quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Quinquênio para juízes é moralmente indefensável

O Globo

Decisões que tentam restaurar privilégio extinto há 16 anos precisam ser repelidas com energia

São moralmente indefensáveis as decisões do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre a remuneração de juízes. Ambas demonstram que, no afã de manter privilégios, Brasília não enxerga a realidade em que vive o Brasil. É preciso repeli-las com toda a energia. É ocioso — mas infelizmente necessário — repetir que juízes e procuradores são as categorias mais privilegiadas do serviço público brasileiro, cujo salário médio as coloca entre os 2% de maior renda no país. No Judiciário, proliferam privilégios já extintos noutras áreas, como férias de 60 dias, promoções automáticas, licenças-prêmio, aposentadorias compulsórias e outras benesses.

Em 24 estados, só o vale-refeição de juízes supera o salário mínimo. Mais de 8 mil magistrados já tiveram remuneração igual ou superior a R$ 100 mil — isso mesmo, R$ 100 mil — pelo menos uma vez desde 2017. Eles são um terço dos que recebem supersalários acima do teto constitucional.

Apesar de tudo isso, no dia 16 o CJF aprovou, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o retorno de um benefício salarial extinto há 16 anos para juízes federais que entraram na carreira até 2006. Conhecido como quinquênio, o Adicional por Tempo de Serviço (ATS) é um aumento automático de 5% no salário a cada cinco anos, sem conexão com mérito ou produtividade. A decisão também prevê o pagamento retroativo, com correção pela inflação. Pela decisão, os juízes ganharão boladas milionárias.

Existe uma palavra para descrever a resolução: ignomínia. Não apenas pelo atual momento de penúria, com uma bomba fiscal prestes a estourar e a necessidade de encontrar espaço no Orçamento para manter o pagamento de R$ 600 aos brasileiros em situação mais vulnerável. Em qualquer circunstância, seria um acinte.

A resolução do CJF contraria decisão do Supremo que proibiu gratificações e adicionais fora do teto constitucional para remunerar servidores públicos. A relatora Maria Thereza de Assis Moura, contrária ao aumento, ressaltou esse ponto, mas foi vencida no plenário por sete votos a quatro. A tese vencedora destacou os direitos adquiridos, mesmo argumento usado pelos senhores de escravos no século XIX contra a Abolição. Oxalá o STF tenha a lucidez de corrigir o absurdo.

Na onda da decisão do CJF, Pacheco ressuscitou a descabida Proposta de Emenda Constitucional 63, que mereceria ser batizada de PEC da Desigualdade Social. Ela prevê o quinquênio de 5% para todos os juízes (não apenas os que entraram na magistratura até 2006) e para procuradores. Em 2019, nove das dez maiores remunerações no Estado brasileiro estavam em cargos no Judiciário e no Ministério Público. Para a sociedade, as duas esferas do governo consomem anualmente 1,8% do PIB, 11 vezes o custo de instituições similares na Espanha, dez vezes o da Argentina e nove vezes o dos Estados Unidos. Não há paralelo no planeta para a prodigalidade com que o Brasil trata seu Judiciário, conhecido pela lentidão, burocracia e ineficiência.

O Brasil precisa de uma reforma administrativa que acabe com os privilégios absurdos da elite do funcionalismo, em particular juízes e procuradores. Não da recriação de uma das poucas excrescências de que nos livramos. Os senadores têm o dever de enterrar a ideia descabida de Pacheco e de promover a reforma que o país merece.

Redução nas bancadas facilita negociação de Lula com Congresso

O Globo

Mas é inverossímil que, precisando de apoio para a PEC da Transição, ele exija o fim do orçamento secreto

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, desembarcou nesta semana em Brasília com o objetivo de organizar uma base confiável no Congresso Nacional. O primeiro teste será a votação da PEC da Transição. Para o governo manter o valor do Bolsa Família redivivo em R$ 600 e dispor de recursos para recompor os gastos sociais, ela precisaria passar por duas votações no Senado e na Câmara nas próximas três semanas.

É esperado que o Legislativo reduza o pedido inicial do Executivo para gastar R$ 198 bilhões acima do teto em 2023 e R$ 175 bilhões nos três anos seguintes. Uma novidade nesta eleição favorece as negociações: a redução no número de bancadas no Congresso. Como demonstrou reportagem do GLOBO, elas serão apenas 16, a menor fragmentação partidária desde 1999. O enxugamento no número de partidos resulta da imposição da cláusula de desempenho e do fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais pela minirreforma política de 2017.

A cláusula de desempenho é progressiva: começou estabelecendo que, na eleição de 2018, só teriam direito à bancada partidos com no mínimo 1% dos votos válidos apurados para a Câmara, distribuídos em pelo menos nove estados da Federação. No último pleito, o patamar subiu para 2%. Será de 2,5% em 2026 e chegará a 3% em 2030. A proporção de votos em ao menos nove estados também aumentará até chegar a 2%. A exigência induz legendas ideologicamente próximas a se fundir ou criar federações, obrigadas a funcionar como partido durante toda a legislatura. Foi para não saírem do Congresso e manterem prerrogativas que PCdoB e PV formaram uma federação com o PT. Outros partidos preferiram se fundir.

Havendo menos partidos ou federações com que negociar, os arranjos entre Executivo e Legislativo tendem a se tornar menos custosos e mais republicanos. O presidencialismo de coalizão brasileiro só pode funcionar bem com uma quantidade limitada de partidos, do contrário há um incentivo intrínseco à corrupção, como o PT bem sabe. No primeiro governo Lula, o partido comprou o apoio parlamentar por meio do mensalão. Depois, com a descoberta do escândalo, adotou o petrolão. Na gestão Bolsonaro, surgiu o orçamento secreto.

Se mantiver de alguma forma nas mãos do Parlamento o poder de distribuir verbas bilionárias à revelia dos organismos de controle e fiscalização, não será difícil para Lula obter apoio ao que quiser. Ao mesmo tempo, não é razoável o Executivo abrir mão do poder sobre as verbas, alocadas e executadas sem critério técnico nem transparência. Lula faria bem em pressionar pelo fim da excrescência, mas é inverossímil que faça isso diante da necessidade premente de obter apoio no Congresso. Pelo visto, caberá ao Supremo declará-la inconstitucional. Sem o orçamento secreto e com menos partidos, o Brasil passaria a ter um sistema político mais justo, transparente e eficaz.

Maré ministerial

Folha de S. Paulo

Número de pastas deve subir com Lula, o que tem sua utilidade e seus riscos

A julgar por declarações do presidente eleito, pelo passado de gestões petistas e pelo inchaço da equipe de transição, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promoverá uma expansão do número de ministérios na administração federal. Isso não é necessariamente ruinoso como pregam adversários à direita, mas decerto implica riscos.

Havia não mais de 12 pastas em 1990, sob Fernando Collor, que apenas dois anos depois viu-se obrigado a elevar o número para 14; com Lula chegou-se a 37 e, com Dilma Rousseff (PT), atingiu-se o recorde de 39; Jair Bolsonaro (PL) prometeu que teria apenas 15, mas começou com 22 e termina com 23.

É muito difícil estabelecer relação direta entre a quantidade de postos de primeiro escalão e a qualidade da gestão pública. Sabe-se que na maioria dos países desenvolvidos o número de ministros ou cargos semelhantes varia em torno de 20 ou menos, mas são 38 no Canadá.

No Brasil, raramente ministérios são criados ou recriados em razão de uma necessidade administrativa real —vale dizer, para que se ocupem de uma área ainda não contemplada pelo Executivo federal.

Em geral, as novas pastas buscam acomodar aliados da coalizão de apoio ao presidente ou, sem excluir o primeiro objetivo, indicar maior prioridade a pleitos de um determinado setor da sociedade.

No segundo caso claramente se encaixa o provável restabelecimento do Ministério da Cultura, cuja estrutura foi colocada por Bolsonaro sob o Turismo. Lula também anunciou o Ministério dos Povos Originários, mirando outro campo menosprezado pelo atual mandatário e buscando aprovação global.

Não serão surpresas, tampouco, pastas ligadas a direitos humanos, mulheres e igualdade racial.

No passado, a multiplicação ministerial provocou desgaste para os governos do PT ao ser associada, nem sempre corretamente, à expansão imprudente de gastos, à corrupção e ao apetite do partido por cargos —a Esplanada chegou a ter 17 ministros petistas.

Fomentou-se na oposição o discurso de que a redução do número de pastas seria medida essencial para o reequilíbrio orçamentário, o que, como se viu sob Bolsonaro, é falso. Na verdade, servidores, órgãos e programas são simplesmente realocados, sem redução relevante de despesa.

Entretanto é fato que a expansão da máquina brasiliense pode gerar desperdício e ineficiência, especialmente quando se trata de barganhar apoios partidários com base unicamente na distribuição de cargos e verbas públicas.

Para minimizar tal efeito colateral, convém que Lula venha a dividir de fato as decisões de governo com outras forças, em vez de apenas cooptar siglas fisiológicas.

Penduricalho restaurado

Folha de S. Paulo

Volta do quinquênio de juízes eleva gastos e desdenha da realidade da população

Numa decisão que combinou corporativismo e desprezo pelos limites orçamentários do país, o Conselho da Justiça Federal (CJF) aprovou neste mês o restabelecimento de um benefício salarial para juízes federais extinto há 16 anos.

A regalia atende pelo nome de adicional de tempo de serviço, ou quinquênio, e propiciará a cada cinco anos um aumento automático de 5% no salário dessa categoria que, cumpre lembrar, não só se encontra entre as mais bem remuneradas do serviço público como desfruta de vantagens inacessíveis à maioria dos brasileiros.

Terão direito a mais esse apanágio juízes que ingressaram na carreira até maio de 2006, com direito a receber pagamentos retroativos corrigidos pela inflação.

O retorno do penduricalho, revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, foi proposto pela Associação dos Juízes Federais do Brasil e aprovado por 7 votos a 4.

Contrária à medida, a relatora do caso, Maria Thereza de Assis Moura, argumentou que o Supremo Tribunal Federal já firmara entendimento de que as verbas referentes ao adicional por tempo de serviço foram absorvidas pelo denominado subsídio salarial.

Trata-se de mecanismo criado em 2006 que estabelece uma cota única para os vencimentos, vedando, com algumas exceções, acréscimos remuneratórios.

Venceu, contudo, a tese de que o regime de subsídio não deveria eliminar o quinquênio, já que esse constituiria um direito adquirido desde o modelo anterior.

A decisão parece ter animado o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que pautou para esta quarta-feira (30) a votação de uma proposta que inscreve o quinquênio na própria Constituição.

A PEC ainda estende a regalia aos procuradores federais, gerando gasto adicional para os cofres públicos estimado em R$ 3,6 bilhões anuais —valor que pode chegar a inacreditáveis R$ 10 bilhões se for aplicada a todo o funcionalismo, como propõe uma das emendas.

Tanto a medida do CJF quanto a PEC denotam profundo alheamento da realidade financeira do Estado e das disparidades salariais no país, bem como ignoram os custos já excessivos do Judiciário.

A favor da proposta de emenda, invoca-se a necessidade de se corrigir distorções acumuladas. Tal ajuste, porém, não pode se dar às custas de um retrocesso que só servirá para desordenar ainda mais o controle dos gastos públicos.

Lira, a herança de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Hoje o grande desequilíbrio é o poder excessivo de lideranças do Congresso sobre o Legislativo e o Executivo. A precocidade do apoio a mais um mandato de Lira é sintoma desse quadro

Ainda não terminou o mês de novembro e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já conta com vários apoios para sua permanência no cargo no próximo biênio, que será decidida apenas em fevereiro de 2023. Ontem, PT e PSB anunciaram apoio a mais um mandato do deputado alagoano na presidência da Casa. Essa inédita antecipação dos tempos diz muito sobre a atual dinâmica entre os Poderes, resultado direto de quatro anos de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Nunca o presidente da Câmara teve tanta ascendência sobre os trabalhos da Casa e sobre outras esferas de poder como tem agora.

Talvez Arthur Lira atribua essa situação de proeminência da presidência da Câmara à sua inegável capacidade de articulação. No entanto, é certo que, no cargo que hoje ocupa, passaram outros muitos políticos habilíssimos na arte da negociação. A situação atual é, sobretudo, consequência de um Poder Executivo omisso e sem propostas, cuja prioridade foi apenas e tão somente tentar perpetuar-se no poder.

Em grandes linhas, pode-se dizer que o status atual de Arthur Lira é fruto do orçamento secreto. Nunca antes o Poder Legislativo dispôs de tanta autonomia para interferir na execução dos recursos do Executivo como dispõe agora por meio de diversas emendas, entre elas as de relator. E o orçamento secreto é resultado direto de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto: um presidente da República que, para evitar a abertura de um processo de impeachment – risco causado por suas ações e omissões caprichosamente alinhadas com os crimes de responsabilidade tipificados na lei –, abdicou de governar, cedendo largamente a gestão do Orçamento às lideranças do Congresso.

Com frequência, o bolsonarismo critica um suposto desequilíbrio entre os Poderes, no qual o Judiciário – em especial, o Supremo Tribunal Federal (STF) – exerceria um poder excessivo, prevalecendo sobre os demais. O interessante é que, se existe hoje algum desequilíbrio em relação à configuração institucional prevista na Constituição de 1988, ele ocorre precisamente na relação entre Executivo e Legislativo, com lideranças do Congresso dispondo de um poder desproporcional sobre as ações legislativas e as do governo federal. No entanto, o bolsonarismo nada diz sobre esse desequilíbrio, em uma peculiar cumplicidade.

Historicamente, os Parlamentos sempre contaram com a possibilidade de administrar a execução de alguns recursos públicos, definindo sua destinação específica. As emendas parlamentares são prática corrente em muitos países. No entanto, no Brasil o assunto saiu inteiramente dos trilhos constitucionais com as emendas de relator, o orçamento secreto. Lideranças do Congresso passaram a gerenciar diretamente, de forma discricionária, sem controle e sem transparência, a execução de parte cada vez maior do Orçamento da União.

Além de ser o exato oposto do que se entende por gestão republicana dos recursos públicos – transparente, controlável e baseada em critérios técnicos –, o orçamento secreto deu um poder desproporcional às lideranças do Congresso, o que gera danos sobre a própria representatividade do Legislativo. Não faz nenhum sentido que um único deputado federal disponha de tanto poder sobre o Congresso, órgão coletivo por essência. Tal é o poder que, para ter alguma expectativa de governabilidade, o governo eleito viu ser necessário declarar apoio, com enorme antecedência, a um novo mandato do atual presidente da Câmara.

Fica patente, assim, que os males causados por Jair Bolsonaro não se encerram no dia 31 de dezembro deste ano. A ter em conta os apoios precoces recebidos por Arthur Lira, a próxima legislatura estreará em fevereiro de 2023 já marcada e distorcida pelo desgoverno bolsonarista.

Essa precipitação dos tempos afeta a própria democracia. Nas eleições de outubro, a população elegeu um novo Congresso. No entanto, ao que tudo indica, a nova legislatura nascerá moldada pela anterior, que desde já consegue impor o mesmo presidente da Câmara. Nega-se, assim, ao eleitor o direito de mudar alguma coisa.

Os inimigos do Estado

O Estado de S. Paulo

Dados reunidos pela equipe de transição sobre o governo Bolsonaro expõem mais que cortes orçamentários: trata-se de profunda desestruturação do Estado em suas várias dimensões

A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social.

Ainda na campanha, a apresentação do Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para garantir o piso do Auxílio Brasil. O gabinete de transição do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, tem sido alimentado com relatos diários sobre o caos generalizado que terá de enfrentar no que diz respeito ao provimento de serviços públicos essenciais.

Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a quase R$ 2 bilhões. Alegando tratar-se de informações reservadas, o Ministério da Saúde resiste ao pedido de informações dos integrantes do governo eleito sobre o estoque de medicamentos na rede pública, desde analgésicos a antirretrovirais para o tratamento de HIV. A pasta tampouco apresentou dados sobre a fila de pessoas em busca de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A equipe de transição recebeu a informação de que há 5 milhões de processos referentes a benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com análise atrasada. O jornal Valor mostrou que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) – filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente depois do segundo turno.

Há muitos outros casos a confirmarem o quadro, e talvez não seja por acaso que o gabinete de transição tenha reunido mais de 400 pessoas – a imensa maioria trabalhando sem remuneração – dispostas a fazer um diagnóstico das urgências a serem enfrentadas em 2023. A substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.

Toda a prioridade do governo eleito tem sido dada à construção de acordos pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, solução escolhida para recompor a verba de programas prioritários do Orçamento de 2023. As informações reunidas pelo gabinete de transição revelam mais do que simples cortes de verbas e necessários remanejamentos orçamentários, mas uma profunda e generalizada desestruturação do Estado em suas mais diversas dimensões – em especial das raras políticas públicas que venciam todos os obstáculos até chegar efetivamente às famílias mais carentes.

“Quanto mais Estado, pior”, vaticinou o presidente, em uma entrevista que concedeu à revista Veja entre o primeiro e o segundo turno da eleição. Em vez de proporcionar mais foco, prioridade, eficiência e qualidade ao gasto público, o bolsonarismo apostou em uma sociedade quase feudal, em que cada um deve lutar pela sobrevivência literalmente com suas próprias armas. Diante dos péssimos resultados que o País colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social.

China em transe

O Estado de S. Paulo

‘Covid-zero’ empobrece e enfurece chineses, um alerta a quem enaltece o ‘modelo’ autoritário do PC

Que a política chinesa “covid-zero” seria um desastre econômico já era anunciado pelo Partido Comunista (PC) – “vidas primeiro” era o slogan oficial. Com o tempo, revelou-se um desastre sanitário. Agora, mostra-se um desastre político.

Os protestos que viralizam pela China são o maior desafio ao Partido desde as manifestações da Praça da Paz Celestial, em 1989. Seu gatilho foi um incêndio em um conjunto residencial. Com os bloqueios forçados, os moradores foram impedidos de sair e os bombeiros, de entrar. Dez pessoas – incluindo uma criança – morreram e dez saíram feridas.

A política “covid-zero” era especialmente estratégica para o culto à personalidade que vem sendo confeccionado por Xi Jinping, exaltado pela mídia estatal como “comandante em chefe da guerra contra a covid”. Ela foi projetada para contrastar a liderança de Xi e a paciência do povo chinês com os governos “caóticos” e o “individualismo” das democracias ocidentais. Além disso, era uma oportunidade de ouro para o Partido expandir seu aparato de controle social. Mas a paciência do povo está se esgotando e, por trás da muralha de repressão, o caos está fermentando.

A se confiar nas estatísticas chinesas, as quarentenas draconianas levaram a menos mortes. Mas causaram uma brutal desaceleração econômica. As classes média e baixa, impedidas de trabalhar, sofrem mais. O desemprego para os jovens bate os 20%.

Xi se encurralou em um dilema. Flexibilizar os lockdowns traria alívio econômico. Mas, além de admitir o fracasso de sua política sanitária, isso significaria aquiescer aos protestos e abrir as portas à disseminação do vírus em uma população vulnerável, seja pelas baixas taxas de imunidade natural, seja porque, aferrado a seu credo nacionalista, o governo se recusou a adquirir vacinas internacionais mais modernas – as chinesas são insuficientes e ineficazes, e os hospitais estão mal equipados para uma onda de internações. A outra opção é redobrar a repressão. Mas isso aumentará o risco de intensificar a revolta popular.

Em ambos os casos, as fissuras no mito da infalibilidade do “timoneiro”, como Xi é chamado, se aprofundarão. Já agora há manifestações sem precedentes pedindo sua “queda”: “Não queremos um líder vitalício”, clamaram manifestantes em Chengdu. “Não queremos um imperador.”

O fracasso serve de advertência às lideranças ocidentais enamoradas do autoritarismo chinês. O presidente eleito Lula da Silva, por exemplo, exaltou o “poder do comando” de um partido “forte”, que “estabeleceu um modelo de desenvolvimento para o mundo inteiro”. Mas, se as democracias podem ser – como muitas vezes foram na pandemia – erráticas, elas oferecem à população a oportunidade de criticar seus líderes, trocá-los e mudar de rumos.

Nesse momento, centenas de milhões de chineses trancafiados em suas casas assistem pela TV a multidões de todo o mundo se aglomerando no Catar, sem máscaras nem medo, para celebrar suas seleções. Como disse o “Super-homem de Chongqing”, manifestante chinês em um vídeo que viralizou, “sem liberdade e mais pobres, eis onde estamos hoje”.

A China está de novo em apuros com a covid-19

Valor Econômico

O descontentamento pode provocar cisões na cúpula do PC, uma ameaça real aos poderes imperiais de Xi

O presidente Xi Jinping concentrou o poder absoluto em suas mãos, após delegação do 20º Congresso do Partido Comunista Chinês no fim de outubro, o que também significa que assumiu responsabilidades por tudo o que der errado no país durante sua gestão, que pretende ser muito longa. Os problemas chineses se avolumaram desde então: o país vive os maiores protestos em massa desde 1989, contra a política oficial para enfrentar a covid-19.

Quase três anos depois de sediar o surgimento do vírus, Wuhan está novamente em severo lockdown, e a morte de 10 pessoas após incêndio em um edifício sob quarentena na região acendeu os protestos no resto do país - eles se espalharam por 18 cidades, inclusive Xangai e Pequim. Cálculos da corretora Nomura estimam que as cidades com restrições à mobilidade e lockdowns parciais produzem 25% do PIB nacional, porcentagem superior aos 21% de abril, quando Xangai, com 26 milhões de habitantes, ficou isolada (FT, ontem).

Passados quase três anos do início da pandemia, a estratégia do governo chinês é a mesma do início. Isolamento radical de pessoas, edifícios e fábricas, testagens em massa, frequentemente diárias, da população circulante e restrições drásticas de mobilidade. A nova onda da covid, porém, parece ser maior do que as anteriores, para padrões chineses. Na segunda-feira chegou a um pico de 38.800 casos (o pico diário no Brasil foi de 298,4 mil em fevereiro passado), com baixo número de mortes. Com proliferação de variantes mais infecciosas do vírus, torna-se cada vez mais difícil, custoso e politicamente desgastante evitar o contágio em grande escala em um país de 1,3 bilhão de pessoas.

As vacinas chinesas são consideradas de menor eficácia que as utilizadas fora do país, mas o governo nunca cogitou importar o produto estrangeiro ou produzi-lo localmente em parceria com empresas farmacêuticas. Assim, a principal questão continua sendo como proteger quem não foi vacinado e é mais vulnerável - os idosos, cada vez em maior número em uma nação cuja população logo começará a decrescer. Um terço das 267 milhões de pessoas acima de 60 anos está nessa situação. Pior, 60% dos acima de 80 anos não o fizeram. O simples fim da estratégia atual de combate ao virus trará risco de vida a milhões de pessoas. Não há solução fácil para o problema, ainda mais dentro dos dogmas do PC e de Xi Jinping.

Os protestos, no entanto, ativaram todos os genes stalinistas dos dirigentes chineses. Nenhuma manifestação foi noticiada pelos grandes jornais e houve censura total nas redes sociais. Os editores das TVs locais tiveram enorme trabalho para evitar cenas nas transmissões da Copa do Mundo em que torcidas aparecem sem máscara. Na segunda, Chen Wenqing, chefe da Comissão Central de Assuntos Políticos e Legais, resumiu a tarefa do governo: “Temos de reprimir resolutamente as atividades de infiltração e sabotagem de forças hostis, assim como atividades ilegais e criminosas que causam distúrbio à ordem social”, disse à agência oficial de notícias.

Em outro reflexo condicionado de burocratas autoritários, vale o dogma de que as falhas não provêm da cúpula do partido. A Comissão Nacional de Saúde, reconhecendo sem o dizer reclamações dos manifestantes, culpou os governos locais pelos “excessos” e por terem “negligenciado as demandas do público”. A política oficial está, portanto, correta, mas a culpa é dos outros. Toda a enorme energia devotada a manter em casa centenas de milhões de pessoas terá de ser melhor aplicada agora na vacinação em massa de idosos, algo de resultado lento em meio à maré montante de nova onda de contágio.

Com sua estratégia o governo colherá um crescimento bem abaixo da meta de 5,5% em 2022 e há quem projete taxa inferior a 3%. O caso da covid e das vacinas mostra que os saltos tecnológicos autóctones não fazem milagres onde a cooperação internacional poderia ser a solução. Desde Donald Trump, porém, a China se fechou politicamente diante de ofensiva dos EUA para impedir que ela assuma o topo da escala tecnológica e, por decorrência, econômica e militar.

Apesar das mobilizações, o governo chinês tem amplo domínio da situação e um enorme aparato de repressão e controle social. O temor de dirigentes de que a China repita o destino da União Soviética está fora de lugar. A URSS já era potência econômica decadente quando ruiu, enquanto que a China conseguiu retirar o maior número de pessoas da pobreza da história e mal começou a desacelerar. Mas o descontentamento pode provocar cisões na cúpula do PC, uma ameaça real aos poderes imperiais de Xi.

 

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