxílio emergencial, acabou sendo transmitida rapidamente para o varejo.

Em algumas indústrias, como petroquímica, siderurgia, cimento e mobiliário, além do impacto de insumos dolarizados, a produção não conseguiu acompanhar o crescimento rápido e surpreendente da demanda. Como muitos desses setores são pouco competitivos, ficou facilitado o repasse de preços aos compradores.

Tais pressões são em grande medida temporárias e devem perder força em 2021. O IPCA acumulado em 12 meses ainda se manterá elevado no primeiro semestre, mas poderá recuar até o final do ano para um patamar em torno da meta do Banco Central para o período, fixada em 3,75%.

Para tanto contribui a ociosidade no mercado de trabalho, que deve manter a inflação de serviços em baixa. O fim do auxílio emergencial e a perspectiva de alguma valorização do real ante ao dólar também podem conter o avanço dos preços dos alimentos e de outros itens que subiram neste ano.

O ambiente internacional de juros baixos e liquidez abundante sugere uma perspectiva favorável para a economia mundial, incluindo países emergentes.

Tudo isso dependerá, porém, de sinais favoráveis do governo na gestão da economia. Se até agora o fenômeno inflacionário pode ser primordialmente caracterizado como efêmero, erros que reforcem novamente a desconfiança em relação ao compromisso com a solidez das contas públicas podem ter consequências mais duradouras.

Até que fiquem claras quais serão as opções do governo, o BC faz bem em aguardar. Foi acertada a decisão do Copom de manter a taxa básica de juros em 2% ao ano, pois no momento há razões que suportam uma melhor perspectiva para a inflação no ano que vem.

A chaga da cracolândia – Opinião | Folha de S. Paulo

Arrastão em SP volta a expor drama que exige ação policial e assistência social

medonho arrastão ocorrido na terça-feira (8) na região de São Paulo tristemente conhecida como cracolândia constitui um lembrete amargo da tragédia social que há mais de duas décadas se desenrola no coração da metrópole.

Embora se reconheça a complexidade do problema, nada justifica que seguidos governos municipais e estaduais tenham sido incapazes de conceber um plano integrado e abrangente para enfrentar tamanho descalabro.

No mais das vezes, enxuga-se gelo. Reprimem-se os usuários maltrapilhos, e eles se espalham pelo centro da cidade, voltando algum tempo depois. Prendem-se traficantes, aparecem outros.

Recorde-se, por exemplo, a espetaculosa ação levada a cabo em 2017, quando o então prefeito João Doria (PSDB) apressou-se em anunciar o fim da cracolândia apenas para ser desmentido pela realidade em questão de semanas.

Não que a polícia deva abster-se de uma atuação firme na região. Mas, em vez de ações brutais de repressão, que antes produzem mais violência que resultados, deve-se priorizar ações de prevenção e inteligência, além de extirpar os eventuais casos de suborno de agentes públicos para que tolerem delitos.

A cracolândia, contudo, transcende a questão da segurança pública. A ação policial é inócua sem o complemento de estratégias de atendimento a uma população extremamente vulnerável.

Nos últimos anos, o pêndulo da atuação sanitária vem oscilando entre a redução de danos e a abstinência com internação.

Na primeira baseou-se o programa De Braços Abertos, implantado pelo petista Fernando Haddad (2013-2016). Seus princípios: diminuir o consumo de crack, dar moradia e trabalho aos usuários e atraí-los para tratamento voluntário.

No início da gestão Doria na prefeitura, o programa deu lugar ao Redenção, que privilegiou a abstinência como precondição da assistência social e médica. Já com Bruno Covas (PSDB), a redução de danos voltou a constar, ao menos no papel, no cardápio de terapias oferecidas pelo poder público.

Como demonstra a experiência internacional, aliar as duas abordagens de tratamento parece ser o caminho mais promissor, o qual deve necessariamente ser complementado com uma ação policial ao mesmo tempo efetiva contra o tráfico e respeitosa com os usuários.

Fusão de PECs indica a perda de força das reformas – Opinião | Valor Econômico

As reformas tendem também a sair do radar do Congresso

O Plano Mais Brasil, com suas três propostas de emendas constitucionais, será jogado fora pelo Congresso e transformado em uma só PEC cujos termos definitivos ainda não são conhecidos. Pelas diferentes versões, o objetivo de conter gastos desapareceu para dar lugar à busca a todo custo de maneiras de se fazer o contrário - aumentá-los - e retirá-los da prisão do teto. Em um dos esboços, aparentemente provisório, o relator, senador Márcio Bittar (MDB-AC), sugeriu que da nova PEC resultará uma economia pífia de R$ 450 milhões. Ao que tudo indica, uma ala do governo voltou a atuar para obter projetos extra-teto, sem se preocupar com o esforço de austeridade.

O Senado pode matar as propostas do governo com relativa facilidade, pois este mostrou descoordenação, falta de interesse do Planalto, e desavenças entre ministérios com Paulo Guedes, da Economia, responsável pelas propostas originais das três PECs. A mais potente e urgente tinha acertadamente o nome de Emergencial, mas após sua apresentação ao Congresso foi solenemente ignorada, não ganhando prioridade sequer de Guedes.

A PEC do Pacto Federativo, para disciplinar a relação da União com Estados e municípios e estabilizar suas finanças submergiu na versão aglutinada, mas não será surpresa se ressurgir com propostas de mais auxílio para os entes federativos. A PEC dos fundos é a única que prometia dinheiro vivo para já e portanto foi alvo de atenções especiais da ala “desenvolvimentista” do governo e dos congressistas que gostam de obras e detestam contenção de despesas.

Originalmente, os estimados R$ 300 bilhões que estão à disposição desses fundos, que seriam na maioria extintos, deveriam ser usados para abater a dívida pública. Na primeira versão que circulou agora no Congresso, porém, esse dinheiro foi parar na transposição do São Francisco, rodovias e ferrovias e outras obras dos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura, além de projetos de erradicação da pobreza.

A versão seguinte veio pobre de economias. A PEC Emergencial previa a redução de 25% dos salários e da jornada dos servidores públicos, medida que seria capaz de poupar pelo menos R$ 25 bilhões. Esse corte seria adicional ao da lei 173, que congelou salários e aumento de despesas com pessoal como contrapartida ao auxílio financeiro dado pela União a Estados e municípios. O corte de salários e jornada simplesmente sumiu e a ênfase passou a recair em outra medida da PEC, a redução dos subsídios a 2% do PIB em cinco anos. Hoje benefícios e incentivos tributários consomem de 4,5% a 5% do PIB e no orçamento de 2020, R$ 348 bilhões. Nas últimas duas LDOs havia a previsão de corte dos subsídios de 10% ao ano - foram aprovadas e nada aconteceu.

Há mais surpresas - e portas abertas para facilitar despesas. Pela versão corrente da PEC, os créditos suplementares, a porta de saída para “desrespeitar” legalmente a “regra de ouro”, que proíbe aumento do endividamento para pagar gastos correntes, serão mais expeditos. Esses créditos já foram usados por três anos e, no orçamento de 2020, aniquilado pela pandemia, mais de R$ 350 bilhões em gastos dependiam do aval do Congresso. Na PEC, dispensa-se a aprovação posterior do Congresso, que já estará dada na votação do orçamento.

Da mesma forma, a utilização do dinheiro dos fundos ainda não encontrou seu destino. Depois de saltar fora do teto de gastos, a versão que não mais permite isso a coloca como de uso livre pelo governo, supondo-se que estarão submetidas ao limite. A ideia principal, de abater dívidas, desapareceu, ao mesmo tempo em que sumiu a intenção de criar um programa social mais robusto.

Paulo Guedes apresentou as três PECs, mas não focou em nenhuma, nem a que qualificou de emergencial, que estabelecia corte de salários do funcionalismo, um problema do qual o presidente Jair Bolsonaro quer distância. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ficou pregando no deserto sobre a necessidade de votar essa PEC antes do orçamento, pois sua aprovação abriria espaço inclusive para programas sociais. Enquanto dizimavam seu Mais Brasil, Guedes fez nova pregação por mais flexibilização das regras trabalhistas.

O destino das PECs indica que, ao fim de dois anos de mandato de Bolsonaro, e início da corrida pela reeleição, as reformas, que enfrentam a inapetência do presidente, tendem também a sair do radar do Congresso - possivelmente mesmo que o candidato governista à presidência da Câmara seja o vencedor da atual disputa.

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