EDITORIAIS
2022 traz oportunidade de recomeço
O Globo
O Ano-Novo é época de pensar em resoluções,
sonhar e planejar as metas para 2022, refletir sobre os acertos e erros de
2021, tecer novos planos. É também tempo de projetar o que faremos
conjuntamente, como sociedade, o que queremos como nação.
Em 2022 comemoraremos o bicentenário da
data em que Dom Pedro I, às margens plácidas do Ipiranga, proclamou a
Independência do Brasil. Nestes dois séculos, forjamos um país que evitou o
esfacelamento territorial, acabou com a escravidão, recebeu imigrantes de todos
os cantos do mundo, tornou-se plural, viu nascer polos de excelência em
diferentes áreas do saber e da economia, criou e expandiu sistemas de educação,
saúde e previdência. A partir dos anos 1980, consolidou a democracia, derrotou
a hiperinflação e ampliou a rede de proteção aos mais pobres.
Mesmo em momentos de extrema dificuldade, o
Brasil tem conseguido demonstrar sua força e resiliência. A magnitude dos
desafios enfrentados nos últimos dois anos foi gigantesca. Bem quando sofremos
a pior crise sanitária em pelo menos um século, o comando do Palácio do
Planalto é exercido por uma figura negacionista, incompetente e autoritária.
Com a saúde, o meio ambiente, a democracia, o crescimento econômico e o bom
senso sob intenso ataque, o Brasil mostrou que conta com instituições capazes
de resistir aos avanços do autoritarismo.
O Supremo Tribunal Federal e o comando das
Forças Armadas deram inúmeras demonstrações de que não permitirão que a
democracia seja atropelada. O Tribunal Superior Eleitoral respondeu à altura à
campanha difamatória contra as urnas eletrônicas e à tentativa de deslegitimar
o processo eleitoral. Parcela importante da sociedade civil, da classe política
e do empresariado se manifestou publicamente em defesa da democracia quando a
situação exigiu.
Mais recentemente, o Banco Central demonstrou ter independência para cumprir seu mandato de controlar a alta dos preços, apesar das pressões do governo. A sociedade tem dado exemplo de força na defesa da Amazônia, alvo de destruição acelerada no atual governo. Por fim, o povo brasileiro disse “não” ao negacionismo e foi em massa aos postos de saúde se vacinar contra a Covid-19. Mais uma vez o brasileiro demonstrou ser melhor que seu governo.
O país poderia ter avançado mais em 200
anos? Decerto que sim. Poderia ter resolvido mais problemas desde a
redemocratização? Sem dúvida. Deveria ter evitado os retrocessos desde 2019?
Com certeza. Refletir por que não progredimos na velocidade desejada nos
ajudará a pensar e a construir um futuro melhor. Não há tempo nem energia para
autocomiseração ou teorias derrotistas.
O ano de 2022 poderá representar uma
virada, pois traz a oportunidade para a eleição de um novo governo. O Brasil precisará
de alguém com visão de longo prazo, que saiba priorizar o mais importante, que
tenha competência para executar seus planos, que não seja uma fábrica de crises
desnecessárias, que deixe os empreendedores trabalhar e ataque as mazelas
sociais. Temos problemas demais para perder tempo com inépcia ou debates
ideológicos sem sentido que paralisam a cena política.
Antes de tudo, o Brasil precisa combater a
fome e a miséria que voltaram a se alastrar, desfazendo décadas de avanços nos
indicadores sociais. Será preciso resgatar as políticas de assistência social
bem-sucedidas e retomar nossa trajetória exitosa na educação.
Mais que isso, o Brasil precisará
consolidar uma agenda mínima de mudanças que nos permita crescer e gerar
empregos com equidade. Não bastará corrigir os inúmeros erros da atual
administração, em especial os estragos na proteção ambiental, na área fiscal ou
na educação.
Precisaremos ir além, fazendo deslanchar a
agenda de reformas sempre adiada — e sempre urgente. O Brasil exige um sistema
de tributos que estimule o investimento e a alocação eficiente dos recursos,
não o festival de privilégios e isenções que tornam nossos impostos injustos e
regressivos, punindo quem investe, quem trabalha e quem ganha menos.
É preciso promover uma ampla reforma
administrativa para aumentar a capacidade de gestão do Estado e melhorar a
qualidade dos serviços públicos. O país quer de suas lideranças a coragem de
enfrentar os privilégios incrustados na máquina do Estado, que se perpetuam à
custa do poder de influência das corporações do funcionalismo.
É necessário, além disso, provocar um
choque de eficiência com a abertura da economia a produtos importados e a
costura de acordos comerciais que abram mercados externos às mercadorias que o
Brasil é capaz de produzir melhor em virtude de suas vantagens comparativas.
É fundamental garantir a segurança jurídica
necessária ao florescimento de toda economia, com regras estáveis e uma Justiça
que funcione para todos. Que puna com rigor corruptos e criminosos do colarinho
branco, não apenas os desfavorecidos, perseguidos e mortos por uma polícia
despreparada em virtude de sua cor ou aparência.
Que em 2022 o Brasil consiga sair do atoleiro em que se enfiou em razão de anos de políticas equivocadas ou omissas, deste governo e dos anteriores. As urnas nos trarão essa oportunidade. Precisaremos saber aproveitá-la.
Pandemia, ano 3
Folha de S. Paulo
Covid não nos deixará logo, mas letalidade
menor deve permitir vida mais normal
O recorde
mundial de novos casos de Covid-19 registrado nesta semana,
passados quase dois anos do início da pandemia, serve como um lembrete
desagradável de que o coronavírus não irá desaparecer do planeta tão cedo.
Ao mesmo tempo, a constatação de que,
apesar da marca adversa, o número de mortes vem se mantendo em patamares baixos
alimenta as esperanças gerais de que o pior já tenha ficado para trás.
Na segunda-feira (27), a média móvel diária
de contaminações no mundo, que considera os sete dias anteriores, atingiu novo
pico de 854,6 mil casos, superando o recorde estabelecido em 25 de abril,
quando a vacinação ainda engatinhava na maioria dos países.
A escalada de infecções não ocorre de forma
homogênea no mundo. Vem sendo impulsionada sobretudo por nações do hemisfério
Norte, que agora vivem o inverno, mais propenso à propagação de doenças
transmitidas pelo ar.
Especula-se que a onda resulte do rápido
espraiamento da variante ômicron, que já representa a maioria dos casos nos EUA
e no Reino Unido. Estudos preliminares vêm mostrando que a cepa é várias vezes
mais contagiosa que o vírus original e suas versões anteriores.
Em reação, essas nações vêm encurtando o
prazo para a aplicação da dose de reforço, que, tudo indica, aumenta a proteção
contra a variante. Ao mesmo tempo, países como Alemanha, França, Portugal e
Holanda ampliaram as restrições para frear o aumento de casos.
A despeito do quadro preocupante no que
tange às contaminações, o avanço da vacinação e a agressividade aparentemente
menor da ômicron têm, até o momento, mantido os óbitos pela doença em nível
bastante abaixo do contabilizado em outras ondas. No começo da semana, a média
móvel de mortes diárias no mundo foi de pouco mais 6.400, número semelhante ao
de outubro de 2020.
Já o Brasil segue desorientado diante do
vexaminoso apagão de dados do Ministério da Saúde e da crônica falta de testes
no país. A desídia governamental, que torna impossível ter uma ideia precisa do
estágio da doença no país, é compensada pela ampla adesão à vacinação, sinal
inequívoco de que a população deu de ombros para o negacionismo estatal.
O Sars-CoV-2 certamente continuará
aturdindo o planeta em 2022. Encontrará, contudo, sistemas de saúde não só mais
experientes como também mais bem preparados, equipados com uma gama de vacinas
eficientes e novas drogas contra a doença sendo aperfeiçoadas.
Se formos capazes de utilizar bem todos os
recursos à disposição e nos mantivermos vigilantes, é possível que, neste ano,
enfim consigamos viver vidas mais normais.
Esperanças e riscos
Folha de S. Paulo
Economia global enseja otimismo cauteloso,
e o Brasil padece com más políticas
Tal como na entrada de 2021, as esperanças
para este ano estão voltadas para a superação da pandemia e para a retomada da
normalidade, na vida e na economia.
Com o avanço da vacinação, é plausível que
o mundo vislumbre a possibilidade de convivência com o vírus e assim possa
retomar gradualmente atividades ainda afetadas ao longo de 2022.
Se os melhores cenários para a doença se
confirmarem, haverá continuidade da expansão econômica, sobretudo nos serviços
mais intensivos em trabalho, e será possível reduzir o desemprego que grassa na
maior parte do mundo.
Já a permanência de restrições, se
necessária, também manterá a demanda por proteção social e trará novas
dificuldades para a gestão dos orçamentos públicos, com os riscos associados,
como inflação e descontrole financeiro.
A escalada de preços, aliás, é outro tema
que dominará as atenções. Em 2021 o choque inflacionário se revelou
mundialmente de modo mais amplo e persistente que o esperado. Agora, a
expectativa é de normalização gradual dos gargalos logísticos e de produção, o
que contribuiria para estabilizar o poder de compra.
Mas o risco de um fenômeno mais duradouro
está presente e já domina a ação dos principais bancos centrais do mundo,
levando a juros mais altos e condições financeiras mais restritivas.
O lado positivo é que as expectativas de
inflação de longo prazo ainda estão baixas, sugerindo que não será preciso
jogar a economia mundial numa nova recessão para conter os índices.
A atenção dos mercados financeiros estará
voltada para qualquer evidência que lance sombras sobre esse quadro ainda
benigno.
O ambiente internacional parece compatível
com um ciclo ainda longo de crescimento, embora condicionado a uma evolução
favorável da pandemia. As principais regiões do mundo devem ter crescimento.
Mesmo a China, que mantém tolerância zero com o vírus e enfrenta prolongada desaceleração
em setores importantes, ainda deve sustentar atividade vigorosa.
O panorama global, assim, não se revela
negativo para o Brasil, cujo desempenho dependerá do retorno a políticas
públicas minimamente consistentes em áreas fundamentais como saúde, educação e
gestão orçamentária. O governo Jair Bolsonaro não vai propiciar neste ano tal
esperança, que ficará condicionada ao debate eleitoral.
A responsabilidade do País
O Estado de S. Paulo.
O ano de 2022 é desafiador. O País será capaz de enfrentar responsavelmente os seus problemas? Talvez o grande perigo seja repetir erros do passado, insistindo em opções populistas
O ano de 2022 é desafiador. O País será
capaz de enfrentar seus problemas?
Ano Novo é tempo de esperança: de olhar
para a frente com otimismo, aprendendo com os erros do passado e renovando os
melhores sonhos para o futuro. Essa dinâmica pode ser aplicada não apenas na
vida pessoal e familiar, mas também nos rumos do País. E aqui o prognóstico
brota imediatamente: 2022 será um ano de grandes desafios, seja pela gravidade
da crise social e econômica – há muitos brasileiros passando fome –, seja pelas
decisões que a população terá de tomar nas eleições do segundo semestre.
Neste ano, muita coisa está em jogo. Não é
tanto saber se o próximo governo será de esquerda ou de direita ou se qual
parcela da população ficará contente com o resultado eleitoral. O tema é muito
mais grave. O País será capaz de enfrentar responsavelmente os seus problemas,
tanto os de curto prazo, como os de médio e longo prazos? A sociedade
brasileira será capaz de dar em 2022 os passos necessários para enfrentar, de
forma prioritária e responsável, a fome, a miséria, a falta de oportunidades
educativas e profissionais para tantos jovens, o desemprego que assola tantas
famílias?
Os últimos dois anos foram especialmente
difíceis. A pandemia de covid-19 tirou muitas vidas, impôs enormes restrições
econômicas e agravou questões sociais antigas, em especial reforçou desigualdades
e multiplicou vulnerabilidades. Junto a isso, e de forma ainda mais
desanimadora – pois a atuação federal podia ter sido muito diferente –, o
presidente Jair Bolsonaro esbanjou irresponsabilidade, negacionismo e absoluta
incapacidade de governar.
Para piorar, o Legislativo foi muitas vezes
conivente com o desequilíbrio do Executivo federal, além de se aproveitar da
falta de rumo do governo para fazer prevalecer interesses e modos pouco
republicanos. O orçamento secreto, em meio a uma pandemia – quando a ação
estatal deveria ser ainda mais transparente e mais informada por critérios
técnicos –, é sintoma paradigmático de um cenário que guarda poucas razões para
o otimismo.
Além disso, não se deve esquecer que esse
Executivo e esse Legislativo – que trouxeram tanta desesperança nos últimos
tempos – foram eleitos precisamente no pleito de 2018, marcado pelo desejo de
mudança e renovação por parte do eleitor. Ou seja, o cenário é, sem nenhum
exagero, profundamente desafiador. Abundam os motivos para a frustração com a
política, as condições sociais e econômicas são especialmente adversas e,
diante de tudo isso, o eleitor será instado a escolher os rumos do País.
Nessa situação, talvez o principal perigo
seja repetir os erros do passado, insistindo em opções populistas que, em vez
de oferecerem novas propostas e caminhos, reafirmam justamente as escolhas que
gestaram a atual crise. O bolsonarismo não foi solução para o lulopetismo.
Basta ver que Jair Bolsonaro tentou, tal como fez o PT, “ocupar” com seus
seguidores a máquina pública, sua rigorosa inaptidão para melhorar a eficiência
estatal e seu interesse exclusivo, desde que chegou ao Palácio do Planalto,
pela questão eleitoral. Da mesma forma, o lulopetismo não é solução para o
bolsonarismo.
Lula e Bolsonaro têm muitas diferenças, mas
possuem uma radical semelhança: os dois são parte do problema, tendo
contribuído, cada um a seu modo, para a atual crise social, econômica,
política, cívica e moral. Um dos aspectos mais perversos da similaridade entre
Lula e Bolsonaro é o modo como tratam as classes mais pobres. Uma vez que medem
tudo pelo interesse eleitoral, a vulnerabilidade social, em vez de ser
enfrentada responsavelmente, é usada como oportunidade eleitoreira. Para os
populistas, a autonomia do cidadão é obstáculo para a instauração do seu
projeto de poder.
Em 2022, o País tem o desafio de enfrentar
responsavelmente o drama social e econômico que recai sobre boa parte da
população. Em vez de cabresto político, a pobreza deve ser o grande estímulo
para políticas públicas responsáveis. É hora de cuidar generosamente dos mais
vulneráveis, é hora de construir soluções efetivas e sustentáveis. Basta de
retrocesso.
A ‘contrarrevolução democrática’
O Estado de S. Paulo.
A nossa geração tem o desafio de organizar
uma estrutura da comunicação digital que seja compatível com a democracia
No fim dos anos 90 era comum ler
articulistas entusiasmados com o formidável potencial da rede digital de
turbinar a democratização da informação e a participação democrática. Duas
décadas depois, há amplas evidências de agentes políticos manipulando eleições
por meio de instrumentos algorítmicos de publicidade das redes sociais, como
mensagens subliminares, microestímulos psicológicos ou ferramentas de
recompensas e punições em tempo real. Computando traços de personalidade,
disposições comportamentais, interesses, preocupações e vulnerabilidades,
mecanismos de Inteligência Artificial podem, por exemplo, identificar prováveis
eleitores de adversários políticos e bombardeá-los com conteúdo tóxico
projetado para dissuadi-los de ir às urnas.
Os mecanismos para provocar essas e outras
mudanças comportamentais em escala massiva foram forjados pelo novo sistema
econômico que Shoshana Zuboff, uma das principais pesquisadoras da Era da
Informação, denominou “Capitalismo de Vigilância”. Ele mantém elementos do
capitalismo tradicional – como propriedade privada, trocas comerciais e lucros –,
mas que só são concretizados através de relações de vigilância. Experiências
humanas outrora consideradas privadas são computadas, armazenadas como
propriedade privada e codificadas em dados comportamentais originariamente
manipulados a serviço de interesses comerciais, mas cada vez mais como arsenais
de guerras políticas ou culturais.
“Nossos espaços de informação e comunicação
como um projeto de mercado são um experimento social fracassado, e esse
experimento deixou um rastro de destroços sociais”, disse Zuboff, em seminário
do Instituto FHC. “Entre esses destroços vemos a completa destruição da
privacidade, a anulação de direitos fundamentais, a intensificação da
desigualdade social, o envenenamento do discurso social, sociedades divididas,
normas sociais demolidas e instituições democráticas enfraquecidas.”
Há um século as democracias forjaram leis
para quebrar concentrações de poder econômico que vulneravam trabalhadores e
consumidores. Mas essas leis não são capazes de proteger as sociedades contemporâneas
da economia de vigilância digital. O poder das Big Techs não é primariamente
econômico, mas social. Seus danos não estão restritos à cadeia econômica de
trabalhadores e consumidores, mas a uma nova categoria humana, os “usuários”,
ou seja, todos nós, a todo tempo, em todo lugar.
Em uma civilização da informação, diz
Zuboff, os princípios da ordem social derivam de três questões cruciais, sobre
o conhecimento, a autoridade sobre o conhecimento e o poder que sustenta essa
autoridade: 1) quem conhece?; 2) quem escolhe quem conhece?; e 3) quem escolhe
quem escolhe quem conhece? “As gigantes tecnológicas detêm a resposta a cada
uma dessas perguntas, embora não as tenhamos eleito para governar.”
As democracias enfrentam uma questão
fundamental: como estruturar, organizar e governar a informação e a
infraestrutura de comunicação de modo que elas sejam não só compatíveis com a
democracia, mas a fortaleçam? Para respondê-la, ao menos quatro desafios
precisarão ser encarados de frente: a atualização das leis antimonopólio; o
modelo de negócios das gigantes digitais fundado no armazenamento e manipulação
de dados pessoais; o seu poder de controle da informação e censura; e o seu
alcance sobre jovens e crianças.
Não há soluções pré-fabricadas para esses
desafios, e é bom que assim seja, porque elas precisarão ser forjadas no crisol
do debate democrático e em suas instâncias de representação política. O desafio
é ainda maior quando se considera que a revolução digital é transnacional, e,
tal como com as mudanças climáticas, só um esforço global coordenado poderá
conduzi-la aos fins esperados.
“A democracia é a única ordem institucional com autoridade legítima para mudar nossos rumos”, ponderou Zuboff. “Para que o ideal do autogoverno humano sobreviva ao século digital, então todas as soluções apontam para uma solução: uma contrarrevolução democrática.”
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