sábado, 1 de janeiro de 2022

Demétrio Magnoli: Desejos impossíveis para 2022

Folha de S. Paulo

Novo ano não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021

Mandela acreditava que tantas coisas "sempre parecem impossíveis, até serem feitas". Neste Réveillon, desisti do fácil, até do possível. Busco o impossível.

1. Ao longo de 2022, a pandemia se reduzirá a uma endemia como outras. Antes disso, que as sociedades finalmente sigam a ciência, eliminando a espessa camada de superstições depositada sobre a vida cotidiana.

Basta de controles aleatórios de temperatura, luvinhas plásticas em restaurantes self-service, máscaras ao ar livre fora de aglomerações. Abaixo o teatro do sanitarismo.

2. Que a Sociedade Brasileira de Cardiologia exclua Marcelo Queiroga, o estafeta que opera como sabotador da vacinação infantil. Que os conselhos de medicina punam os médicos charlatães da cloroquina, ivermectina e despachos similares.

Por quanto tempo os representantes corporativos continuarão a manchar a imagem de uma categoria constituída, majoritariamente, por profissionais sérios e dedicados?

3. Não pedirei a derrota eleitoral acachapante de Bolsonaro, para não desejar o simplesmente provável. Quero que, depois dela, procuradores e juízes contrariem a inclinação brasileira à conciliação entre as elites, julgando a coleção de crimes de um presidente infame.

4. Pazuello violou o regulamento do Exército ao usar o microfone num comício de Bolsonaro —e não sofreu sanção. Que, só para variar, os comandantes das Forças Armadas cumpram as regras militares.

5. Nostalgia é, geralmente, uma atitude reacionária --mas há exceções. Recordo um passado recente no qual, em polêmicas públicas, ninguém reivindicava a posição de porta-voz de etnias, raças ou gêneros.

O pacto implícito era que cada um só expressava seu próprio ponto de vista. Ou seja: indivíduos conversando, não representantes autoproclamados de grupos identitários. Eis um desejo impossível: retornar a um tempo no qual o argumento não era refém do "lugar de fala".

6. Na era das redes sociais, isto é, da desinformação em massa, o jornalismo profissional tornou-se ainda mais necessário.

Contudo, justamente nessa era, a imprensa adotou o atalho errado, imitando as próprias redes e conferindo o estatuto de notícia a meras fofocas ou arranca-rabos entre celebridades. Que o jornalismo redescubra sua função, apostando na inteligência dos leitores.

7. As plataformas globais da internet transformaram-se, basicamente, em órgãos oficiosos de regimes autoritários e movimentos extremistas.

O Facebook, em especial, foi a ferramenta escolhida para a condução de crimes incontáveis, da limpeza étnica dos rohingya, em Mianmar, à invasão do Capitólio, em Washington.

Que os acionistas e diretores dessas empresas sejam responsabilizados juridicamente pela difusão de correntes de fake news destinadas a destruir instituições democráticas e promover o ódio étnico ou religioso.

8. Eleições são, ou deveriam ser, um diálogo nacional sobre o passado e os caminhos para o futuro. Mas, para isso, seus protagonistas precisam tratar os eleitores como adultos.

Que a campanha de Bolsonaro renuncie a qualificar seus oponentes de "comunistas" ou "pedófilos". Que Moro desista de rotular Lula como corrupto, reconhecendo a anulação judicial das sentenças produzidas por seu conluio ilegal com os procuradores-militantes.

Que o PT abdique de acusar Bolsonaro de "fascismo", "neonazismo" ou "genocídio", concentrando-se nos muitos crimes reais cometidos pelo presidente.

Arthur C. Clarke, o genial escritor de ficção científica, concluiu que "os limites do possível só podem ser definidos quando os ultrapassamos, avançando rumo ao impossível".

Se ele tiver razão, desejar o impossível não é perder-se em devaneios, mas ajustar o foco de modo a identificar os contornos daquilo que, realisticamente, podemos mudar. 2022 não tem o direito de ser uma simples extensão do macabro 2021.

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