Solução encontrada por Bolsonaro para desafiar limites a seu poder foi começar a criar um Estado paralelo, em que as normas não são as inscritas na Constituição
“É melhor já ir se acostumando”, dizia um dos slogans da campanha de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018, num infame jogo de palavras com o nome do candidato para advertir o País sobre o que estava por vir. E, de fato, parece que uma parte considerável dos brasileiros já se acostumou à chocante degradação moral liderada pelo presidente Jair Bolsonaro e escolheu ignorar ou relativizar as robustas provas de que ele não tem - como jamais teve - a menor condição de exercer a Presidência.
Em qualquer país civilizado, o teor da reunião do presidente com seus ministros no dia 22 de abril, tornado público por determinação judicial, teria escandalizado todos, não só pelos múltiplos delitos ali cometidos e revelados, mas por explicitar a transformação da Presidência da República em propriedade privada de Bolsonaro, da qual, como um monarca absoluto, imagina poder dispor como bem entender. Aqui e ali, no entanto, houve gente disposta a dizer que nada de mais se passou na reunião - nem crimes nem desafio às instituições, só alguns exageros verbais do presidente e de seus ministros mais entusiasmados, pouco comuns até em reunião de condomínio.
A história está repleta de exemplos de sociedades que, em nome do saneamento da política, permitiram que gângsteres chegassem ao poder e, uma vez lá, por meio da propaganda e da intimidação, transformassem seus crimes em atos virtuosos, naturalizando sua imoralidade. Como consequência, todos os que tentassem impedi-los, fossem instituições ou partidos, eram, estes sim, considerados criminosos.
Pois é exatamente o que se passa neste momento no Brasil. Conforme se vê na reunião ministerial de 22 de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo e de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Ou seja, delinquentes, no país dos bolsonaristas, são os que respeitam a lei e o bom senso. Tudo sob o olhar complacente do presidente da República - que por sua vez, em lugar de estimular o urgente debate sobre as medidas para conter a pandemia, que deveria ser sua única preocupação no momento, passou a destratar e ameaçar os ministros que não demonstrassem lealdade absoluta a ele e aos filhos, em constante detrimento da lei.
A solução encontrada por Bolsonaro para desafiar os limites a seu poder, bem ao estilo dos governos totalitários em que se inspira, foi começar a criar uma espécie de Estado paralelo, em que as normas que valem não são as inscritas na Constituição, mas as que vagam na sua cabeça. Conforme ele mesmo revelou na reunião ministerial, depois de se queixar de que os órgãos oficiais não lhe passam “informações”, Bolsonaro disse que dispõe de um “sistema de informações” particular: “Sistema de informações, o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm (informações) oficialmente desinformam”.
Para Bolsonaro e seus camisas pardas, o Estado brasileiro, com suas instituições e sua Constituição, só existe para frustrar suas intenções revolucionárias - razão pela qual, conforme a ideologia bolsonariana explicitada pelo presidente na reunião, esse Estado que lhe tolhe os movimentos é, na prática, uma “ditadura” contra o “povo” que ele diz encarnar. A tal “ditadura” se revela, segundo Bolsonaro, por meio de governadores que impõem quarentena, por meio de ministros do Supremo que o impedem de nomear um amigo para chefiar a Polícia Federal, por meio das instituições judiciais que investigam seus filhos e por meio dos órgãos que não lhe dão informações às quais o presidente legalmente não pode ter acesso.
Para lutar contra essa “ditadura” imaginária, Bolsonaro exige que o “povo” - isto é, a malta bolsonarista - se arme, conforme deixou claro na tal reunião. Em outras palavras, quer a formação de milícias armadas justamente para intimidar as autoridades do Estado que o bolsonarismo deseja destruir.
Foi assim que, num passado não muito distante, na Itália do pré-guerra ou na Venezuela contemporânea, líderes fascistas, aliados a uma elite pusilânime ou simplesmente arrivista, começaram a demolir, tijolo por tijolo, o Estado Democrático de Direito. Mais do que nunca, é prudente levar a História a sério.
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