quinta-feira, 9 de junho de 2022

Luiz Antonio Santini*: A Saúde era pior antes do SUS

O Globo

O “Projeto de nação, o Brasil em 2035” — do Instituto General Villas Bôas — prevê o pagamento pelo uso do SUS a partir de 2025. Seu coordenador é o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da ONG Terrorismo Nunca Mais, criada pelo coronel Brilhante Ustra. O objetivo seria entregar um país melhor para a posteridade, porém mandando a conta da saúde para os mais pobres.

Na ditadura, os militares reforçaram um modelo de atenção à saúde excludente. A estrutura do Ministério da Saúde era baseada em “campanhas” de combate às endemias: febre amarela, malária, Chagas etc. A assistência médica era prestada aos trabalhadores urbanos por intermédio da Previdência Social; aos não empregados ou sem carteira de trabalho, pela filantropia (as Santas Casas). O serviço de emergência era às vezes oferecido por hospitais estaduais e municipais. Em meados dos anos 1970, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) passou por sucessivas reformas, tendo sido criado o Inamps para a assistência médica dos segurados da Previdência.

No início dos anos 1980, a maior parte da população brasileira, 119 milhões, não tinha direito à assistência médica, e os que tinham acesso, via Previdência, eram atendidos por clínicas privadas contratadas sem qualquer controle. Em 1976, 96% das verbas para a saúde dos brasileiros foram para o setor privado.

A Previdência entrou em crise no início da década de 1980, e o governo militar, que já estava colapsando, se viu compelido a criar um plano de transformação. Surgiu então o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (Conasp), um órgão colegiado que envolveu a participação de diversas entidades: órgãos do governo, sindicatos, associações médicas etc., com vista a elaborar um plano dirigido a reorganizar a assistência e conter as perdas. Com tanto dinheiro circulando no setor privado, o tema saúde vivia nas páginas policiais. O próprio SNI apontou num informe casos de corrupção na Superintendência do Rio de Janeiro.

Internações e atendimentos-fantasmas eram comuns. O setor privado abusava do comércio de sangue humano. Um negócio que envolvia moradores de rua, médicos inescrupulosos, políticos e multinacionais. Os bancos de sangue eram os maiores agentes de contaminação de aids no país.

As farmácias brasileiras comercializavam mais de 20 mil remédios baseados em 2.100 princípios ativos. Antes da Anvisa, apenas oito funcionários de uma repartição do Ministério da Saúde controlavam o setor. A criação da Central de Medicamentos foi importante para o desenvolvimento de laboratórios públicos. Mas esse modelo esbarrava em fortes interesses do setor privado. Logo as pressões políticas foram corroendo os objetivos da Central, que acabou não conseguindo cumprir sua missão.

O embrião do SUS nasceu da crise do Inamps dos anos 1980, quando começaram a ser financiadas experiências bem-sucedidas em diversos municípios brasileiros: Campinas, Florianópolis, Niterói etc. Aos poucos, muitos brasileiros começaram a ter assistência básica. O sucesso desse modelo foi responsável pelo surgimento de um amplo movimento, em que diferentes segmentos profissionais foram abraçando a ideia do direito à saúde. Essa onda era reforçada pelo retorno da democracia.

Uma demonstração do engajamento da sociedade pelos seus direitos foi o surpreendente fluxo de participantes da 8ª Conferência de Saúde, em 1986, o berço institucional do SUS.

Hoje, com todos os problemas, qualquer cidadão pode conseguir um transplante de órgão, uma complexa operação neurológica ou receber um atendimento básico. Mas o SUS corre o risco de colapsar, pois, ao longo da pandemia, muitos procedimentos não foram realizados. As previsões para 2023 não são boas, mas a ideia de que deva existir uma medicina pobre para os pobres ficou lá atrás.

*Pesquisador associado da Fiocruz, foi diretor do Instituto Nacional de Câncer

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