terça-feira, 25 de abril de 2023

Yuen Yuen Ang* - Neoliberalismo e intervencionismo

Valor Econômico

Uma terceira opção, há muito negligenciada, é os governos supervisionarem processos de baixo para cima de improvisação e criatividade

Intervir ou não intervir. Esse tem sido o debate central sobre o papel do Estado na economia pelo menos desde o século XVIII. Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos e outras democracias liberais do Ocidente defenderam o livre mercado, o livre comércio e um papel limitado para o governo - uma posição conhecida como neoliberalismo ou “fundamentalismo de mercado”. Para alguns comentaristas, a aprovação recente da Lei dos Chips e da Ciência e da Lei da Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), as duas políticas industriais que são a marca do governo do presidente Joe Biden, representa o fim do neoliberalismo e o ressurgimento do intervencionismo como paradigma dominante.

Mas essa é uma falsa dicotomia. Os governos não estão limitados a uma escolha binária entre o laissez-faire e o planejamento de cima para baixo. Uma terceira opção, há muito negligenciada pelos formuladores de políticas e economistas, é os governos supervisionarem processos de baixo para cima de improvisação e criatividade, algo semelhante ao papel de um maestro de orquestra. É possível encontrar muitos exemplos disso na China e nos Estados Unidos.

O neoliberalismo surgiu como paradigma dominante de formulação de políticas no Ocidente na década de 80. Sob o presidente Ronald Reagan, os EUA buscaram a desregulamentação, cortaram impostos e reduziram os programas de assistência social. A intervenção do governo, dizia o pensamento, inevitavelmente leva a distorções de políticas, dependência de esmolas estatais e corrupção. Como Reagan disse em seu primeiro discurso de posse, “o governo não é a solução para o nosso problema; o governo é o problema”.

Logo depois, o neoliberalismo se tornou global. Sob o Consenso de Washington, um termo criado pelo economista John Williamson em 1989, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, dominados pelos EUA, pressionaram os países em desenvolvimento a abraçar a desregulamentação, a privatização e o livre comércio. Uma receita política preferida das autoridades e economistas era “garantir os direitos de propriedade”, o que gerou uma pequena indústria de estudos mostrando a ligação entre esses direitos e o crescimento econômico. A noção era que tudo que os países precisavam para prosperar era deixar os mercados para os empreendedores privados. A intervenção estatal era desnecessária, se não totalmente prejudicial.

Mas nem todos os países em desenvolvimento concordaram. Desafiando as prescrições ocidentais, o Japão e quatro “tigres asiáticos” - Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan - optaram por uma intervenção governamental pesada. Ao elaborar planos de longo prazo, investir em infraestrutura pública e selecionar e promover setores potencialmente bem-sucedidos com políticas favoráveis, todos eles conseguiram um crescimento econômico extraordinário entre os anos 60 e 90. Os defensores do modelo que sustentou o “Milagre do Leste Asiático” criticaram o Consenso de Washington por ele ignorar o papel indispensável dos governos nas economias em desenvolvimento tardio.

O pêndulo ideológico tem oscilado para frente e para trás desde então. Os neoliberais tiveram uma vantagem momentânea depois da crise financeira asiática de 1997, amplamente atribuída à intervenção estatal. Mas a maré começou a virar depois da crise financeira de 2008. Diante da desigualdade crescente, a pandemia de covid-19 e a competição da China, um número crescente de políticos e assessores argumenta que o Ocidente deveria seguir os passos da Ásia e adotar políticas industriais.

O que está faltando no debate é a terceira via, que eu chamo de “improvisação dirigida”. Conforme relato em meu livro “How China Escaped the Poverty Trap”, as reformas econômicas da China entre os anos 80 e 2012 ilustram esse papel híbrido. Dirigir envolve coordenar e motivar uma rede descentralizada de atores criativos, descobrir mas não predeterminar resultados bem sucedidos e fazer amplo uso da experimentação e do “feedback” de baixo para cima.

O boom econômico da China é frequentemente creditado ao planejamento de cima para baixo por um governo forte. Mas se o autoritarismo e o planejamento central fossem a resposta, a China teria prosperado sob Mao tsé-Tung. Quando Deng Xiaoping sucedeu Mao em 1978, ele silenciosamente revolucionou a China. O governo central passou de ditador a diretor, articulando metas nacionais claras e estabelecendo incentivos e regras apropriados, mas também empoderando os governos subnacionais para que eles pudessem improvisar estratégias de desenvolvimento de acordo com as condições e necessidades locais.

Refletindo o pragmatismo de Deng, o sistema chinês era uma mistura de elementos múltiplos (às vezes contraditórios) que incluíam o desenvolvimentismo ao estilo asiático e a liberalização ao estilo ocidental. A ordem fundamental era a aparentemente paradoxal combinação de direção e improvisação. Como diz um ditado chinês, o governo central monta o palco e os governos locais encenam a peça.

O resultado tem sido uma diversidade de “modelos chineses” regionais operando simultaneamente dentro do sistema chinês mais amplo. Por exemplo, embora as províncias de Zhejiang e Jiangsu sejam potências industriais, o setor privado tem um papel maior na economia de Zhejiang, enquanto que Jiangsu depende de um modelo mais intervencionista.

O papel do governo dos EUA no apoio à inovação, que os sociólogos Fred Block e Matthew Keller chamaram de “descentralização coordenada”, é outro exemplo de improvisação dirigida. Na metade do século XX, os EUA promoveram uma rede descentralizada de inventores, companhias, universidades e laboratórios engajados em pesquisas científicas de ponta. O país não os deixou por conta própria nem lhes disse o que fazer.

Em vez disso, coordenou o compartilhamento de conhecimento, ajudou a identificar oportunidades para comercializar descobertas e forneceu capital inicial, o que criou as condições para o que hoje conhecemos como revolução da tecnologia da informação e comunicação.

À medida que uma economia se torna mais complexa e tecnologicamente avançada, fica mais difícil - talvez até mesmo impossível - para os governos escolher os vencedores. A inovação é inerentemente incerta. Voltando aos anos 90, por exemplo, poucos teriam pensado que uma vendedora de livros pela internet se tornaria o maior grupo varejista do mundo.

As autoridades relutam em falar sobre a criatividade. Elas preferem falar sobre os mercados ou planos, a reconhecer que a inovação é necessariamente um processo criativo com resultados incertos. Mas embora os governos não possam controlar esse processo, eles podem direcioná-lo e influenciá-lo. Para fazer isso, as autoridades precisam antes abandonar a falsa dicotomia do neoliberalismo versus o intervencionismo. (Tradução de Mário Zamarian)

*Yuen Yuen Ang, diretora da área de Economia Política da Universidade Johns Hopkins, é autora de “How China Escaped the Poverty Trap” (Cornell University Press, 2016) e “China’s Gilded Age” (Cambridge University Press, 2020).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo.