Folha de S. Paulo
Apesar de ataques, há possibilidade real de
reverter a erosão de nossa democracia
A democracia brasileira sobreviveu a mais
um ano de ataques
sistemáticos às suas instituições e aos direitos e valores destinados
a promover o bem-estar da população. Não houve dia nos últimos três anos em que
a saúde da população, a cultura e a educação, o meio ambiente, o mundo do
trabalho, a liberdade de expressão ou os direitos humanos não tenham sido
objeto de sabotagem por parte do presidente e seus auxiliares.
A absurda tentativa de impedir a vacinação de crianças, nas últimas semanas, é apenas mais uma manifestação do obscurantismo perverso que ocupa o centro do poder no Brasil. A opção pelo jet ski e pelo entretenimento infantilizado em um parque de diversões, ao invés demonstrar solidariedade e empenho para socorrer centenas de milhares de atingidos pelas enchentes na Bahia, dá a dimensão da estatura moral do presidente.
O empenho em capturar as instituições com o
objetivo de favorecer os interesses obscuros de seus apoiadores, em detrimento
dos direitos da população, tem sido constante. Os retrocessos no campo dos
direitos indígenas e ambientais são patentes. O crescimento das queimadas,
desmatamento, invasões, garimpo ilegal são uma consequência direta da ação do
governo federal.
O avanço sobre a cultura e a educação,
elementos estruturantes de uma democracia pluralista, tem por objetivo
estrangular a liberdade de manifestação artística e a produção científica, além
de intimidar críticos e dissidentes, favorecendo a expansão do fundamentalismo
e da mentira como método de dominação.
Na área da saúde, como ficou amplamente
demonstrado pela CPI do Senado,
a ação deliberada de adiar a vacinação e fomentar aglomerações, em nome de uma
ideologia liberticida e negacionista —que atraem um seguimento do eleitorado
necessário para levar Bolsonaro ao segundo turno —,contribuíram para promover
uma parte significativa das mais de 620 mil mortes, devastando famílias,
comunidades e a própria economia. Como os autoritários Trump e Putin, Bolsonaro
foi um aliado do vírus.
Apesar desse ataque sistêmico ao bem-estar
das pessoas; apesar da maliciosa conspiração contra a integridade do processo
eleitoral, contra a liberdade de imprensa e o Supremo
Tribunal Federal; apesar da persistente tentativa de envolver os
militares numa aventura golpista; apesar da promíscua compra dos parlamentares,
por intermédio das emendas do relator e do fundo partidário, que assegurou ao
chefe do executivo um escudo contra o impeachment; apesar de tudo isso,
chegamos a 2022 com a possibilidade real de reverter a erosão de nossa democracia
constitucional e do projeto de estado de bem-estar por ela concebido.
Se o Supremo, a imprensa, as organizações
da sociedade civil e, eventualmente, algumas minorias parlamentares, formaram a
principal linha de defesa da democracia brasileira contra o populismo
autoritário, entre 2019 e 2021, caberá às lideranças políticas e, sobretudo, à
sua excelência o eleitor, em 2022, retirar o Brasil da trajetória desastrosa
que a aliança entre autoritários, conservadores, neoliberais inconsequentes,
extrativistas e milicianos nos
lançou em 2018.
Recuperar a saúde democrática será apenas o
primeiro desafio do processo eleitoral de 2022. Restaurar a capacidade do setor
público e da economia, para atender as principais necessidades básicas da
população, serão, a seguir, os principais desafios do próximo governo, sem o
que sucumbiremos a uma vertiginosa decadência.
Às generosas leitoras e aos leitores dessa
coluna, mesmo os críticos, desejo um bom ano.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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