O Estado de S. Paulo.
A dívida precisa voltar a ser o centro do arcabouço fiscal. Ela não deve ser referência para um limite numérico, mas para uma tendência
O superávit das contas públicas em 2022
deve ser lido com cautela. A inflação e o câmbio perpassam esse desempenho. É
necessário restabelecer um arcabouço de regras mínimas; ao mesmo tempo:
críveis, transparentes e simples. Parte-se do teto de gastos, uma regra
desmoralizada pelo verdadeiro mosaico de emendas à Constituição aprovadas nos
últimos anos. O foco deve ser a contenção das despesas e o aumento das
receitas, com vistas à sustentabilidade da dívida pública em relação ao PIB.
A ideia do teto deve ser aproveitada, mas com maior flexibilidade. A dívida pública bruta tem de passar a ser a referência de médio prazo para a política fiscal. As limitações do gasto e as estratégias de reforma tributária estariam sujeitas a esse objetivo maior. Complexo? Claro. Mas é preferível o complexo e viável ao simples e inexequível. Explicando bem, a sociedade, a imprensa, o Congresso e os mercados entenderão.
Trata-se de copiar o bom mecanismo do
regime de metas à inflação. Nele, o Conselho Monetário Nacional fixa metas para
o índice de preços. O Banco Central, por meio do Conselho de Política
Monetária, calibra os objetivos adequados para o juro básico (a meta Selic).
Quando a meta de inflação é rompida, o presidente do Banco Central deve
explicar-se formalmente.
No lugar de regras draconianas, seria
saudável um regime fiscal baseado no aprendizado histórico. Em 1999, adotamos a
meta de resultado primário, isto é, um objetivo para a diferença entre as
receitas e as despesas, sem contar juros e variáveis financeiras. A Lei de
Responsabilidade Fiscal, em 2000, coroou esse processo ao criar uma série de
instrumentos e obrigações, a exemplo dos Relatórios de Gestão Fiscal.
O teto, em 2016, nasceu para limitar a
evolução das despesas. No entanto, pecou pelo excesso de rigidez, tanto nos
aspectos jurídicos e de redação quanto nos econômicos e fiscais. Não basta
dizer que o automóvel não deve ultrapassar 120 km/h na Castelo Branco. É
preciso saber o que acontece se a regra for burlada.
No caso do teto, não havia essa previsão.
Apesar do conjunto de gatilhos – medidas restritivas para o caso de rompimento
do teto –, o seu acionamento era simplesmente impossível. Se a Lei Orçamentária
Anual fosse enviada ao Congresso com o teto estourado, o risco seria configurar
crime de responsabilidade.
Quando eu ainda estava na direção da
Instituição Fiscal Independente (IFI), alertamos diversas vezes para esse
problema. A chamada PEC Emergencial, que redundou na Emenda 109, tentou
resolvê-lo, em razão do estouro iminente do teto. Não conseguiu. Tanto é assim
que as mudanças constitucionais que se seguiram trataram de abrir espaço no
teto a fórceps. Daí o termo “desmoralização” empregado.
Que fazer daqui em diante? A dívida precisa
voltar a ser o centro do arcabouço fiscal. Ela não deve ser referência para um
limite numérico, mas para uma tendência, como venho defendendo. É preciso ter
claro que a dívida vai subir, na esteira dos juros reais elevados. O patamar de
cerca de 74% do PIB, no fim de 2022, é ilusório, porque reflete um PIB nominal
(aquele que considera a inflação) inchado, justamente pela alta dos preços. Os
juros mais altos inverterão essa tendência automaticamente em 2023.
Projetando os cenários para quatro anos à
frente, é possível desenhar uma trajetória que contemple esse crescimento,
seguido de estabilidade e queda; sempre como proporção do PIB. Essa trajetória
seria a baliza para fixar as metas de primário e as restrições ao gasto.
As medidas já anunciadas pela equipe
econômica são positivas, mas muito concentradas no curto prazo e no lado da
receita. É hora de formular um plano fiscal de médio prazo coeso, com medidas e
reformas legais e constitucionais que ajudem a controlar a despesa pública.
Numa segunda frente, o ciclo econômico pode
colaborar com o ajuste fiscal. A recuperação da economia ajuda a arrecadação,
desde que se mantenha o controle da inflação, com juros convergindo para níveis
civilizados. Em tempo, não adianta reclamar com o Banco Central. Juros são
consequência. O custo de tomar emprestado sempre será alto quando a capacidade
de geração de renda e riqueza for baixa e os déficits, altos.
O governo anterior perdeu uma oportunidade
de reformular o arcabouço fiscal. Fez contrarreformas no teto de gastos no caso
dos precatórios e das licenças constitucionais para gastar mais,
aproveitando-se das delícias dos efeitos de curto prazo da inflação. Mas,
agora, José, a festa acabou. “Não, não foi surpresa para mim / Tudo na vida tem
fim”, cantava Clara Nunes.
Neste espaço, mostrei que as contas
públicas estavam embaladas pela ajuda camarada da inflação, essa velha
conhecida dos governos e das famílias. De todo modo, há muito por fazer, a começar
pelo compromisso com a sustentabilidade da dívida.
É assim que se resgatará a credibilidade
junto dos mercados, barateando o custo da dívida e abrindo espaço para
financiar mais políticas públicas. Deixem o Banco Central trabalhar, pois vai
muito bem sob a batuta de Roberto Campos Neto. Vamos focar na política fiscal!
*Economista-chefe e sócio da Warren Renascença,
foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e o primeiro
diretor-executivo da IFI
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