domingo, 4 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Reforma do ensino médio precisa seguir adiante

O Globo

Suspensão temporária deve ser aproveitada para incorporar sugestões necessárias a seu aperfeiçoamento

Lançada por Medida Provisória ainda no governo Michel Temer, a reforma do ensino médio, que estipula escola em tempo integral e diversos percursos de formação para os alunos, foi suspensa pelo Ministério da Educação (MEC), sob o pretexto de reavaliar seu impacto. O erro mais grave seria revogá-la e retomar toda a discussão sobre o tema da estaca zero, apenas para agradar a grupos de interesse afetados, como os sindicatos de professores. A reforma é estratégica e, embora necessite de ajustes, precisa ser retomada com urgência. Contribuição essencial para isso vem de uma nota técnica do movimento Todos Pela Educação, elaborada com o auxílio de acadêmicos, secretários estaduais e profissionais do ensino médio.

No longo caminho para a melhoria do ensino público básico, ficou evidente que o ensino médio, com suas elevadas taxas de evasão, necessitava de uma reforma específica. Ela foi lançada em 2016 e convertida em lei no ano seguinte. O ensino foi ampliado de 800 horas para pelo menos mil horas anuais de aulas, com uma nova organização de currículo. Com o objetivo de aumentar o interesse pelo conteúdo, os percursos se tornaram flexíveis, com a oferta aos alunos de quatro áreas de conhecimento (matemáticas, linguagens, ciências da natureza e ciências humanas e sociais aplicadas). Ganhou destaque a opção pelo ensino técnico e profissional, e estabeleceram-se “itinerários formativos” para incentivar o estudo por meio de oficinas e projetos diversos, escolhidos com a participação dos alunos, com o fim de obter competências exigidas pelo mercado de trabalho.

Além de enfrentar resistências de sindicatos e grupos mais à esquerda, o projeto de reforma já emitia sinais de que precisava ser alterado. As disciplinas básicas foram prejudicadas ao dividir a carga horária com os novos percursos, e não foram criados critérios sensatos para definir o que vale como itinerário formativo. Corrigir tais pontos é o que se espera que o MEC faça agora, depois de promover audiências públicas e receber propostas.

As mudanças sugeridas na nota técnica do Todos Pela Educação levam a um relançamento da reforma, com alterações na Lei de Diretrizes e Bases, portarias e normas do MEC. Com a carga horária máxima de 1.800 horas para o currículo básico, ficou curto o tempo para algumas disciplinas. Para acomodar todas elas, sem prejudicar a formação geral básica e o tempo concedido aos itinerários formativos, uma das propostas é estabelecer o mínimo de 2.100 horas para a formação geral e 600 horas para os itinerários.

Em relação à outra deficiência — a falta de orientação para a escolha dos itinerários, que gerou casos bizarros como uma disciplina sobre “brigadeiro caseiro” —, a proposta é que, da carga horária mínima de 600 horas anuais dedicadas a eles, 80% destinem-se a aprofundar assuntos da área de conhecimento escolhida pelo aluno. Do conjunto de propostas consta também restringir o ensino à distância, cujas limitações ficaram comprovadas durante a pandemia. O MEC precisa agora se debruçar sobre essas e outras sugestões para corrigir as deficiências da reforma. O Brasil não pode mais perder tempo, nem ceder à pressão daqueles que querem deixar tudo como está. Sem aperfeiçoar o ensino médio, continuaremos a padecer da deficiência crônica na qualidade da mão de obra que atravanca o desenvolvimento.

Risco das redes sociais para crianças e jovens exige medidas de prevenção

O Globo

Relatório do governo americano constatou relação entre uso da internet e danos à saúde mental

Medicamentos são testados exaustivamente antes de chegar às farmácias. Carros precisam estar equipados com airbags, e crianças pequenas só podem andar presas a cadeirinhas. Parece inacreditável, mas a mesma lógica ainda não é aplicada às redes sociais. Nelas, as práticas de segurança são irrisórias, deixando crianças e adolescentes sem proteção diante de vários perigos. Políticas de prevenção para uso de redes sociais são a principal recomendação do relatório divulgado na semana passada pela mais alta autoridade americana em saúde pública, o Escritório do Cirurgião-Geral. Relatórios similares mudaram o debate sobre o cigarro e a aids no século passado.

Como as redes sociais são criadas para manter alto engajamento, pesquisadores acreditam que elas podem induzir o vício. Em casos mais extremos, a internet também é um terreno fértil para a ação de pedófilos, ideias extremistas, conversas sobre como realizar massacres e pactos de suicídio ou automutilação. Nas palavras do cirurgião-geral Vivek Murthy, elas podem provocar “um profundo dano à saúde mental e ao bem-estar de crianças e adolescentes”.

No Brasil, 96% dos usuários de internet de 9 a 17 anos a acessam todos os dias ou quase todos os dias, e 86% têm perfil em rede social. Três em cada dez dizem ter acontecido algo na internet de que não gostaram, que os ofendeu ou chateou, constatou a pesquisa Tic Kids Online Brasil 2022, divulgada em maio. Os períodos de pré-adolescência e adolescência são marcados pela vulnerabilidade. Levantamentos em diferentes países apontam relação entre uso de redes sociais e casos de depressão provocada por bullying e de transtornos alimentares.

Claro que as redes trazem benefícios aos jovens, como a possibilidade de conversar com amigos, obter informações ou se divertir. O que teria sido dos adolescentes sem um celular durante a pandemia? A internet pode ser particularmente benéfica à saúde mental de minorias, ao permitir a afirmação de uma identidade a partir de conexões e redes de apoio. Não é preciso eliminar tais benefícios para reduzir os riscos.

O relatório do cirurgião-geral pede a colaboração das plataformas digitais para que acadêmicos independentes tenham acesso a todos os dados necessários para pesquisas. Isso não tem acontecido. Sem dados, será difícil preencher as lacunas no conhecimento sobre redes sociais e saúde mental. Com base nos estudos existentes, porém, formuladores de políticas públicas e legisladores já deveriam ter tomado medidas corretivas e preventivas. Pais, crianças e adolescentes não podem mais ficar sozinhos, à mercê dos perigos digitais.

Democracia e economia

Folha de S. Paulo

Normalidade importa mais do que o PIB; alternância minimiza erros no longo prazo

Dadas as tensões políticas e institucionais que se acentuaram nos últimos anos, será particularmente doloroso —e perigoso— que nova etapa de retrocesso econômico afete diretamente o bem-estar da sociedade brasileira. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), infelizmente, tornou esse risco mais elevado.

A aposta na hipertrofia estatal como meio de resolução de conflitos e carências, que desde antes da posse se traduz em aumento contínuo e insustentável do gasto público, dificulta o controle da inflação, a queda dos juros e, logo, a retomada do crescimento da produção e da renda em bases duradouras.

O novo regramento orçamentário, que tramita no Congresso com o aval das forças fisiológicas, estabelece apenas limites débeis ao avanço da despesa, sem oferecer uma perspectiva confiável de contenção da dívida pública, hoje já em patamares exagerados para uma economia emergente.

Pelo panorama que se desenha à frente, ou haverá arrocho desmesurado da carga tributária ou nova escalada do endividamento. Nas duas hipóteses, o investimento e o emprego tendem a ser sufocados.

Uma quadra de mediocridade já seria um infortúnio para um país cuja renda per capita ainda é menor que a de dez anos atrás. Há mais perigos, porém.

Lula ensaia promover uma contrarreforma dos avanços renegados pelos ideólogos de seu partido. Assim se dá com o assédio obsessivo à autonomia do Banco Central, que favoreceu uma troca de governo sem maiores solavancos financeiros —em contraste, aliás, com a explosão do dólar e dos juros de 2002, na primeira conquista presidencial do petista.

Não satisfeito em interromper privatizações, o mandatário busca reaver o controle da Eletrobras, sabota a legislação que profissionalizou a gestão das estatais e enfraquece as agências reguladoras.

Com o mesmo ímpeto estatizante, corporativista e clientelista, investe contra o marco legal do saneamento, instituído na tentativa de universalizar um serviço ao qual cerca de 100 milhões de brasileiros vergonhosamente ainda não têm acesso, reflexo do modelo estatal que vigorou por décadas até 2020.

Políticas de subsídios a empresas, concentradoras de renda e geradoras de ineficiência, são ressuscitadas a pretexto de fortalecer a indústria nacional. O incentivo à volta de carros supostamente populares acrescenta um tom tragicômico à agenda passadista.

Tudo considerado, entretanto, os desmandos econômicos não podem obscurecer o retorno à normalidade institucional com a eleição de Lula.

Após quatro anos de ameaças contínuas à democracia sob Jair Bolsonaro (PL), é um alento que as instituições tenham evitado uma ruptura, que as Forças Armadas tenham respeitado seu papel constitucional, que o diálogo entre os Poderes esteja restabelecido e que o presidente não açule seguidores e o aparelho do Estado contra a crítica.

A soberania das urnas e a alternância de poder acabam por funcionar como antídotos contra más políticas econômicas. Governos que empobrecem a população em geral não são reconduzidos. Reside aí a tênue esperança de que Lula reverta a repetição de velhos erros —ou, ao menos, que o Congresso Nacional, hoje mais protagonista, o faça.

Dez anos depois

Folha de S. Paulo

Falta líder que encarne junho de 2013, que catalisou a rivalidade política atual

Em junho de 2013, o Brasil assistia ao desgaste de um partido havia mais de década no poder, com lideranças condenadas por corrupção poucos meses antes. Exauria-se um forte ciclo de crescimento econômico, cujo prolongamento artificioso tornara-se a obsessão de um governo inábil.

O contexto internacional não era menos desafiador. Uma crise financeira global havia sido domada à custa de ciclópicas intervenções de tesouros e bancos centrais. Massificava-se a utilização das redes sociais, que haviam dado mostras de seu poder de mobilização na rodada de revoltas da Primavera Árabe.

A tarifa de transporte em metrópoles brasileiras —cuja alta costumeira do início do ano fora adiada por pressão da presidente Dilma Rousseff (PT)— serviu como estopim dos protestos iniciais de rua. Grupos juvenis inexpressivos bateram-se contra a tentativa de reajuste e de repente se viram inundados por uma torrente de apoiadores com variadas reivindicações.

A violência passou a acompanhar as passeatas, algo até então incomum na política da Nova República, sob a forma de depredações, confrontos e repressão abusiva das polícias. Prédios federais em Brasília foram fustigados por multidões como só ocorreria novamente em 8 de janeiro de 2023.

A coloração esquerdista da primeira fase da revolta deu lugar à de seus antípodas na etapa seguinte. As camisetas amarelas predominavam ao final, com uma mixórdia que incluía repúdio ao intervencionismo econômico, clamores anticorrupção e conservadorismo nos costumes. Grupelhos autoritários perderam o pudor de exibir seu ódio à democracia.

Essa direita renovada e popular, fenômeno também inédito no Brasil democrático, firmou-se no cenário político nacional. Propiciou as disputas presidenciais apertadíssimas de 2014 e 2022, o aval multitudinário ao impeachment em 2016 e a eleição de um demagogo autoritário, Jair Bolsonaro, em 2018.

Já a esquerda permaneceu na órbita do PT, que disputou o segundo turno nas três eleições presidenciais seguintes e venceu duas delas.

Nenhum dos dois lados da anteposição que se sustenta desde então no país logrou converter-se em maioria sólida seja na sociedade, seja na representação política.

Ficou evidente que vilipendiar a institucionalidade, mensagem implícita em alguns discursos desde as Jornadas de Junho, é atalho para o despotismo, não para a resolução dos graves problemas nacionais.

A melhor síntese de 2013 —um país em busca de justiça e amparo social, democracia, progresso material, liberdade econômica e compostura no exercício do poder— ainda não encontrou uma liderança que a personifique.

Ação em rede

Folha de S. Paulo

Capacitação de professores e centros integrados ajudam a combater abuso infantil

São preocupantes os números da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. O Ministério dos Direitos Humanos registrou alta de 48% nas denúncias feitas pelo Disque 100 no primeiro quadrimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2022.

Já na internet, as notificações de imagens de abuso sexual infantil aumentaram 70% nos quatro primeiros meses do ano, de acordo com a ONG SaferNet.

Em relação à prevenção, estamos em 25º lugar entre 60 países, atrás de nações menos desenvolvidas como Ruanda, Vietnã e Quênia, segundo o índice Out of the Shadows (Fora das Sombras), produzido pela revista The Economist.

Se antecipar às agressões é importante porque na maioria das vezes a vítima convive com o potencial agressor —76,5% dos casos acontecem dentro de casa, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E a escola cumpre papel importante nessa tarefa.

No Brasil, não há uma diretriz nacional e material didático específico para que professores possam transmitir noções básicas de educação sexual, inclusive formas de evitar, identificar e combater casos de abuso. Governos municipais, portanto, precisam estabelecer políticas sobre o tema.

O Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, acompanha 30 mil crianças que sofrem de transtornos mentais. Dessas, cerca de 8.000 foram vítimas de violência, sendo 900 do tipo sexual. Para prevenir casos e agilizar denúncias, o programa realiza seminários itinerantes para capacitar educadores da rede pública de ensino.

Já do ponto de vista do acolhimento, da investigação e da punição, é preciso maior integração entre as diversas instituições envolvidas na apuração desse tipo de crime —como Conselho Tutelar, Polícia Civil, Instituto Médico Legal, Ministério Público e Secretaria Municipal de Saúde.

Cidades como Porto Alegre, Fortaleza, Rio de Janeiro, Brasília e Vitória da Conquista já possuem centros interdisciplinares do tipo.

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um crime complexo e silencioso, dado que ocorre no ambiente doméstico e com vítimas submetidas à estrutura de poder familiar. Para enfrentá-lo é necessário inteligência no desenho de políticas públicas que atuem em redes de ponta a ponta, da prevenção à punição dos culpados.

Nossos filhos nas redes sociais

O Estado de S. Paulo

Ante indícios de que as redes contribuem para transtornos mentais de crianças e adolescentes é preciso garantir mais controle dos pais e impedir a monetização de seus dados e engajamento

Muita tinta e saliva têm sido gastas sobre o papel das redes sociais na polarização política e na degradação da verdade. Se em geral elas favorecem a “arte da associação”, que Alexis de Tocqueville via como chave de uma democracia vibrante, seus elementos tóxicos a deterioram. Mas, além da cultura cívica que essa geração legará à próxima, eles podem estar degradando a saúde mental dos herdeiros. O “risco pode ser profundo”, adverte um relatório da principal autoridade de saúde americana, dr. Vivek Murthy.

Fato: algo terrível aconteceu com a Geração Z, nascida após 1996. Na última década, as taxas de depressão, ansiedade, comportamentos autodestrutivos e suicídios escalaram entre crianças e adolescentes, justamente os que cresceram sob o uso massivo e diário das redes viabilizado pelos smartphones. Correlação não implica causalidade, e, mesmo sendo uma causa, as redes não são a única. Mas há indícios de que, além de reforçar as outras, elas são a principal.

Algo dessa ansiedade pode refletir a ansiedade dos pais com tensões políticas e sociais. Uma cultura protecionista e a pressão por resultados deixa às crianças cada vez menos tempo para atividades livres e não supervisionadas entre si, minando o desenvolvimento de suas habilidades em cooperar, ceder, solucionar conflitos e tolerar adversidades. Essa psique fragilizada é palpável nos campi, onde universitários “cancelam” opiniões que são sentidas como “violência”.

A terceirização da educação e recreação para as telas pode ter um papel no isolamento dos jovens. Sua relação com transtornos mentais é mais incerta. Nesse sentido, as telas seriam como um novo alimento. A comida é necessária à vida; desbalanceada, é nociva. As telas seriam como açúcar, dispensável para a nutrição, mas saboroso, e, em excesso, pernicioso. Já as redes parecem ser algo mais. Não são como veneno de rato, tóxico para todos, mas mais como o álcool, uma substância medianamente viciante que facilita interações sociais, mas pode levar à dependência e depressão de uma minoria. Para jovens em desenvolvimento cerebral e emocional, alerta Murthy, as sequelas podem ser agudas.

Por décadas as mídias tradicionais, sob pressão social e governamental, se autorregularam para manter seu conteúdo amistoso às famílias. Isso contrasta com a anarquia online. No caso das redes, há uma novidade radical. Os usuários não são só espectadores, mas interagem com os produtores de conteúdo e, sobretudo, expõem seus conteúdos. E há o modelo de monetização: utilizando dados pessoais para maximizar o engajamento dos usuários e expô-los à publicidade, o desenho dos algoritmos estimula o vício, a agressão, conspirações e outros comportamentos antissociais.

Adolescentes são singularmente sensíveis ao julgamento de amigos e da multidão digital. “As mídias sociais parecem sequestrar esta sensibilidade aguda aos pares e induzir a um pensamento obsessivo sobre a imagem corporal e a popularidade”, advertiu o psicólogo Jonathan Haidt.

Murthy e Haidt recomendam às famílias estratégias, como confraternizações offline, e convergem em focos regulatórios que obriguem as redes a permitir que pesquisadores acessem seus dados; a dar, via controles parentais, mais poder aos pais e menos às empresas, que deveriam inclusive ser responsabilizadas por danos causados por ou a menores que utilizem perfis não autorizados por um adulto responsável; e a criar ambientes adequados às crianças, caso não consigam mantê-las afastadas. Crucial é impedir a monetização de seus dados e engajamento tal como se faz com adultos.

No mundo “real” os jovens estão sendo introduzidos no espaço público adulto cada vez mais tarde; no mundo “virtual”, cada vez mais cedo. Para piorar, a praça pública digital é controlada por corporações que, para maximizar seu lucro, estimulam a adicção e comportamentos intrusivos e performáticos numa competição por popularidade. Enquanto os adultos dessa geração avaliam as consequências desse ambiente para si, a prudência exige manter seus filhos a uma distância segura.

‘Parlamentarismo’ sem freios

O Estado de S. Paulo

O Congresso não pode apenas acumular poder e exercê-lo sem quaisquer controles. A República não admite Poderes incontidos. Passa da hora de o País discutir a sério o ‘semipresidencialismo’

A série de derrotas que o presidente Lula da Silva tem amargado no Congresso, cujo ápice foi a diluição de seu poder para determinar até mesmo como seria a organização administrativa do governo, revela que o presidencialismo agoniza no Brasil – não do ponto de vista jurídico-institucional, mas em sua natureza, vale dizer, como a forma de governo na qual o presidente da República é quem se ergue como principal indutor da agenda nacional. Nesses primeiros meses de mandato, Lula tem sido muito mais um coadjuvante do que um protagonista na orientação dos rumos do País.

O que se vê instalado no Brasil há alguns anos é um modelo de governança a um só tempo disfuncional e muito distante do espírito da Constituição de 1988. Em troca da chamada governabilidade, presidentes fracos – seja moral, política ou administrativamente – têm cedido cada vez mais poder ao Congresso, que, por sua vez, o tem exercido sem ser contido pelos freios próprios do parlamentarismo, como a moção de censura ou o poder de dissolução do Parlamento pelo presidente, com convocação de novas eleições. Não há como essa gambiarra à brasileira dar certo. Ademais, a República não admite Poderes incontidos.

A bem da verdade, Lula não é o primeiro presidente a ter de se submeter aos humores e à voracidade de parlamentares oportunistas, que sentem o cheiro do sangue que governos fracos jorram na água. Mas poderia ser o último, se assim realmente quisesse. Não parece ser o caso.

O mesmo Lula que prometeu durante a campanha eleitoral não apenas “salvar a democracia” no Brasil, como resgatar o presidencialismo do limbo é o presidente que ora apenas assiste, inerte, ao aumento do protagonismo do Congresso em troca de uma governabilidade extremamente frágil. Muito diferente daquele Lula bravateiro da campanha de 2022, o presidente parece tão acuado que, há poucos dias, sentiu-se compelido a pedir desculpas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pela falta de traquejo de seus emissários para a articulação política com os parlamentares.

Desde o trevoso governo de Dilma Rousseff, a quem pode ser atribuída a concepção desse modelo de empoderamento desmesurado do Congresso, tanto por sua fraqueza política como por sua notória, até anedótica, ojeriza à interlocução com deputados e senadores, o Poder Legislativo vem ocupando o espaço vazio deixado por presidentes que não apresentaram ao País nem um programa de governo inclusivo e responsável, capaz de envolver diferentes segmentos da sociedade em torno de objetivos comuns, nem disposição para governar de fato. A exceção foi o governo de Michel Temer, que tentou – e em boa medida conseguiu – estabelecer um reequilíbrio de forças na Praça dos Três Poderes, ao qual se convencionou chamar de “semipresidencialismo”.

Passa da hora de o País discutir a sério a adoção desse modelo. A estrovenga que ora impera como modelo de governança informal do País não está funcionando, ou ao menos só tem funcionado bem para o Congresso. Para o Brasil, é tão ruim estar à mercê de presidentes fracos como de um Congresso forte, porém sem controle no exercício de seu poder.

Os brasileiros, como é sabido, já rejeitaram o parlamentarismo por mais de uma vez, talvez por depositar na figura do presidente da República todas as suas esperanças, angústias e revoltas. Talvez seja o caso de tentar o modelo “semipresidencialista”. É muito difícil, para não dizer impossível, imaginar o Congresso cedendo um naco que seja do poder que acumulou nos últimos anos. Que ao menos, então, passe a exercê-lo com mais responsabilidade na figura de um primeiro-ministro que pode cair quando errar, sem provocar grandes crises, ou ser reconduzido pelo tempo em que estiver governando o País como deseja a maioria dos brasileiros, por meio de seus representantes no Parlamento.

Há uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata da adoção do “semipresidencialismo” no Brasil a partir da eleição de 2030, dando chance ao atual presidente de concorrer à reeleição. É hora de desengavetá-la.

O campo, de novo, salva o PIB

O Estado de S. Paulo

Resultado do crescimento deve-se ao agronegócio, mas Lula preferiu louvar o Bolsa Família

O crescimento de 1,9% da economia no primeiro trimestre do ano, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi o samba de uma nota só, executado no compasso do agronegócio. Mais do que segurar, o agro catapultou o Produto Interno Bruto (PIB) a um patamar acima das expectativas, contribuindo para o desempenho positivo do setor de serviços e impedindo a queda mais acentuada da indústria.

O avanço exuberante de 21,6% da agropecuária no período deixa a falsa impressão de que a economia brasileira vai bem. Não vai, como indicam a estagnação do consumo das famílias, com 0,2% de alta, e o tombo de 3,4% no investimento. O agro vai bem. E, apesar da improvável repetição, nos próximos trimestres, da mesma pujança do início do ano, já garantiu com o saldo a revisão das projeções para o crescimento econômico de 2023, que deve se situar em torno de 2%, como previra o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

A demonstração de força do agronegócio ocorre num momento em que estão sendo discutidas as condições do Plano Safra 2023/24. Por isso não foi mera coincidência o resultado do PIB ter sido comemorado com mais entusiasmo pelo ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, do que pelo próprio Haddad. “É um PIB espetacular, mostrando a força da economia”, vibrou Fávaro. “Devemos ter cautela, porque o agro veio muito forte”, ponderou Haddad.

O presidente Lula da Silva preferiu enveredar por um caminho transverso, com loas à suposta capacidade que programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, têm de devolver o poder de consumo à população. O problema é que o consumo patinou no trimestre e, ademais, o PIB do primeiro período do ano é um fruto que está sendo colhido de uma árvore que não foi plantada pelo atual governo, e sim pelo anterior. Nem haveria tempo para isso.

Os elogios de Lula ao agronegócio vieram a público por intermédio de seu ministro da Agricultura, que anunciou ter recebido do chefe orientações para dar ao Plano Safra todo o apoio necessário. De Lula propriamente, no entanto, suas declarações mais recentes a respeito dos empresários do agro foram farpas.

No mês passado, para justificar sua presença em uma feira agrícola na Bahia, disse estar ali para “fazer inveja” a “alguns fascistas de São Paulo”, numa clara alusão à atitude desastrosa de representantes da Agrishow, de Ribeirão Preto, semanas antes, no “desconvite” ao ministro Fávaro, uma retaliação aos afagos de Lula ao MST.

É preciso governar mirando o crescimento do País, e isso deveria ser mandatório para um governo que se diz interessado no bem-estar dos mais pobres. Já há alguns anos, o segmento produtivo com mais força na alavanca impulsionadora do crescimento é a agropecuária e sua agroindústria, e isso se traduz em influência cada vez maior do agronegócio na tomada de decisões do Congresso. Logo, não é inteligente, como fazem os petistas, antagonizar esse setor nem, muito menos, sugerir que seus empresários são “fascistas”. É preciso respeitá-los. O PIB agradece.

Batalhas a vencer no meio ambiente

Correio Braziliense

"Passados cinco meses do discurso de posse, e na véspera do Dia Mundial do Meio Ambiente, a realidade insiste em desafiar as intenções do titular do Palácio do Planalto"

Ao assumir em 1º de janeiro o terceiro mandato como presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que estava ressuscitando o compromisso do governo brasileiro com a preservação do meio ambiente. Em discurso no Congresso Nacional, o chefe do Executivo delimitou metas ambiciosas. "Nossa meta é alcançar desmatamento zero na Amazônia e emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica", bradou. Prometeu, ainda, uma política pública efetiva em favor dos povos originários. "Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas". "Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais", justificou.

Passados cinco meses do discurso de posse, e na véspera do Dia Mundial do Meio Ambiente, a realidade insiste em desafiar as intenções do titular do Palácio do Planalto. Por uma conjunção de fatores, o compromisso do governo Lula em favor da sustentabilidade e da preservação dos biomas nacionais sofre profundos reveses. Os avanços ocorridos no início da atual gestão foram neutralizados por ações urdidas no Congresso Nacional, em particular na Câmara dos Deputados.

A aprovação da MP 1.154/23 esvaziou o poder de ação das ministras Marina Silva e Sônia Guajajara, responsáveis pelas pastas de meio ambiente e dos povos originários. Ao retirar desses ministérios competências como o controle ambiental das águas e a demarcação de terras indígenas, o Parlamento desferiu um duro golpe nos planos ambientalistas do governo Lula. Nas palavras de Guajajara, a Câmara dos Deputados, sob controle da poderosa bancada ruralista e de setores conservadores, cometeu um "genocídio legislado".

Os parlamentares foram além. Ao aprovarem o PL 490/07, marcaram posição sobre o marco temporal, em mais uma ofensiva contra os povos originários. Pelo entendimento dos deputados, a demarcação das terras indígenas só será considerada para as comunidades que ocupavam o solo na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Ainda que a proposição tenha de passar pelo Senado, os deputados impuseram uma dura derrota à política indigenista do governo Lula e deram um recado ao Supremo Tribunal Federal, que deve se debruçar sobre a questão esta semana.

Os ataques à bandeira da sustentabilidade e do respeito aos povos indígenas mostram claramente que o presidente da República e seus auxiliares precisarão ir além das boas intenções. Será preciso muita articulação para dobrar forças políticas poderosas e obter avanços na agenda ambiental. Neste 5 de junho, há pouco a se comemorar. Ainda não está vencida a batalha contra aqueles que defendem uma "boiada" na Amazônia ou que auferem lucros escandalosos com o garimpo ilegal, o tráfico de drogas, a violência contra indígenas e outros ilícitos a corroer o patrimônio natural brasileiro.

Nenhum comentário: