Curioso
como, em meio ao horror nosso de cada dia, um mero tuíte — quase banal de tão
singelo — foi capaz de acionar meus sensores semianestesiados por um ano de
pandemia. “Confesso que estou exausta. Já escrevendo errado e com muita
angústia do que está por vir. É a primeira vez que tenho medo do que está
acontecendo”, dizia a postagem de Ethel Maciel, que eu nem sequer conhecia. Ela
é, entre outras qualificações, epidemiologista e professora da Federal do
Espírito Santo e dizia sentir tristeza pela falta de empatia geral no país.“O
pior está por vir. Se cuidem! Estamos à deriva”, concluiu sem se alongar.
O medo, como se sabe, é desde sempre a mais primal e potente emoção a mover todas as espécies, inclusive a humana. Estudiosos ensinam que os gregos da Antiguidade tinham tantas variantes para a palavra “medo” quanto são múltiplas as designações dos povos inuit para “neve”. Felizmente, Freud simplificou as coisas. Com ele aprendemos a distinguir o medo real (nossa resposta racional e compreensível à percepção de um perigo concreto), do medo neurótico (nossa expectativa movida a ansiedade, desencadeada por coisas tão inofensivas como uma sombra na calçada). O medo real, como o da professora Maciel, exige algum tipo de ação, seja fugir para se proteger, seja combater o perigo com as armas que tiver. O medo imaginário — aquele que interpreta coincidências como sinais letais e constrói cenários catastróficos — costuma resultar em paralisia.
Pois
Jair Bolsonaro, em sua cavalgada de presidente em precipício, se dedica a
inverter os sinais. Declara imaginária e neurótica a mortandade por Covid-19
que, de Norte a Sul, esvazia de vida o Brasil, enquanto acredita em suas
próprias insânias com medo real de perder o poder. Nada pior para um país do
que ser governado por um celerado em tempos de pandemia. Em todas as unidades
da Federação, o estoque de 11 medicamentos recomendados para a entubação de
pacientes (derradeiro recurso, antes do óbito) está minguando. Na Região Metropolitana
de Porto Alegre, uma falha na distribuição de oxigênio causou a morte de 6
doentes num só dia. No cemitério de uma cidade pernambucana de 140 mil
habitantes (Vitória de Santo Antão), corpos em decomposição amontoados a céu
aberto prenunciam o amanhã coletivo. Em São Paulo, a prefeitura inaugura três
“hospitais de catástrofe” para estancar a hemorragia de vidas — mais de 20 mil
na capital. De Teresina, chega a foto de um idoso esquálido que morreu no chão
de uma UPA não mais por falta de leito de UTI, ou de leito de enfermaria, mas
por falta de simples maca ou cadeira de plástico para “morrer na contramão”,
como diz a canção de Chico Buarque. São as entranhas do país expostas por um
presidente perverso e vigarista, que necessita de caos e fúria para existir.
Quanto maior o descontrole, mais cresce seu flerte obsessivo com a exumação do
“estado de sítio”.
Chefes
de Estado negacionistas houve vários no planeta infectado, com gradações
múltiplas de conveniência política, porém só Bolsonaro arrosta até hoje,
passado um ano de horror pandêmico, seu descrédito presidencial quanto ao
número de óbitos por Covid-19 no país. Segundo o colunista Lauro Jardim, a
insânia já contaminou o futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, antes mesmo
de sua posse. Em conversa privada com pelo menos um colega médico, Queiroga
teria manifestado a intenção de fazer blitzes em hospitais para aferir se as
UTIs estão realmente lotadas, se tem essa gente toda morrendo de Covid-19.
Então
cabem algumas perguntas: como não condenar um presidente que prega
“desobediência civil” a seus fiéis, para que resistam a medidas de isolamento
capazes de salvar suas vidas? Como não condenar um chefe do Executivo que finge
ameaçar o Judiciário com “ação dura” caso não consiga impedir governadores de
decretar lockdown? Como não condenar o presidente de um regime ainda
democrático que chama o Exército de seu? “O MEU exército não vai para a rua
para cumprir decreto de governador. Não vai”, garantiu Bolsonaro em tom
exaltado na sexta-feira. “Se o povo começar a sair de casa, entrar na
desobediência civil, não adianta chamar o Exército, porque MEU exército não
vai.”
Uma
última pergunta, talvez ainda mais pertinente, fica no ar: e se Bolsonaro não
estiver completamente celerado ao chamar o Exército brasileiro de seu?
Daí a conveniência de a sociedade manter seu justificado medo no âmbito do perigo real — aquele que demanda de cada um uma reação. No caso, seja para se proteger, seja para combater o sombrio conluio do presidente da República com o óbito do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário