Sob
o comando do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde transformou-se em
cidadela do xamanismo bolsonarista
Consta que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, é especialista em logística. Que a sorte poupe o Brasil de uma guerra em que esse intendente seja o responsável por encaminhar à linha de frente os suprimentos necessários para a batalha. A julgar pelo seu desempenho na guerra contra o coronavírus, seríamos massacrados antes mesmo de chegar o primeiro carregamento de cantis.
Quando
o general Pazuello assumiu interinamente o Ministério da Saúde, em 16 de maio
passado, o Brasil contabilizava 15.633 mortos pela covid-19; quando se tornou o
titular da pasta, em 16 de setembro, o total já chegava a 134.106 mortos;
agora, o número caminha velozmente para a marca de 180 mil. Ou seja, sob a
gestão do intendente Pazuello, o Brasil viu o número de mortos mais que
decuplicar. Uma marca e tanto, com poucos paralelos no mundo.
A
progressão geométrica da pandemia no Brasil é resultado direto do modo
irresponsável como o governo de Jair Bolsonaro vem lidando com a crise desde o
início. Já está gravado nos anais da infâmia nacional o dia em que Bolsonaro
qualificou a covid-19 de “gripezinha”, bem como o momento em que o presidente
cobrou de seus governados que deixassem de ser “maricas” e que enfrentassem a
doença “de peito aberto”.
Mas Bolsonaro não se limitou a ofender os brasileiros. Colaborou decisivamente para reduzir a capacidade do Estado de responder às demandas provocadas pela pandemia, a começar pelo fato de que trocou de ministro da Saúde duas vezes no meio da crise – e tudo porque os anteriores, ambos médicos, insistiam em se socorrer da ciência para poupar vidas em vez de fingirem que a pandemia não existia, como queria Bolsonaro.
O
atual ministro da Saúde, que ficou nada menos que quatro meses como interino,
ganhou a titularidade, a despeito de sua flagrante falta de qualificação para o
cargo, porque deve ter convencido Bolsonaro de que ali estava um soldado raso
disposto a fazer tudo o que o chefe mandasse, mesmo que mais alguns milhares de
“maricas” morressem no caminho, como de fato aconteceu.
O
despreparo técnico e ético do ministro Pazuello ficou explícito quando este
voltou atrás do anunciado compromisso de adquirir a vacina que está sendo
desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, depois que o presidente
Bolsonaro o desautorizou de forma vexatória. Em vez de entregar o cargo, como
faria qualquer um com o mínimo de responsabilidade, bom senso e amor próprio,
Pazuello aceitou a humilhação: “Um manda, o outro obedece”, explicou o submisso
ministro ao lado do presidente.
Assim,
sob o comando do general Pazuello, o Ministério da Saúde transformou-se em
cidadela do xamanismo bolsonarista, deixando de organizar os esforços nacionais
de combate à pandemia. Não fosse a iniciativa isolada de governadores e
prefeitos, o País estaria completamente ao deus-dará justamente no momento em
que a doença dá sinais de recrudescimento.
Mas
o general Pazuello, não contente em descumprir o papel que cabe ao ministro da
Saúde na prevenção da doença, parece empenhado também em sabotar os esforços
dos que se mobilizam para conseguir imunizar a população, só porque Bolsonaro
os considera seus inimigos. A respeito da vacina produzida pelo Instituto
Butantan, por exemplo, o ministro disse que a autorização para sua aplicação
pode levar até 60 dias, como se não houvesse nenhuma urgência, e que ela só
será comprada e distribuída pelo governo federal “se houver demanda”.
O
insulto aos brasileiros não parou por aí. O ministro que apresentou um plano
pífio de vacinação informou que “compete ao Ministério da Saúde realizar o
planejamento e a vacinação em todo o Brasil”, e não aos Estados. Ora, os
Estados tomaram a iniciativa de planejar a vacinação justamente porque o
governo federal, inspirado na entropia bolsonarista, foi até agora incapaz de
fazê-lo.
Para
completar, o ministro Pazuello, sem nada a oferecer a não ser a verborreia
típica de seu chefe, apelou: “Erguer a cabeça, dar a volta por cima é um padrão
brasileiro. É diante de uma crise que criamos soluções para avançar e temos que
acreditar que podemos vencer. Vamos ter fé. Tudo isso vai passar”. Vai, mas, se
depender do ministro da Saúde e do presidente, teremos ainda uma longa e penosa
temporada no purgatório.
A tirania chavista se blinda – Opinião | O Estado de S. Paulo
Agora,
como em Cuba e na Nicarágua, regime domina os Três Poderes e as Forças Armadas
Caiu
o último bastião da democracia venezuelana. Nas “eleições” – com muitas aspas –
de domingo passado, a ditadura de Nicolás Maduro recuperou o controle do
Congresso. A janela de oportunidades aberta há cinco anos, quando a oposição
ganhou a maioria absoluta no Parlamento, foi trancada com o mais duro ferrolho.
Agora a Venezuela se junta a Cuba e Nicarágua como os únicos países no
continente americano em que um regime domina os Três Poderes e as Forças
Armadas.
A
vitória da oposição nas eleições de 2015 foi quase acidental: o regime
chavista, então há 16 anos no poder, sentiu-se tão confortável em sua tirania
que acabou relaxando o aparato de fraude e repressão. Passado o susto, ele não
tardou a apertar o torniquete. As marionetes bolivarianistas na Suprema Corte
vetaram todas as leis aprovadas pelo Congresso e Maduro fabricou uma
“Assembleia Constituinte” para servir como Legislativo de fachada.
Em
2018, em novas “eleições” presidenciais, Maduro ganhou um mandato de mais seis
anos. Alegando fraude, o presidente oposicionista do Congresso, Juan Guaidó,
declarou-se em 2019 presidente da Venezuela, e foi reconhecido como tal por
mais de 50 países, incluindo os EUA, quase todos os membros da União Europeia e
as maiores democracias da América Latina.
O
regime de Donald Trump apertou suas sanções, na esperança de que Guaidó se
aproveitasse da revolta do povo venezuelano e mobilizasse um levante com os
descontentes nas Forças Armadas. O levante chegou a ser ensaiado, mas malogrou.
Entre os subornos e a repressão, os resquícios de resistência no Exército foram
desmantelados.
A
oposição chegou em 2020 desacreditada e dividida. A maioria dos seus líderes já
acompanhara os 5 milhões de venezuelanos – 1/6 da população – que desde 2013 se
refugiaram no exterior. Maduro, que já defenestrara os oposicionistas no Conselho
Nacional Eleitoral, estabeleceu líderes biônicos para três dos maiores partidos
da oposição. Uma ala liderada por Henrique Capriles participou do pleito,
enquanto o bloco de Guaidó optou pelo boicote.
A
abstenção foi expressiva. Os números do próprio governo apontam que quase 70%
dos eleitores não foram às urnas – a oposição fala em 85%. Guaidó e seus
correligionários estão promovendo um “referendo” na rede digital. Mas é difícil
vislumbrar ganhos nessa estratégia. EUA, Reino Unido e alguns países latino-americanos,
incluindo o Brasil, declararam que manterão o reconhecimento a Guaidó como
presidente, mas na prática é provável que a sua legitimidade se deteriore
gradualmente até desaparecer. Na própria Venezuela, a sua popularidade, embora
alta comparada aos 14% de Maduro, caiu em pouco tempo de 60% para 30%.
Há
quem veja alguma esperança na ascensão de Joe Biden. Mas qualquer mudança
dependeria de um concerto diplomático mais do que improvável com apoiadores do
regime chavista, como Turquia, Irã e principalmente Rússia e China. No curto
prazo, Biden deve fazer pouco mais do que aliviar a crise humanitária agravada
pelas sanções de Trump. Já em relação ao regime, mais realistas são as
apreensões do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe: “Quando eu era jovem, todo
ano se dizia ‘neste ano a revolução cubana cairá’. Mas ela se estabilizou e
perdemos três gerações. É doloroso, para mim, pensar que a história se repetirá
na Venezuela”.
Mas
o que é dor para alguns, é gozo para outros. Em nota, o Partido dos Trabalhadores
celebrou a “grande manifestação da vontade popular” contra os “golpistas” e o
“imperialismo”. A vontade popular brasileira, é verdade, varreu o lulopetismo
nas eleições municipais, mas nunca é demais lembrar que ele ainda tem a maior
bancada na Câmara dos Deputados, disputou um quinto mandato consecutivo e se
autoproclama a liderança de uma “frente democrática ampla” para 2022. Não se
pode deixar de pensar o quanto a “festa da democracia” petista – caso os freios
e contrapesos brasileiros tivessem sido desintegrados como foram na Venezuela –
seria semelhante ao funeral da democracia de Caracas.
Cracolândia, uma chaga aberta – Opinião | O Estado de S. Paulo
Dificuldade
para acabar com problema não pode ser sinal de rendição do poder público
“É uma situação insana e inadmissível. Quando eles querem fazer bagunça, fazem. Alguém deveria se debruçar sobre a situação da área para tomar consciência do que isso representa.” O dramático relato de uma moradora da região da Cracolândia, no centro de São Paulo, retrata muito bem uma ferida aberta há demasiado tempo na maior cidade do País.
De
fato, é inadmissível que o poder público não seja capaz de impor a ordem em um
espaço tão circunscrito. Quando haverá uma solução definitiva para um problema
que tanto aflige os paulistanos? Sucessivos prefeitos já passaram pelo Edifício
Matarazzo e elaboraram seus planos para acabar com a degradada região da
Cracolândia, todos sem sucesso, como qualquer um é capaz de constatar com os
próprios olhos. Só o drama dos moradores, comerciantes, dependentes químicos,
traficantes e transeuntes da região central é perene.
Na
tarde de terça-feira passada, um grupo de usuários de crack promoveu mais um
arrastão que levou pânico aos motoristas parados no congestionamento na Rua
Helvétia com a Conselheiro Nébias. Dezenas de homens e mulheres visivelmente
fora de si apedrejaram carros, chegando a entrar em alguns deles, e levaram
tudo o que conseguiram carregar dos motoristas. Estes, aterrorizados,
aceleraram seus veículos quando podiam e avançavam sobre as calçadas. Foi um
milagre não ter havido mortos ou feridos com gravidade.
Noticiou-se
que o arrastão teria começado após uma operação da Guarda Civil Metropolitana
(GCM) na região. A verdade é que a irrupção de violência na Cracolândia não
precisa de uma causa. Quando quer “bagunçar”, como relatou a moradora ao Estado,
o grupo que lá está “bagunça”. E não raras vezes atiçado pelos próprios
traficantes que atuam na região, que têm todo o interesse em usá-los como uma
espécie de contenção às ações de repressão ao tráfico.
A
bem da verdade, a Cracolândia hoje não é mais o que já foi em um passado
recente, uma terra de ninguém onde milhares de pessoas sem qualquer controle
sobre seus atos praticamente vegetavam em uma área confinada à espera da
próxima dose de droga para aplacar sua dependência. Políticas públicas de
acolhimento social, atendimento médico e psicológico, combate ao tráfico de
drogas e reurbanização da região mitigaram o problema, com resultados pontuais,
mas, como está claro, não o resolveram. Hoje, pode-se dizer que não há mais uma
Cracolândia, mas pequenas “Cracolândias” em algumas áreas da cidade.
É
dever da Prefeitura de São Paulo, com o apoio do governo do Estado no que for
cabível, traçar um plano para, se não acabar de imediato com a Cracolândia, ao
menos reduzir danos e projetar a reinserção daquela área degradada à vida da cidade
no futuro. Estima-se que a população que frequenta a Cracolândia diariamente
para consumir drogas – em sua maioria homens, negros ou pardos e com idade
média de 35 anos – seja de, aproximadamente, 1.700 pessoas. Há que se entender
as razões que levaram essas pessoas à situação tão degradante e traçar
políticas públicas que, enfim, deem uma solução definitiva para um flagelo que,
antes de tudo, é humanitário.
A
solução para o problema da Cracolândia passa, necessariamente, por uma política
de longo prazo que combine ações de assistência social, atendimento médico,
suporte psicológico aos dependentes, reurbanização e, não menos importante, um
combate incessante ao tráfico de drogas.
O
crack há muito deixou de ser um problema da cidade de São Paulo. De acordo com
o Observatório do Crack, da Confederação Nacional de Municípios (CNM), a droga
está presente em 558 dos 645 municípios de São Paulo.
É
de reconhecer que o problema da Cracolândia é de difícil solução. Envolve a
brutal dependência química, dramas sociais e familiares muito particulares e a
expansão cada vez maior do tráfico de drogas. A dificuldade, no entanto, jamais
poderá servir como sinal de rendição do poder público.
Reforma do Estado deveria incluir todas as carreiras – Opinião | O Globo
Pesquisa
revela apoio elevado no Congresso a mudanças que também atinjam a elite do
funcionalismo
A
proposta de reforma administrativa encaminhada pelo Executivo ao Congresso foi
um avanço, mas é tímida em vários aspectos. Poupa os servidores da ativa,
conserva regalias em carreiras tidas como “típicas de Estado” (como auditores,
policiais ou diplomatas) e mantém intocados aqueles identificados como “membros
de Poder” (juízes, promotores, procuradores ou parlamentares).
É
verdade que uma reforma dessa natureza tem vários objetivos. Entre os
principais, conferir racionalidade à gestão do pessoal, melhorar a qualidade do
serviço público e reduzir o desperdício de recursos que faz do Estado
brasileiro um dos mais caros e ineficientes do mundo. Mas simplesmente não há
lógica em promover mudanças que, para as categorias que formam a elite do funcionalismo,
preservam os privilégios mais absurdos (como férias com mais de 30 dias,
promoções automáticas ou aposentadoria como punição).
Um
dos argumentos usados pelo governo é que a manutenção facilitaria a tramitação
do texto, pois pouparia os parlamentares da pressão das corporações incrustadas
no Estado, sempre alertas para resistir a mudanças. Ora, trata-se de um
argumento frágil, como demonstra uma pesquisa realizada pelo Instituto FSB com
170 parlamentares (143 deputados e 27 senadores, distribuídos proporcionalmente
às bancadas partidárias).
Nada
menos que 73% da amostra se disseram contra deixar de fora das novas regras do
funcionalismo juízes, procuradores, promotores, parlamentares e militares. Para
72%, deve ser criado um novo modelo de avaliação de desempenho com a
possibilidade de demissão. Para 57%, devem acabar, em todas as carreiras, a
promoção automática por tempo de serviço e as férias de mais de 30 dias. Mesmo
o fim da estabilidade, que costuma sofrer resistência feroz das corporações do
funcionalismo, é apoiado por 54% (com exceção das carreiras típicas de Estado,
para as quais o mais razoável mesmo seria vigorar uma regra própria, capaz de
proteger os funcionários de ameaças para garantir sua independência).
No
geral, 62% dos congressistas se disseram favoráveis à reforma (64% na Câmara e
53% no Senado). Sempre se pode argumentar que a amostra não é representativa,
que os parlamentares evitam responder de modo honesto ou que, na hora de
votarem para valer, as pressões corporativas se farão sentir com mais força.
Mesmo assim, o nível de apoio a um tema que sempre foi visto como “difícil” ou
“polêmico” é uma notícia positiva.
Trata-se
de um motivo bastante persuasivo não apenas para que Executivo e Legislativo
deem prioridade máxima à reforma, mas para que ela contemple todas as
categorias de servidores. Por que mesmo o governo demora tanto para acelerar a
votação? A única explicação plausível é que o presidente Jair Bolsonaro não
acredita na reforma ou não quer pagar seu custo político. O custo social e
econômico da omissão em tema tão urgente será bem maior.
Falta
d’água é prova eloquente de que Cedae precisa ser privatizada – Opinião | O
Globo
Na
capital, desabastecimento atinge 30 bairros. Problema só deve ser reparado às
vésperas do Natal
Há
quase um mês, cerca de um milhão de moradores de 30 bairros da capital e de
três municípios da Baixada Fluminense (Nilópolis, Mesquita e São João de
Meriti) enfrentam problemas de abastecimento de água. Nada a ver com as altas
temperaturas típicas desta época do ano — até porque elas estão moderadas. A
seca que afeta a Região Metropolitana está ligada às intempéries da Cedae, e a
sua ineficiência crônica, não aos humores do tempo.
Desde
14 de novembro, uma falha num conjunto de bombas do Lameirão limita em 75% a
capacidade de operação da estação elevatória, na Zona Oeste do Rio. Como o
problema só deve ser solucionado entre 15 e 20 de dezembro, a Cedae optou por
fazer rodízio no fornecimento. Não adiantou. Em plena pandemia, muitos ficaram
sem água, e caminhões-pipa passaram a fazer parte da paisagem nas zonas Norte,
Sul e Oeste.
Em
entrevista à Rádio Melodia, o governador em exercício, Cláudio Castro, pediu
desculpas e disse que os moradores prejudicados terão desconto nas contas de
água — só faltava terem que pagar o que não receberam. Disse que houve uma
“fatalidade”, mas que isso não exime o governo de assumir responsabilidade pelo
problema.
A
companhia alegou dificuldades para obter matéria-prima durante a pandemia e
fazer o reparo dos motores. Não há acaso nessa história. Como mostrou
reportagem do GLOBO, uma das sete bombas estava quebrada desde dezembro de
2018. Só foi enviada ao conserto em abril, 16 meses depois. Se já estivesse
funcionando, os prejuízos seriam menores. A Cedae diz que apura os motivos da
falha de manutenção. Numa estatal, não deve ser tão difícil descobrir onde está
o problema: faltam recursos para investimento.
A
indigência do serviço prestado pela Cedae, que atende a 64 dos 92 municípios do
estado, é mais uma prova da necessidade de privatizá-la o quanto antes. O
lançamento do edital de concessão, condição do acordo fechado pelo Rio com a
União para ter acesso ao Regime de Recuperação Fiscal, está previsto para o
próximo dia 18. Na modelagem feita pelo BNDES, a Cedae ficará responsável
apenas pela produção e tratamento da água.
Há
pouco mais de um mês, Castro questionara a privatização, mas pelo menos recuou
da insensatez. Na terça, admitiu que o estado não teria recursos — estimados em
R$ 40 bilhões — para universalizar os serviços, como prevê o marco do
saneamento. A questão é simples. Uma companhia de água e esgoto tem que
fornecer água e coletar e tratar esgoto. Se não consegue fazer o básico,
precisa ceder a vez. Nenhum argumento em favor da urgência da privatização é
tão eloquente quanto a falta d’água nas torneiras.
Ameaça inflacionária – Opinião | Folha de S. Paulo
Alta
do IPCA tem motivos temporários, mas demanda cuidados; BC acerta nos juros
Com
a alta de 0,89%
observada em novembro, a inflação ao consumidor medida pelo IPCA e
acumulada em 12 meses atingiu 4,31% e superou a meta de 4% fixada para 2020.
Trata-se
de uma mudança e tanto em relação ao quadro vigente há poucos meses, quando a
preocupação dominante do Banco Central era com a recessão e o risco de a alta
dos preços ficar muito abaixo de seus objetivos por longo período.
As
pressões ainda estão concentradas primordialmente em alimentação —que sobe
15,7% no ano— e parecem decorrer sobretudo de fatores temporários, mas o
desconforto cresceu e o risco de repasses mais generalizados persiste.
Um
dos principais problemas foi a combinação da alta forte nos preços em dólar das
matérias-primas com a desvalorização da moeda nacional, que chegou à casa dos
30% nos piores momentos da crise.
A
escalada das cotações de grãos e da cadeia de proteínas, em razão da demanda
chinesa e do impulso local propiciado pelo auxílio emergencial, acabou sendo
transmitida rapidamente para o varejo.
Em
algumas indústrias, como petroquímica, siderurgia, cimento e mobiliário, além
do impacto de insumos dolarizados, a produção não conseguiu acompanhar o
crescimento rápido e surpreendente da demanda. Como muitos desses setores são
pouco competitivos, ficou facilitado o repasse de preços aos compradores.
Tais
pressões são em grande medida temporárias e devem perder força em 2021. O IPCA
acumulado em 12 meses ainda se manterá elevado no primeiro semestre, mas poderá
recuar até o final do ano para um patamar em torno da meta do Banco Central
para o período, fixada em 3,75%.
Para
tanto contribui a ociosidade no mercado de trabalho, que deve manter a inflação
de serviços em baixa. O fim do auxílio emergencial e a perspectiva de alguma
valorização do real ante ao dólar também podem conter o avanço dos preços dos
alimentos e de outros itens que subiram neste ano.
O
ambiente internacional de juros baixos e liquidez abundante sugere uma
perspectiva favorável para a economia mundial, incluindo países emergentes.
Tudo
isso dependerá, porém, de sinais favoráveis do governo na gestão da economia.
Se até agora o fenômeno inflacionário pode ser primordialmente caracterizado
como efêmero, erros que reforcem novamente a desconfiança em relação ao
compromisso com a solidez das contas públicas podem ter consequências mais
duradouras.
Até
que fiquem claras quais serão as opções do governo, o BC faz bem em aguardar.
Foi acertada a decisão do Copom de manter a taxa
básica de juros em 2% ao ano, pois no momento há razões que suportam
uma melhor perspectiva para a inflação no ano que vem.
A
chaga da cracolândia – Opinião | Folha de S. Paulo
Arrastão
em SP volta a expor drama que exige ação policial e assistência social
O medonho
arrastão ocorrido na terça-feira (8) na região de São Paulo
tristemente conhecida como cracolândia constitui um lembrete amargo da tragédia
social que há mais de duas décadas se desenrola no coração da metrópole.
Embora
se reconheça a complexidade do problema, nada justifica que seguidos governos
municipais e estaduais tenham sido incapazes de conceber um plano integrado e
abrangente para enfrentar tamanho descalabro.
No
mais das vezes, enxuga-se gelo. Reprimem-se os usuários maltrapilhos, e eles se
espalham pelo centro da cidade, voltando algum tempo depois. Prendem-se
traficantes, aparecem outros.
Recorde-se,
por exemplo, a espetaculosa ação levada a cabo em 2017, quando o então prefeito
João Doria (PSDB) apressou-se em anunciar o fim da cracolândia apenas para ser
desmentido pela realidade em questão de semanas.
Não
que a polícia deva abster-se de uma atuação firme na região. Mas, em vez de
ações brutais de repressão, que antes produzem mais violência que resultados,
deve-se priorizar ações de prevenção e inteligência, além de extirpar os
eventuais casos de suborno de agentes públicos para que tolerem delitos.
A
cracolândia, contudo, transcende a questão da segurança pública. A ação
policial é inócua sem o complemento de estratégias de atendimento a uma população
extremamente vulnerável.
Nos
últimos anos, o pêndulo da atuação sanitária vem oscilando entre a redução de
danos e a abstinência com internação.
Na
primeira baseou-se o programa De Braços Abertos, implantado pelo petista
Fernando Haddad (2013-2016). Seus princípios: diminuir o consumo de crack, dar
moradia e trabalho aos usuários e atraí-los para tratamento voluntário.
No
início da gestão Doria na prefeitura, o programa deu lugar ao Redenção, que
privilegiou a abstinência como precondição da assistência social e médica. Já
com Bruno Covas (PSDB), a redução de danos voltou a constar, ao menos no papel,
no cardápio de terapias oferecidas pelo poder público.
Como
demonstra a experiência internacional, aliar as duas abordagens de tratamento
parece ser o caminho mais promissor, o qual deve necessariamente ser
complementado com uma ação policial ao mesmo tempo efetiva contra o tráfico e
respeitosa com os usuários.
Fusão de PECs indica a perda de força das reformas – Opinião | Valor Econômico
As
reformas tendem também a sair do radar do Congresso
O
Plano Mais Brasil, com suas três propostas de emendas constitucionais, será
jogado fora pelo Congresso e transformado em uma só PEC cujos termos
definitivos ainda não são conhecidos. Pelas diferentes versões, o objetivo de
conter gastos desapareceu para dar lugar à busca a todo custo de maneiras de se
fazer o contrário - aumentá-los - e retirá-los da prisão do teto. Em um dos
esboços, aparentemente provisório, o relator, senador Márcio Bittar (MDB-AC),
sugeriu que da nova PEC resultará uma economia pífia de R$ 450 milhões. Ao que
tudo indica, uma ala do governo voltou a atuar para obter projetos extra-teto,
sem se preocupar com o esforço de austeridade.
O
Senado pode matar as propostas do governo com relativa facilidade, pois este
mostrou descoordenação, falta de interesse do Planalto, e desavenças entre
ministérios com Paulo Guedes, da Economia, responsável pelas propostas
originais das três PECs. A mais potente e urgente tinha acertadamente o nome de
Emergencial, mas após sua apresentação ao Congresso foi solenemente ignorada,
não ganhando prioridade sequer de Guedes.
A
PEC do Pacto Federativo, para disciplinar a relação da União com Estados e
municípios e estabilizar suas finanças submergiu na versão aglutinada, mas não
será surpresa se ressurgir com propostas de mais auxílio para os entes
federativos. A PEC dos fundos é a única que prometia dinheiro vivo para já e
portanto foi alvo de atenções especiais da ala “desenvolvimentista” do governo
e dos congressistas que gostam de obras e detestam contenção de despesas.
Originalmente,
os estimados R$ 300 bilhões que estão à disposição desses fundos, que seriam na
maioria extintos, deveriam ser usados para abater a dívida pública. Na primeira
versão que circulou agora no Congresso, porém, esse dinheiro foi parar na
transposição do São Francisco, rodovias e ferrovias e outras obras dos
ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura, além de projetos
de erradicação da pobreza.
A
versão seguinte veio pobre de economias. A PEC Emergencial previa a redução de
25% dos salários e da jornada dos servidores públicos, medida que seria capaz
de poupar pelo menos R$ 25 bilhões. Esse corte seria adicional ao da lei 173,
que congelou salários e aumento de despesas com pessoal como contrapartida ao
auxílio financeiro dado pela União a Estados e municípios. O corte de salários
e jornada simplesmente sumiu e a ênfase passou a recair em outra medida da PEC,
a redução dos subsídios a 2% do PIB em cinco anos. Hoje benefícios e incentivos
tributários consomem de 4,5% a 5% do PIB e no orçamento de 2020, R$ 348
bilhões. Nas últimas duas LDOs havia a previsão de corte dos subsídios de 10%
ao ano - foram aprovadas e nada aconteceu.
Há
mais surpresas - e portas abertas para facilitar despesas. Pela versão corrente
da PEC, os créditos suplementares, a porta de saída para “desrespeitar”
legalmente a “regra de ouro”, que proíbe aumento do endividamento para pagar
gastos correntes, serão mais expeditos. Esses créditos já foram usados por três
anos e, no orçamento de 2020, aniquilado pela pandemia, mais de R$ 350 bilhões
em gastos dependiam do aval do Congresso. Na PEC, dispensa-se a aprovação
posterior do Congresso, que já estará dada na votação do orçamento.
Da
mesma forma, a utilização do dinheiro dos fundos ainda não encontrou seu
destino. Depois de saltar fora do teto de gastos, a versão que não mais permite
isso a coloca como de uso livre pelo governo, supondo-se que estarão submetidas
ao limite. A ideia principal, de abater dívidas, desapareceu, ao mesmo tempo em
que sumiu a intenção de criar um programa social mais robusto.
Paulo
Guedes apresentou as três PECs, mas não focou em nenhuma, nem a que qualificou
de emergencial, que estabelecia corte de salários do funcionalismo, um problema
do qual o presidente Jair Bolsonaro quer distância. O presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, ficou pregando no deserto sobre a necessidade de votar essa PEC
antes do orçamento, pois sua aprovação abriria espaço inclusive para programas
sociais. Enquanto dizimavam seu Mais Brasil, Guedes fez nova pregação por mais
flexibilização das regras trabalhistas.
O destino das PECs indica que, ao fim de dois anos de mandato de Bolsonaro, e início da corrida pela reeleição, as reformas, que enfrentam a inapetência do presidente, tendem também a sair do radar do Congresso - possivelmente mesmo que o candidato governista à presidência da Câmara seja o vencedor da atual disputa.
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