Quinquênio para juízes é moralmente indefensável
O Globo
Decisões que tentam restaurar privilégio
extinto há 16 anos precisam ser repelidas com energia
São moralmente indefensáveis as decisões do
Conselho da Justiça Federal (CJF) e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), sobre a remuneração de juízes. Ambas demonstram que, no afã de manter
privilégios, Brasília não enxerga a realidade em que vive o Brasil. É preciso
repeli-las com toda a energia. É ocioso — mas infelizmente necessário — repetir
que juízes e procuradores são as categorias mais privilegiadas do serviço
público brasileiro, cujo salário médio as coloca entre os 2% de maior renda no
país. No Judiciário, proliferam privilégios já extintos noutras áreas, como
férias de 60 dias, promoções automáticas, licenças-prêmio, aposentadorias
compulsórias e outras benesses.
Em 24 estados, só o vale-refeição de juízes supera o salário mínimo. Mais de 8 mil magistrados já tiveram remuneração igual ou superior a R$ 100 mil — isso mesmo, R$ 100 mil — pelo menos uma vez desde 2017. Eles são um terço dos que recebem supersalários acima do teto constitucional.
Apesar de tudo isso, no dia 16 o CJF
aprovou, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o
retorno de um benefício salarial extinto há 16 anos para juízes federais que
entraram na carreira até 2006. Conhecido como quinquênio, o Adicional por Tempo
de Serviço (ATS) é um aumento automático de 5% no salário a cada cinco anos,
sem conexão com mérito ou produtividade. A decisão também prevê o pagamento
retroativo, com correção pela inflação. Pela decisão, os juízes ganharão
boladas milionárias.
Existe uma palavra para descrever a
resolução: ignomínia. Não apenas pelo atual momento de penúria, com uma bomba
fiscal prestes a estourar e a necessidade de encontrar espaço no Orçamento para
manter o pagamento de R$ 600 aos brasileiros em situação mais vulnerável. Em
qualquer circunstância, seria um acinte.
A resolução do CJF contraria decisão do
Supremo que proibiu gratificações e adicionais fora do teto constitucional para
remunerar servidores públicos. A relatora Maria Thereza de Assis Moura,
contrária ao aumento, ressaltou esse ponto, mas foi vencida no plenário por
sete votos a quatro. A tese vencedora destacou os direitos adquiridos, mesmo
argumento usado pelos senhores de escravos no século XIX contra a Abolição.
Oxalá o STF tenha a lucidez de corrigir o absurdo.
Na onda da decisão do CJF, Pacheco ressuscitou
a descabida Proposta de Emenda Constitucional 63, que mereceria ser batizada de
PEC da Desigualdade Social. Ela prevê o quinquênio de 5% para todos os juízes
(não apenas os que entraram na magistratura até 2006) e para procuradores. Em
2019, nove das dez maiores remunerações no Estado brasileiro estavam em cargos
no Judiciário e no Ministério Público. Para a sociedade, as duas esferas do
governo consomem anualmente 1,8% do PIB, 11 vezes o custo de instituições
similares na Espanha, dez vezes o da Argentina e nove vezes o dos Estados
Unidos. Não há paralelo no planeta para a prodigalidade com que o Brasil trata
seu Judiciário, conhecido pela lentidão, burocracia e ineficiência.
O Brasil precisa de uma reforma
administrativa que acabe com os privilégios absurdos da elite do funcionalismo,
em particular juízes e procuradores. Não da recriação de uma das poucas
excrescências de que nos livramos. Os senadores têm o dever de enterrar a ideia
descabida de Pacheco e de promover a reforma que o país merece.
Redução nas bancadas facilita negociação de
Lula com Congresso
O Globo
Mas é inverossímil que, precisando de apoio
para a PEC da Transição, ele exija o fim do orçamento secreto
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva, desembarcou nesta semana em Brasília com o objetivo de organizar uma
base confiável no Congresso Nacional. O primeiro teste será a votação da PEC da
Transição. Para o governo manter o valor do Bolsa Família redivivo em R$ 600 e
dispor de recursos para recompor os gastos sociais, ela precisaria passar por
duas votações no Senado e na Câmara nas próximas três semanas.
É esperado que o Legislativo reduza o
pedido inicial do Executivo para gastar R$ 198 bilhões acima do teto em 2023 e
R$ 175 bilhões nos três anos seguintes. Uma novidade nesta eleição favorece as
negociações: a redução no número de bancadas no Congresso. Como demonstrou
reportagem do GLOBO, elas serão apenas 16, a menor fragmentação partidária
desde 1999. O enxugamento no número de partidos resulta da imposição da
cláusula de desempenho e do fim das coligações partidárias nas eleições
proporcionais pela minirreforma política de 2017.
A cláusula de desempenho é progressiva:
começou estabelecendo que, na eleição de 2018, só teriam direito à bancada
partidos com no mínimo 1% dos votos válidos apurados para a Câmara,
distribuídos em pelo menos nove estados da Federação. No último pleito, o
patamar subiu para 2%. Será de 2,5% em 2026 e chegará a 3% em 2030. A proporção
de votos em ao menos nove estados também aumentará até chegar a 2%. A exigência
induz legendas ideologicamente próximas a se fundir ou criar federações,
obrigadas a funcionar como partido durante toda a legislatura. Foi para não
saírem do Congresso e manterem prerrogativas que PCdoB e PV formaram uma
federação com o PT. Outros partidos preferiram se fundir.
Havendo menos partidos ou federações com
que negociar, os arranjos entre Executivo e Legislativo tendem a se tornar
menos custosos e mais republicanos. O presidencialismo de coalizão brasileiro
só pode funcionar bem com uma quantidade limitada de partidos, do contrário há
um incentivo intrínseco à corrupção, como o PT bem sabe. No primeiro governo
Lula, o partido comprou o apoio parlamentar por meio do mensalão. Depois, com a
descoberta do escândalo, adotou o petrolão. Na gestão Bolsonaro, surgiu o
orçamento secreto.
Se mantiver de alguma forma nas mãos do Parlamento o poder de distribuir verbas bilionárias à revelia dos organismos de controle e fiscalização, não será difícil para Lula obter apoio ao que quiser. Ao mesmo tempo, não é razoável o Executivo abrir mão do poder sobre as verbas, alocadas e executadas sem critério técnico nem transparência. Lula faria bem em pressionar pelo fim da excrescência, mas é inverossímil que faça isso diante da necessidade premente de obter apoio no Congresso. Pelo visto, caberá ao Supremo declará-la inconstitucional. Sem o orçamento secreto e com menos partidos, o Brasil passaria a ter um sistema político mais justo, transparente e eficaz.
Maré ministerial
Folha de S. Paulo
Número de pastas deve subir com Lula, o que
tem sua utilidade e seus riscos
A julgar por declarações do presidente
eleito, pelo passado de gestões petistas e pelo inchaço da equipe de transição,
o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promoverá uma expansão do número de
ministérios na administração federal. Isso não é necessariamente ruinoso como
pregam adversários à direita, mas decerto implica riscos.
Havia não mais de 12 pastas em 1990, sob
Fernando Collor, que apenas dois anos depois viu-se obrigado a elevar o número
para 14; com Lula chegou-se a 37 e, com Dilma
Rousseff (PT), atingiu-se o recorde de 39; Jair Bolsonaro (PL)
prometeu que teria apenas 15, mas começou com 22 e termina com 23.
É muito difícil estabelecer relação direta
entre a quantidade de postos de primeiro escalão e a qualidade da gestão
pública. Sabe-se que na maioria dos países desenvolvidos o número de ministros
ou cargos semelhantes varia em torno de 20 ou menos, mas são 38 no Canadá.
No Brasil, raramente ministérios são
criados ou recriados em razão de uma necessidade administrativa real —vale
dizer, para que se ocupem de uma área ainda não contemplada pelo Executivo
federal.
Em geral, as novas pastas buscam acomodar
aliados da coalizão de apoio ao presidente ou, sem excluir o primeiro objetivo,
indicar maior prioridade a pleitos de um determinado setor da sociedade.
No segundo caso claramente se encaixa o
provável restabelecimento do Ministério da Cultura, cuja estrutura foi colocada
por Bolsonaro sob o Turismo. Lula também
anunciou o Ministério dos Povos Originários, mirando outro campo
menosprezado pelo atual mandatário e buscando aprovação global.
Não serão surpresas, tampouco, pastas
ligadas a direitos humanos, mulheres e igualdade racial.
No passado, a multiplicação ministerial
provocou desgaste para os governos do PT ao ser associada, nem sempre
corretamente, à expansão imprudente de gastos, à corrupção e ao apetite do
partido por cargos —a Esplanada chegou a ter 17 ministros petistas.
Fomentou-se na oposição o discurso de que a
redução do número de pastas seria medida essencial para o reequilíbrio
orçamentário, o que, como se viu sob Bolsonaro, é falso. Na verdade,
servidores, órgãos e programas são simplesmente realocados, sem redução
relevante de despesa.
Entretanto é fato que a expansão da máquina
brasiliense pode gerar desperdício e ineficiência, especialmente quando se
trata de barganhar apoios partidários com base unicamente na distribuição de
cargos e verbas públicas.
Para minimizar tal efeito colateral, convém
que Lula venha a dividir de fato as decisões de governo com outras forças, em
vez de apenas cooptar siglas fisiológicas.
Penduricalho restaurado
Folha de S. Paulo
Volta do quinquênio de juízes eleva gastos
e desdenha da realidade da população
Numa decisão que combinou corporativismo e
desprezo pelos limites orçamentários do país, o Conselho da Justiça Federal
(CJF) aprovou
neste mês o restabelecimento de um benefício salarial para juízes federais
extinto há 16 anos.
A regalia atende pelo nome de adicional de
tempo de serviço, ou quinquênio, e propiciará a cada cinco anos um aumento
automático de 5% no salário dessa categoria que, cumpre lembrar, não só se
encontra entre as mais bem remuneradas do serviço público como desfruta de
vantagens inacessíveis à maioria dos brasileiros.
Terão direito a mais esse apanágio juízes
que ingressaram na carreira até maio de 2006, com direito a receber pagamentos
retroativos corrigidos pela inflação.
O retorno do penduricalho, revelado pelo
jornal O Estado de S. Paulo, foi proposto pela Associação dos Juízes Federais
do Brasil e aprovado por 7 votos a 4.
Contrária à medida, a relatora do caso,
Maria Thereza de Assis Moura, argumentou que o Supremo Tribunal Federal já
firmara entendimento de que as verbas referentes ao adicional por tempo de
serviço foram absorvidas pelo denominado subsídio salarial.
Trata-se de mecanismo criado em 2006 que
estabelece uma cota única para os vencimentos, vedando, com algumas exceções,
acréscimos remuneratórios.
Venceu, contudo, a tese de que o regime de
subsídio não deveria eliminar o quinquênio, já que esse constituiria um direito
adquirido desde o modelo anterior.
A decisão parece ter animado o presidente
do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que pautou para esta quarta-feira (30)
a votação de
uma proposta que inscreve o quinquênio na própria Constituição.
A PEC ainda estende a regalia aos
procuradores federais, gerando gasto adicional para os cofres públicos estimado
em R$ 3,6 bilhões anuais —valor que pode chegar a inacreditáveis R$ 10 bilhões
se for aplicada a todo o funcionalismo, como propõe uma das emendas.
Tanto a medida do CJF quanto a PEC denotam
profundo alheamento da realidade financeira do Estado e das disparidades
salariais no país, bem como ignoram os custos já excessivos do Judiciário.
A favor da proposta de emenda, invoca-se a necessidade de se corrigir distorções acumuladas. Tal ajuste, porém, não pode se dar às custas de um retrocesso que só servirá para desordenar ainda mais o controle dos gastos públicos.
Lira, a herança de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Hoje o grande desequilíbrio é o poder excessivo de lideranças do Congresso sobre o Legislativo e o Executivo. A precocidade do apoio a mais um mandato de Lira é sintoma desse quadro
Ainda não terminou o mês de novembro e o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já conta com vários apoios para sua
permanência no cargo no próximo biênio, que será decidida apenas em fevereiro
de 2023. Ontem, PT e PSB anunciaram apoio a mais um mandato do deputado
alagoano na presidência da Casa. Essa inédita antecipação dos tempos diz muito
sobre a atual dinâmica entre os Poderes, resultado direto de quatro anos de
Jair Bolsonaro na Presidência da República. Nunca o presidente da Câmara teve
tanta ascendência sobre os trabalhos da Casa e sobre outras esferas de poder
como tem agora.
Talvez Arthur Lira atribua essa situação de
proeminência da presidência da Câmara à sua inegável capacidade de articulação.
No entanto, é certo que, no cargo que hoje ocupa, passaram outros muitos
políticos habilíssimos na arte da negociação. A situação atual é, sobretudo,
consequência de um Poder Executivo omisso e sem propostas, cuja prioridade foi
apenas e tão somente tentar perpetuar-se no poder.
Em grandes linhas, pode-se dizer que o
status atual de Arthur Lira é fruto do orçamento secreto. Nunca antes o Poder
Legislativo dispôs de tanta autonomia para interferir na execução dos recursos
do Executivo como dispõe agora por meio de diversas emendas, entre elas as de
relator. E o orçamento secreto é resultado direto de Jair Bolsonaro no Palácio
do Planalto: um presidente da República que, para evitar a abertura de um
processo de impeachment – risco causado por suas ações e omissões
caprichosamente alinhadas com os crimes de responsabilidade tipificados na lei
–, abdicou de governar, cedendo largamente a gestão do Orçamento às lideranças
do Congresso.
Com frequência, o bolsonarismo critica um
suposto desequilíbrio entre os Poderes, no qual o Judiciário – em especial, o
Supremo Tribunal Federal (STF) – exerceria um poder excessivo, prevalecendo
sobre os demais. O interessante é que, se existe hoje algum desequilíbrio em
relação à configuração institucional prevista na Constituição de 1988, ele
ocorre precisamente na relação entre Executivo e Legislativo, com lideranças do
Congresso dispondo de um poder desproporcional sobre as ações legislativas e as
do governo federal. No entanto, o bolsonarismo nada diz sobre esse
desequilíbrio, em uma peculiar cumplicidade.
Historicamente, os Parlamentos sempre
contaram com a possibilidade de administrar a execução de alguns recursos
públicos, definindo sua destinação específica. As emendas parlamentares são
prática corrente em muitos países. No entanto, no Brasil o assunto saiu
inteiramente dos trilhos constitucionais com as emendas de relator, o orçamento
secreto. Lideranças do Congresso passaram a gerenciar diretamente, de forma
discricionária, sem controle e sem transparência, a execução de parte cada vez
maior do Orçamento da União.
Além de ser o exato oposto do que se
entende por gestão republicana dos recursos públicos – transparente,
controlável e baseada em critérios técnicos –, o orçamento secreto deu um poder
desproporcional às lideranças do Congresso, o que gera danos sobre a própria
representatividade do Legislativo. Não faz nenhum sentido que um único deputado
federal disponha de tanto poder sobre o Congresso, órgão coletivo por essência.
Tal é o poder que, para ter alguma expectativa de governabilidade, o governo
eleito viu ser necessário declarar apoio, com enorme antecedência, a um novo
mandato do atual presidente da Câmara.
Fica patente, assim, que os males causados
por Jair Bolsonaro não se encerram no dia 31 de dezembro deste ano. A ter em
conta os apoios precoces recebidos por Arthur Lira, a próxima legislatura
estreará em fevereiro de 2023 já marcada e distorcida pelo desgoverno
bolsonarista.
Essa precipitação dos tempos afeta a
própria democracia. Nas eleições de outubro, a população elegeu um novo
Congresso. No entanto, ao que tudo indica, a nova legislatura nascerá moldada
pela anterior, que desde já consegue impor o mesmo presidente da Câmara.
Nega-se, assim, ao eleitor o direito de mudar alguma coisa.
Os inimigos do Estado
O Estado de S. Paulo
Dados reunidos pela equipe de transição
sobre o governo Bolsonaro expõem mais que cortes orçamentários: trata-se de
profunda desestruturação do Estado em suas várias dimensões
A derrota de Jair Bolsonaro parece ter
livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha
ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do
descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente,
educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o
governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como
saúde e assistência social.
Ainda na campanha, a apresentação do
Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas
brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para
garantir o piso do Auxílio Brasil. O gabinete de transição do futuro presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, tem sido alimentado com relatos diários
sobre o caos generalizado que terá de enfrentar no que diz respeito ao provimento
de serviços públicos essenciais.
Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de
casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões
de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a
expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a
quase R$ 2 bilhões. Alegando tratar-se de informações reservadas, o Ministério
da Saúde resiste ao pedido de informações dos integrantes do governo eleito
sobre o estoque de medicamentos na rede pública, desde analgésicos a
antirretrovirais para o tratamento de HIV. A pasta tampouco apresentou dados
sobre a fila de pessoas em busca de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS)
e sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações
(PNI).
A equipe de transição recebeu a informação
de que há 5 milhões de processos referentes a benefícios do Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS) com análise atrasada. O jornal Valor mostrou
que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem
motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um
atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) –
filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias
unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente
depois do segundo turno.
Há muitos outros casos a confirmarem o
quadro, e talvez não seja por acaso que o gabinete de transição tenha reunido
mais de 400 pessoas – a imensa maioria trabalhando sem remuneração – dispostas
a fazer um diagnóstico das urgências a serem enfrentadas em 2023. A
substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo
vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos
servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências
práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.
Toda a prioridade do governo eleito tem
sido dada à construção de acordos pela aprovação da Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) da Transição, solução escolhida para recompor a verba de
programas prioritários do Orçamento de 2023. As informações reunidas pelo
gabinete de transição revelam mais do que simples cortes de verbas e
necessários remanejamentos orçamentários, mas uma profunda e generalizada
desestruturação do Estado em suas mais diversas dimensões – em especial das
raras políticas públicas que venciam todos os obstáculos até chegar
efetivamente às famílias mais carentes.
“Quanto mais Estado, pior”, vaticinou o
presidente, em uma entrevista que concedeu à revista Veja entre o
primeiro e o segundo turno da eleição. Em vez de proporcionar mais foco,
prioridade, eficiência e qualidade ao gasto público, o bolsonarismo apostou em
uma sociedade quase feudal, em que cada um deve lutar pela sobrevivência
literalmente com suas próprias armas. Diante dos péssimos resultados que o País
colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na
disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções
brasileiras de cidadania e coesão social.
China em transe
O Estado de S. Paulo
‘Covid-zero’ empobrece e enfurece chineses,
um alerta a quem enaltece o ‘modelo’ autoritário do PC
Que a política chinesa “covid-zero” seria
um desastre econômico já era anunciado pelo Partido Comunista (PC) – “vidas
primeiro” era o slogan oficial. Com o tempo, revelou-se um desastre sanitário.
Agora, mostra-se um desastre político.
Os protestos que viralizam pela China são o
maior desafio ao Partido desde as manifestações da Praça da Paz Celestial, em 1989.
Seu gatilho foi um incêndio em um conjunto residencial. Com os bloqueios
forçados, os moradores foram impedidos de sair e os bombeiros, de entrar. Dez
pessoas – incluindo uma criança – morreram e dez saíram feridas.
A política “covid-zero” era especialmente
estratégica para o culto à personalidade que vem sendo confeccionado por Xi
Jinping, exaltado pela mídia estatal como “comandante em chefe da guerra contra
a covid”. Ela foi projetada para contrastar a liderança de Xi e a paciência do
povo chinês com os governos “caóticos” e o “individualismo” das democracias
ocidentais. Além disso, era uma oportunidade de ouro para o Partido expandir
seu aparato de controle social. Mas a paciência do povo está se esgotando e,
por trás da muralha de repressão, o caos está fermentando.
A se confiar nas estatísticas chinesas, as
quarentenas draconianas levaram a menos mortes. Mas causaram uma brutal
desaceleração econômica. As classes média e baixa, impedidas de trabalhar,
sofrem mais. O desemprego para os jovens bate os 20%.
Xi se encurralou em um dilema. Flexibilizar
os lockdowns traria alívio econômico. Mas, além de admitir o fracasso de sua
política sanitária, isso significaria aquiescer aos protestos e abrir as portas
à disseminação do vírus em uma população vulnerável, seja pelas baixas taxas de
imunidade natural, seja porque, aferrado a seu credo nacionalista, o governo se
recusou a adquirir vacinas internacionais mais modernas – as chinesas são
insuficientes e ineficazes, e os hospitais estão mal equipados para uma onda de
internações. A outra opção é redobrar a repressão. Mas isso aumentará o risco
de intensificar a revolta popular.
Em ambos os casos, as fissuras no mito da
infalibilidade do “timoneiro”, como Xi é chamado, se aprofundarão. Já agora há
manifestações sem precedentes pedindo sua “queda”: “Não queremos um líder
vitalício”, clamaram manifestantes em Chengdu. “Não queremos um imperador.”
O fracasso serve de advertência às
lideranças ocidentais enamoradas do autoritarismo chinês. O presidente eleito
Lula da Silva, por exemplo, exaltou o “poder do comando” de um partido “forte”,
que “estabeleceu um modelo de desenvolvimento para o mundo inteiro”. Mas, se as
democracias podem ser – como muitas vezes foram na pandemia – erráticas, elas
oferecem à população a oportunidade de criticar seus líderes, trocá-los e mudar
de rumos.
Nesse momento, centenas de milhões de chineses trancafiados em suas casas assistem pela TV a multidões de todo o mundo se aglomerando no Catar, sem máscaras nem medo, para celebrar suas seleções. Como disse o “Super-homem de Chongqing”, manifestante chinês em um vídeo que viralizou, “sem liberdade e mais pobres, eis onde estamos hoje”.
A China está de novo em apuros com a
covid-19
Valor Econômico
O descontentamento pode provocar cisões na
cúpula do PC, uma ameaça real aos poderes imperiais de Xi
O presidente Xi Jinping concentrou o poder
absoluto em suas mãos, após delegação do 20º Congresso do Partido Comunista
Chinês no fim de outubro, o que também significa que assumiu responsabilidades
por tudo o que der errado no país durante sua gestão, que pretende ser muito
longa. Os problemas chineses se avolumaram desde então: o país vive os maiores
protestos em massa desde 1989, contra a política oficial para enfrentar a
covid-19.
Quase três anos depois de sediar o
surgimento do vírus, Wuhan está novamente em severo lockdown, e a morte de 10
pessoas após incêndio em um edifício sob quarentena na região acendeu os
protestos no resto do país - eles se espalharam por 18 cidades, inclusive
Xangai e Pequim. Cálculos da corretora Nomura estimam que as cidades com
restrições à mobilidade e lockdowns parciais produzem 25% do PIB nacional,
porcentagem superior aos 21% de abril, quando Xangai, com 26 milhões de
habitantes, ficou isolada (FT, ontem).
Passados quase três anos do início da
pandemia, a estratégia do governo chinês é a mesma do início. Isolamento
radical de pessoas, edifícios e fábricas, testagens em massa, frequentemente
diárias, da população circulante e restrições drásticas de mobilidade. A nova
onda da covid, porém, parece ser maior do que as anteriores, para padrões
chineses. Na segunda-feira chegou a um pico de 38.800 casos (o pico diário no
Brasil foi de 298,4 mil em fevereiro passado), com baixo número de mortes. Com
proliferação de variantes mais infecciosas do vírus, torna-se cada vez mais
difícil, custoso e politicamente desgastante evitar o contágio em grande escala
em um país de 1,3 bilhão de pessoas.
As vacinas chinesas são consideradas de
menor eficácia que as utilizadas fora do país, mas o governo nunca cogitou
importar o produto estrangeiro ou produzi-lo localmente em parceria com
empresas farmacêuticas. Assim, a principal questão continua sendo como proteger
quem não foi vacinado e é mais vulnerável - os idosos, cada vez em maior número
em uma nação cuja população logo começará a decrescer. Um terço das 267 milhões
de pessoas acima de 60 anos está nessa situação. Pior, 60% dos acima de 80 anos
não o fizeram. O simples fim da estratégia atual de combate ao virus trará
risco de vida a milhões de pessoas. Não há solução fácil para o problema, ainda
mais dentro dos dogmas do PC e de Xi Jinping.
Os protestos, no entanto, ativaram todos os
genes stalinistas dos dirigentes chineses. Nenhuma manifestação foi noticiada
pelos grandes jornais e houve censura total nas redes sociais. Os editores das
TVs locais tiveram enorme trabalho para evitar cenas nas transmissões da Copa
do Mundo em que torcidas aparecem sem máscara. Na segunda, Chen Wenqing, chefe
da Comissão Central de Assuntos Políticos e Legais, resumiu a tarefa do
governo: “Temos de reprimir resolutamente as atividades de infiltração e
sabotagem de forças hostis, assim como atividades ilegais e criminosas que
causam distúrbio à ordem social”, disse à agência oficial de notícias.
Em outro reflexo condicionado de burocratas
autoritários, vale o dogma de que as falhas não provêm da cúpula do partido. A
Comissão Nacional de Saúde, reconhecendo sem o dizer reclamações dos
manifestantes, culpou os governos locais pelos “excessos” e por terem “negligenciado
as demandas do público”. A política oficial está, portanto, correta, mas a
culpa é dos outros. Toda a enorme energia devotada a manter em casa centenas de
milhões de pessoas terá de ser melhor aplicada agora na vacinação em massa de
idosos, algo de resultado lento em meio à maré montante de nova onda de
contágio.
Com sua estratégia o governo colherá um
crescimento bem abaixo da meta de 5,5% em 2022 e há quem projete taxa inferior
a 3%. O caso da covid e das vacinas mostra que os saltos tecnológicos autóctones
não fazem milagres onde a cooperação internacional poderia ser a solução. Desde
Donald Trump, porém, a China se fechou politicamente diante de ofensiva dos EUA
para impedir que ela assuma o topo da escala tecnológica e, por decorrência,
econômica e militar.
Apesar das mobilizações, o governo chinês
tem amplo domínio da situação e um enorme aparato de repressão e controle
social. O temor de dirigentes de que a China repita o destino da União
Soviética está fora de lugar. A URSS já era potência econômica decadente quando
ruiu, enquanto que a China conseguiu retirar o maior número de pessoas da
pobreza da história e mal começou a desacelerar. Mas o descontentamento pode
provocar cisões na cúpula do PC, uma ameaça real aos poderes imperiais de Xi.
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