Renovação da desoneração é medida urgente
O Globo
Adiamento de projeto fundamental para criar
postos de trabalho já prejudica planejamento de empresas
A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE)
voltará a analisar hoje o Projeto de Lei (PL) que prorroga até o final de 2027
a desoneração da folha de pagamento de 17 setores caracterizados por empregar
grande volume de mão de obra. Estão em jogo perto de 9 milhões de empregos
gerados diretamente, sem contar aqueles distribuídos pelas cadeias produtivas.
Para a programação orçamentária e de investimento das empresas brasileiras, é
fundamental a aprovação célere do projeto que substitui a contribuição
previdenciária de 20% da folha salarial por outra que varia de 1% a 4,5% do
faturamento.
Um governo que quer estimular emprego não deveria mais perder tempo diante das evidências. A redução de encargos trabalhistas, em vigor há mais de dez anos, contribuiu para aumentar a arrecadação previdenciária, enquanto as empresas foram liberadas para investir mais em inovação e tecnologia, ganhando competitividade. É um caminho seguro para o crescimento sustentado de toda a economia.
Entre 2018 e 2022 a contratação de mão de
obra cresceu 15,5% nos segmentos desonerados, que incluem transportes,
construção civil, infraestrutura, comunicação, calçados, têxtil, centrais de
atendimento, telecomunicações máquinas e equipamentos etc. Nos 13 setores
reonerados para compensar a redução de impostos sobre o diesel, o aumento foi
de apenas 6,8%, segundo análise do grupo Desonera Brasil. Calcula-se que, se a
reoneração tivesse sido aplicada a todos os 17 ramos de atividade, 1,6 milhão
teriam perdido o emprego.
Causou estranheza que o pedido de vista do
Projeto de Lei na CAE do Senado tenha sido feito com aval do governo, apesar do
amplo apoio à proposta no Congresso, inclusive na bancada do PT. A demora na
tramitação preocupa empresas e lideranças sindicais. Uma mudança drástica na
tributação, com o retorno dos 20% de contribuição previdenciária sobre a folha
salarial, não afetaria apenas o mercado de trabalho. Teria efeitos perniciosos
também na inflação, segundo afirmou em entrevista ao GLOBO o sociólogo José
Pastore, da USP, um dos mais renomados especialistas em mercado de trabalho no
Brasil. Se houver pressão de custos forte nos 17 setores, a primeira reação das
empresas será repassá-la aos preços. Ao mesmo tempo, elas dispensarão
empregados para reduzir sua operação. Tudo isso, diz Pastore, acontecerá em
janeiro caso a desoneração não seja mantida.
Um acidente de percurso foi o contrabando
para o texto de uma emenda sem relação com o PL — um “jabuti”, no jargão de
Brasília — reduzindo de 20% para 8% a contribuição previdenciária dos
municípios. Essa emenda apenas prejudica o caixa da Previdência sem criar novos
empregos. Deveria ter sido tratada por PL à parte, mas não foi. Como o tempo
para que a desoneração continue a valer em 2024 encurtou, ela não pode servir
de pretexto para retardar ainda mais a aprovação do projeto. Ele precisa ser
sancionado logo, do contrário a economia sofrerá danos incontornáveis.
Monitoramento de celulares revela nova ameaça
contra democracia
O Globo
Uso de sistema de localização pela Abin sob
Bolsonaro expõe risco ao direito fundamental à privacidade
A espionagem ilegal durante o governo Jair
Bolsonaro é caso de extrema gravidade. Merecem punição exemplar os que a
operaram ou a comandaram. Na última sexta-feira, a Polícia
Federal prendeu, com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF),
dois servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), além de ter
cumprido 25 mandados de busca e apreensão e colhido o depoimento de 20
investigados e testemunhas. A investigação da PF, iniciada em razão de
reportagem publicada pelo GLOBO em março, revelou que agentes da Abin
monitoraram, sem a devida autorização judicial, os passos de políticos, juízes,
advogados, opositores de Bolsonaro e jornalistas.
Três funcionários da Abin foram afastados de
suas funções, entre eles o atual secretário de Planejamento e Gestão, Paulo
Maurício Fortunato Pinto, número três na hierarquia da instituição. Na época em
que o programa espião estava em atividade, a Abin era comandada por Alexandre
Ramagem, hoje deputado federal pelo PL do Rio, e Fortunato Pinto era seu
diretor de Operações. Ramagem afirmou esperar que a investigação não se deixe
levar por “falsas narrativas e especulações”.
Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte
(ex-Verint), o programa, chamado FirstMile, permite monitorar os passos de até
10 mil proprietários de celular. Por meio de antenas das empresas de telefonia,
localiza os aparelhos, traça mapas e até emite alertas quando o alvo se
aproxima de um endereço. O FirstMile foi comprado pelo governo brasileiro no
final do governo Michel Temer, mas os indícios de uso ilegal se concentram na
gestão posterior, como revelou O GLOBO em março. O sistema foi acionado mais de
30 mil vezes. Em 1.800, para monitorar desafetos do governo Bolsonaro. Parte
dos acessos foi apagada.
Serviços de inteligência de diferentes países
tiveram de se atualizar com a digitalização nas últimas décadas. Se usadas
dentro da lei, ferramentas de monitoramento podem ser úteis para identificar e
desbaratar ameaças. Usadas clandestinamente, porém, tornam-se instrumentos de
ataque ao direito fundamental à privacidade e também à democracia. Por isso
todos os sistemas de escuta precisam estar sujeitos a controles rigorosos,
tanto legais quanto técnicos. Em particular, aqueles fornecidos por empresas
estrangeiras, quando armazenam dados em computadores fora da jurisdição
brasileira.
A investigação da PF precisa prosseguir. Há
ainda muitas perguntas sem resposta. É urgente esclarecer o que aconteceu e,
comprovados os crimes, tomar as medidas necessárias para que não se repitam.
Votos dos conservadores definirão eleição
argentina
Valor Econômico
O turno final entre populistas de direita e
de esquerda não sinaliza um desfecho promissor
O peronista Sergio Massa, ministro da
Economia, recebeu doses de energia eleitoral inesperadas e venceu o primeiro
turno das eleições presidenciais argentinas com mais de 6 pontos de vantagem
(1,76 milhão de votos) sobre o segundo colocado, o “anarcocapitalista” Javier
Milei - obtiveram 36,68% e 29,98%, respectivamente. Massa, do União pela
Pátria, avançou 7,8 pontos percentuais em relação aos sufrágios obtidos nas
primárias obrigatórias, enquanto Milei teve menos votos do que os que o
colocaram como vencedor na ocasião (30%). Os eleitores que apoiaram Patricia
Bullrich, a centro-direita de Juntos pela Mudança, que obteve 23,8% dos votos
(6,2 milhões), são agora o fiel da balança do segundo turno, em 19 de novembro.
É em grande parte um eleitorado conservador e antiperonista. Apesar da reação
de Massa, é impossível prever o resultado.
Como ministro da Economia e candidato, Massa
tem a chave do cofre do Tesouro e utilizou largamente recursos públicos para
conquistar votos. Depois de concordar com uma desvalorização do peso como
pré-condição para que o FMI liberasse US$ 7,5 bilhões no fim de agosto, ele não
poupou medidas compensatórias contrárias ao espírito do acordo com o Fundo e
que aprofundaram um dos principais problemas que arrastaram novamente o país a
uma profunda crise econômica: o crônico déficit fiscal. Massa lançou, por
exemplo, o Compre sem IVA, em que aposentados, pensionistas e pessoas de baixa
renda recebem de volta 21% do que gastaram em supermercados. Atrasou a correção
das tarifas de transporte e energia, deu bônus de 20 mil pesos (20 dólares)
para desempregados e 94 mil pesos para trabalhadores informais, além de dar
mais bônus a aposentados e trabalhadores das empresas privadas. Além disso,
isentou do Imposto de Renda quem ganha até 1,7 milhão de pesos (US$ 1,7 mil, ou
R$ 8,5 mil), reduzindo o número de contribuintes a 90 mil pessoas, ou menos de
1% dos trabalhadores e aposentados.
Máquina e recursos do Estado foram usados sem
subterfúgios para favorecer sua candidatura. Estima-se que a expansão monetária
de origem fiscal no ano até setembro tenha sido de 6% do PIB, só suplantada
pelos 7,5% do PIB dos gastos do governo durante a pandemia.
O peronista colheu frutos também de uma
campanha agressiva na qual indicou como seria a Argentina com Javier Milei na
Presidência. Disse que todas as famílias teriam de pagar do próprio bolso a
vacinação de seus filhos, já que seu oponente pretendia cortar radicalmente
gastos com saúde, e espalhou nas estações de metrô cartazes com preços atuais
da tarifa e quanto custariam se Milei vencesse (56 e 1100 pesos,
respectivamente). Fez uma propaganda do medo, facilitada pelo discurso radical
e irresponsável de seu adversário.
Os dois fatores, recursos e propaganda
apelativa, funcionaram. A votação de Massa foi a menor dos peronistas desde a
redemocratização, mas ele teve mais de um milhão de votos novos na província de
Buenos Aires, dominada pelos peronistas. As propostas de Milei, apresentadas
por ele com histrionismo, pareceram assustadoras para uma parcela do
eleitorado.
Mas Massa terá grandes desafios à frente.
Mesmo que receba todos os votos do candidato peronista dissidente Juan
Schiaretti (6,8%) e da esquerda de Myriam Bregman (2,7%), terá 46,1% dos votos,
supondo que a participação do eleitorado seja idêntica. Os votos de Milei mais
os de Patricia Bullrich somam 53,8%. Não haverá transferência total de
sufrágios do Juntos pela Mudança para Milei, porém é possível que uma parcela
de apoiadores mais moderados de Patricia já tenha migrado no primeiro turno
para o lado de Massa. Entre as primárias e domingo, Patricia perdeu 700 mil
votos, que possivelmente eram os dos que apoiaram seu rival nas primárias,
Horacio Larreta, prefeito de Buenos Aires. A preferência da candidata ficou
clara em discurso na noite da derrota: “Não sou eu quem vai felicitar a quem
fez parte do pior governo da história”, disse. “Nunca seremos cúmplices das
máfias que destruíram o país”.
Os mercados reagiram mal ao resultado com
mais desvalorização do peso e forte queda nas ações. Em 14 meses como ministro,
Massa fez malabarismos para impedir o caos antes da eleição, mas teme-se que
continue com sua política de mais do mesmo caso vença - caminho certo para o
abismo. Não se conhece seu programa, embora ele seja um peronista da ala
conservadora, exímio articulador, aceite reformas e tenha bom diálogo com o
empresariado. Milei tem um programa radical, que abole o peso, mas não tem
equipe nem terá força no parlamento, isto é, não estaria à altura dos problemas
graves que terá de resolver.
Seja quem for o vencedor, dependerá do
Legislativo. Não há maioria na Câmara - de 257 membros, os peronistas têm 108
cadeiras, os conservadores, 93 e Milei, 37. Conservadores e “libertários”
unidos alcançariam 129 votos, 50% mais um, mas peronistas e independentes, não.
A configuração política do parlamento torna a qualquer um dos dois difícil
aprovar medidas de longo alcance para debelar a crise. O turno final entre
populistas de direita e de esquerda não sinaliza um desfecho promissor.
Respiro argentino
Folha de S. Paulo
Segundo turno oferece chance para pesar
projetos contra severa crise econômica
O segundo turno da eleição presidencial na
Argentina oferece um respiro ao país, até 19 de novembro, para reavaliação das
possíveis consequências de propostas dos dois candidatos remanescentes na
disputa, que ocorre em meio a grave crise
econômica de difícil solução.
Passaram para a nova fase o peronista e
ministro da Economia, Sergio Massa, 51, com 36,7% dos votos, e o ultraliberal
Javier Milei, 53, que teve frustrada a expectativa de vitória no primeiro
turno. Ele acabou em
segundo lugar, com 30%.
Além de contradizer a maioria das pesquisas,
a liderança de Massa no domingo (22) surpreendeu pelo fato de a economia
argentina ter se deteriorado rapidamente desde que ele se tornou ministro, em
agosto de 2022. De lá para cá, a inflação dobrou, atingindo 138,3% no acumulado
em 12 meses.
Massa opera como virtual mandatário argentino
desde abril, quando o presidente Alberto Fernández, com a popularidade em
ruínas, desistiu da reeleição.
Além de desfrutar de boa relação com
empresários, sindicatos e o Fundo Monetário Internacional, que vem
proporcionando US$ 44 bilhões em socorro à Argentina, o ministro é tido como
liberal entre os peronistas mais radicais.
Para atacar Milei na reta final, no entanto,
Massa o acusou de planejar o desmonte de uma miríade de subsídios criados pelos
peronistas.
Na raiz da atual crise, as subvenções para a
energia representaram 82% do déficit fiscal argentino no ano passado, levando o
Estado a arcar com 79% do custo da luz e 71% do gás de todos aqueles conectados
às redes de fornecimento.
Sem mexer nisso, um eventual governo Massa
perpetuaria o populismo e tenderia ao fracasso. O mais provável é que enfrente
a questão com gradualismo, o que traz riscos, tanto econômicos como em termos
de popularidade.
Sua arrancada no primeiro turno, contudo,
parece ter sido impulsionada pelo temor de muitos eleitores, sobretudo os mais
velhos e no establishment, em relação às propostas exóticas de Milei.
Entre outros extremismos, ele promete dolarizar uma
economia que não tem dólares e fechar um Banco Central que é
hoje a única fonte de financiamento estatal —imprimindo pesos e alimentando a
inflação, de fato, mas sem provocar ainda uma disrupção total.
Neste cenário, os 28,8% de votos da terceira
colocada, Patricia Bullrich, 67, rival dos peronistas, devem definir o pleito.
Resta saber se seus eleitores apoiarão o radicalismo de Milei ou se arriscarão
a eleger algo que pode ser mais do mesmo.
Para o Brasil, que tem na Argentina seu
principal destino de produtos industrializados e o terceiro maior parceiro
comercial, não é pouco o que está em jogo.
Espionagem inaceitável
Folha de S. Paulo
São gravíssimas as suspeitas da PF sobre
vigilância pela Abin sob Jair Bolsonaro
Governos autoritários, por definição,
sacrificam direitos dos cidadãos em nome de algum alegado bem maior, assim
definido por ninguém menos que a própria cúpula ditatorial. Liberdade,
intimidade e garantias processuais, por exemplo, tornam-se palavras mortas para
quem só entende a linguagem da força e do arbítrio.
Faz quase 40 anos que o Brasil se livrou
desse tipo de opressão estatal, mas, a crer nas investigações da Polícia
Federal, o governo de Jair Bolsonaro (PL) mandou às favas alguns princípios
constitucionais e decidiu monitorar, de forma secreta e ilegal, a
geolocalização de celulares de jornalistas, políticos e adversários do então
presidente.
De acordo com a PF, a espionagem partiu da
Abin e ocorreu de 2019 a 2021. A Agência Brasileira de Inteligência teria
utilizado um software adquirido por R$ 5,7 milhões, sem licitação, no último
ano do governo Michel Temer (MDB).
Chamado FirstMile, o instrumento permite
rastrear o GPS de qualquer pessoa pelos dados transferidos para torres de
telecomunicação, com o limite de 10 mil celulares a cada 12 meses. Também é
possível criar alertas em tempo real, para informar quando um dos alvos se
movia para outros locais.
Foi com base nessas suspeitas repulsivas que
a PF deflagrou, na sexta-feira (20), uma operação para cumprir 25
mandados de busca e apreensão, além de dois de prisão de servidores da Abin —que
terminaram demitidos no mesmo dia.
Outros membros da Abin, por sua vez,
reclamaram do espalhafato da PF; eles afirmam que a própria agência começou as
investigações na gestão atual e compartilhou as informações levantadas com os
órgãos competentes.
Sendo verdade, será mais um episódio lamentável
nessa trama maior, cuja gravidade só faz crescer a cada nova descoberta. Uma
delas é que o Exército adquiriu o mesmo software de espionagem —e se recusa a
responder perguntas da Folha sobre o uso da ferramenta.
Não se trata de negar às forças de segurança
e militares o direito de investir em inteligência. Ações preventivas e de
investigação, desde que revestidas de legalidade, são mais bem-vindas que a
repressão bruta após o estrago ter sido feito.
Dado o histórico do governo Bolsonaro, contudo, parece natural a suposição —ainda por comprovar— de que mecanismos desse tipo tenham sido destinados a outro fim: reforçar os planos abilolados de desfechar um golpe de Estado.
Aos 20, Bolsa Família precisa entregar mais
O Estado de S. Paulo
Transformado em política de Estado
permanente, programa social tem todas as condições de fazer mais com menos e se
tornar um verdadeiro instrumento de transformação social
O Bolsa Família completou 20 anos de
existência na semana passada, um feito raro e digno de nota na errante história
das políticas públicas brasileiras. Sua perenidade demonstra a força
(eleitoral, inclusive) de um robusto programa de transferência de renda, bem
como serve para que se constate o desafio que é superar a extrema pobreza em um
país tão desigual quanto o Brasil.
Em um mundo ideal, um programa social
bem-sucedido manteria um gasto relativamente estável ao longo dos anos ou mesmo
tenderia a registrar uma progressiva redução com o passar do tempo.
Infelizmente não é o caso. O Bolsa Família deve consumir R$ 175 bilhões neste
ano, ante os R$ 30 bilhões que o governo federal gastava em 2019. Nesses quatro
anos, o número de famílias atendidas subiu de 14 milhões para 21,5 milhões,
enquanto o valor médio do benefício subiu de cerca de R$ 190 para quase R$ 700.
É inegável que a pandemia de covid19 jogou
milhões de pessoas em uma situação de extrema vulnerabilidade. Mas havia uma
rede de proteção social a recorrer e, bem ou mal, um programa social
consolidado há muitos anos. Ele certamente demandava aprimoramentos e ajustes,
sobretudo para promover a emancipação e a inclusão produtiva, mas é inegável
que também tinha suas virtudes.
A atabalhoada e eleitoreira criação do
Auxílio Emergencial pelo governo Jair Bolsonaro começou a demolir as bases do
Cadastro Único, porta de entrada dos programas sociais cuja existência precedia
o próprio Bolsa Família. O Auxílio Brasil consolidou um processo de desconexão
entre o Bolsa Família e o Sistema Único de Assistência Social (Suas),
eliminando as necessárias contrapartidas que o benefício impunha às famílias,
como a frequência escolar e o cumprimento do calendário de vacinação das
crianças.
A antiga marca Bolsa Família voltou no início
do terceiro mandato de Lula da Silva sem resolver as falhas do programa
original e carregando os novos problemas criados pelos anos de bolsonarismo.
Apesar do esforço para identificar fraudes, o número de famílias unipessoais
continua relativamente alto, as filas para receber o benefício continuam a se
formar mês a mês e milhares de pessoas vivem em situação de rua nos centros das
principais cidades do País.
Em 2003, o programa tinha outra cara, um
custo mais baixo, um alcance muito mais reduzido e proporcionava um benefício
bem mais modesto. Mas nem o gigantismo que o Bolsa Família assumiu nos últimos
anos foi capaz de dar fim à extrema pobreza, o que impõe a necessidade de
avaliar seus resultados de maneira contínua, de sorte a atingir seus objetivos
de uma forma mais eficaz.
Não há dúvida de que é possível fazer mais
com menos ou fazer melhor com o que já se tem. Já há um diagnóstico sobre o que
deve ser feito. O piso de R$ 600 por família é uma distorção a ser corrigida.
Em seu lugar, o Banco Mundial sugere um benefício calculado por membro da
família e um valor adicional por criança ou jovem de até 18 anos.
Tal mudança reduziria o orçamento anual do
programa para cerca de R$ 130 bilhões e resgataria seu foco, priorizando o
pagamento do auxílio aos que mais precisam. A sobra de recursos poderia ser
direcionada para o reforço de outros programas de assistência social e
políticas direcionadas à primeira infância, à inclusão produtiva e aos idosos.
É necessário considerar a situação de cada
família de forma individual. Há famílias que jamais conseguirão deixar a rede
de assistência social, mas há também aquelas que precisam apenas de uma
oportunidade para conquistar a independência. Para isso, é fundamental
fortalecer o Cadastro Único e resgatar a articulação com os municípios, que
sempre foram o elo mais próximo às famílias.
Há numerosos exemplos de crianças que eram
atendidas pelo programa e que hoje são adultos autônomos, com bons empregos e
negócios próprios. É preciso ouvi-los para saber como replicar suas histórias.
Transformado em uma política de Estado permanente, o Bolsa Família tem todas as
condições de deixar de ser um recurso eleitoreiro para se tornar um instrumento
de transformação social.
O flerte da Argentina com o abismo
O Estado de S. Paulo
Primeiro turno da eleição presidencial acirra
polarização entre o peronismo de Massa e o voto de protesto em Milei sem abrir
margem para um futuro governo com maioria no Congresso
Surpreendeu o primeiro turno das eleições
presidenciais argentinas, anteontem. Do terceiro lugar nas primárias de agosto,
o ministro da Economia, Sérgio Massa, surgiu como forte candidato à Casa
Rosada, apesar de sua notória incapacidade de entregar uma inflação abaixo de
galopantes 140% no fim deste ano. Isso mostra a força do peronismo, mesmo
combalido. Massa disputará o segundo turno de 19 de novembro contra o candidato
“antissistema” Javier Milei, que as pesquisas davam como favorito inclusive
para vencer no primeiro turno, mas que aparentemente esbarrou no pragmatismo do
eleitor. Na eleição de anteontem, pelo visto, o eleitorado escolheu dois
candidatos que, ao que tudo indica, vão levar a Argentina ao abismo, mas em
ritmos diferentes: pode ser lentamente, com Massa, ou em tresloucada corrida,
com Milei.
As polarizadas eleições argentinas não
sublimaram o ceticismo em relação à brutal crise econômica e social e à sua
origem política. Ao contrário, deixaram como marca a reação de parte dos
eleitores contra a pobreza das escolhas impressas nas cédulas eleitorais. Não
surpreende o fato de o comparecimento de 74% dos argentinos aptos a votar ter
sido um dos mais baixos desde a redemocratização, em 1983. É inegável a
existência de uma fatia do eleitorado desgostosa com qualquer das cinco
candidaturas postuladas – entre as quais, as duas escolhidas para o segundo
turno.
Se Javier Milei pretendia realmente vencer no
primeiro turno com base no voto de protesto, já terá avaliado neste momento a
rejeição a sua proposta de eliminar, com uma simbólica motosserra, a classe
política tradicional. Mais ainda a suas ideias de dolarização da economia, de
implosão do Banco Central e de privatização da Saúde e da Educação – além de
sua defesa a uma ditadura militar que até hoje deixa feridas expostas na
sociedade argentina. Não é desprezível o fato de ir para o segundo turno com o
respaldo de 30% dos votos. Salta aos olhos, porém, seu recuo de quase dois
pontos porcentuais, ante os resultados das primárias, e o aumento de sete
pontos para Massa, com 36,7%.
O fiasco de Patricia Bullrich certamente será
creditado a erros cometidos por sua coalizão de centro-direita, Juntos pela
Mudança. A começar pela sua própria candidatura. Ex-ministra dos fracassados
governos de Mauricio Macri e de Fernando de La Rúa, Bullrich terá atraído com
maior profundidade a raiva do eleitorado à classe política, resgatada por Milei
dos protestos de 2001 sob o bordão “que tudo se exploda!”. Apesar de propor
maior equilíbrio entre ajuste fiscal e preservação da assistência aos mais
vulneráveis, a centro-direita saiu-se do primeiro turno encolhida, com 23,3%
dos votos, uma perda de seis pontos porcentuais desde agosto. Esse eleitorado
de terceira via, embora mais disposto a justificar do que a votar, será o alvo
de Massa e Milei nas próximas quatro semanas.
Todos os cálculos dos dois presidenciáveis
envolverão riscos. Milei já vinha moderando suas promessas mais extemporâneas
para a economia, como meio de tornar-se mais palatável. Os resultados de
domingo dão pouco alento a essa manobra e indicam radicalização. Massa vinha
despejando medidas de cunho populista, claramente inflacionárias, e uma forte
propaganda nas redes sociais contra seu principal oponente. Aparentemente, terá
dado certo. O preço será a taxa de inflação a ser conhecida seis dias antes das
eleições.
Seja qual for o escolhido em 19 de novembro,
está evidente não haver panaceia para a crise argentina. A grande maioria
pareceu entender isso ao negar seu voto a Milei no domingo. As eleições
legislativas, por sua vez, indicam dificuldade para Massa fazer valer seus
projetos sem uma incerta aliança com a centro-direita, depois de o peronismo
ter perdido 25 cadeiras na Câmara de Deputados. Milei conseguiu engrossar sua
bancada de 3, inclusive ele, para 37 parlamentares. O horizonte de seu eventual
governo é de reprovação de sua agenda – dentro da intocável normalidade
democrática. À crise em movimento na Argentina, soma-se agora o espectro da
ingovernabilidade.
Solidariedade é a regra
O Estado de S. Paulo
Doação presumida de órgãos é excelente, mas
deve ser acompanhada pela capacitação do SUS
O presidente Lula da Silva orientou
parlamentares da base aliada no Congresso a apoiar o Projeto de Lei (PL)
1.774/2023, que institui a doação presumida de órgãos e tecidos humanos no
País. O projeto inverte a atual dinâmica do processo. Hoje, quem deseja ser
doador deve manifestar expressamente essa vontade; em caso de silêncio,
familiares da pessoa falecida devem autorizar a retirada de seus órgãos ou
tecidos. Caso o PL 1.774 seja aprovado, todos os brasileiros que não se
manifestarem em contrário serão considerados doadores de órgãos.
O apoio do governo Lula ao avanço do PL 1.774
é uma excelente notícia para milhares de brasileiros, considerando os cerca de
50 mil pacientes que esperam por um transplante. De acordo com o texto,
proposto pelos deputados Maurício Carvalho (União-RO) e Marangoni (União-SP),
“presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do
corpo humano para transplantes ou outra finalidade terapêutica, salvo
manifestação de vontade em contrário”.
O projeto é cuidadoso. Primeiro, porque
assegura a liberdade dos cidadãos que não desejam ser doadores, seja qual for
sua razão. Além disso, o processo de manifestação de recusa é simples. Segundo
a proposta, “todo indivíduo que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou
partes do corpo para a doação (...) deverá registrar em documento público de
identidade o seu desejo de não ser doador de órgãos e tecidos”. Caso mude de
ideia, basta retirar a menção do documento oficial.
Outra prudência do PL 1.774 foi manter a
exigência de autorização expressa de parente maior de idade para doação de
órgãos e tecidos de menores de 16 anos ou de pessoa que, “por deficiência
mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”. Também não é
presumida a doação de órgãos dos cidadãos que não possuem documento público de
identidade.
Oxalá o PL 1.774 seja convertido em lei.
Muito mais pessoas ganharão qualidade de vida com a doação presumida. Outros
tantos, mais ainda: terão a chance de continuar vivendo, como é o caso dos que passam
pela angustiante espera por um transplante de órgãos mais urgente, como os que
envolvem coração, pulmão, pâncreas ou fígado.
Entretanto, a doação presumida, isoladamente,
até pode fazer do Brasil o país com o maior número de doadores do mundo. Mas de
que isso valerá se o Sistema Único de Saúde (SUS) não estiver preparado para o
aumento significativo do número de cirurgias? É fundamental que o PL 1.774
venha acompanhado de outras medidas aptas a ampliar a capacidade geral do SUS,
tanto para captar órgãos em volume inaudito como para realizar as cirurgias,
além do acompanhamento dos pacientes pós-transplante.
O Brasil já é referência mundial em transplantes de órgãos. A sociedade deve se orgulhar por contar com o maior sistema público de saúde para realizar esse tipo de cirurgia. Com os devidos cuidados e ações coordenadas, esse quadro só tende a melhorar, e cada vez mais pessoas esperarão menos tempo para ganhar um novo sopro de vida.
Transporte pirata é risco de morte
Correio Braziliense
Nos primeiro oito meses, mais de 36 mil
brasileiros foram vítimas de acidentes nas rodovias do país. O número de mortes
chegou a quase 4 mil., segundo dados da Confederação Nacional do Transporte
Nos primeiros oito meses deste ano, ocorreram
36.859, mais da metade de todos os acidentes registrados ao longo de 2022 nas
rodovias federais do país. O saldo é trágico: 36.819 vítimas, 50.617 feridos e
3.711 mortes, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte. Os fatores
são diversos, e vão desde o comportamento do condutor até as condições das
estradas, entre eles, destacam-se a falta de atenção, desobediência à
sinalização, velocidade acima do limite máximo, ingestão de bebidas alcoólicas
e defeito mecânico ou na via.
Embora os dados disponíveis não foquem
especificamente no transporte pirata, os especialistas alertam que a maioria
desses veículos não oferecem qualquer segurança aos passageiros. No último
domingo, um acidente com um ônibus, com 32 passageiros, que saiu do Maranhão
com destino à capital federal, foi abordado pela Polícia Rodoviária Federal
(PRF), na região administrativa de Ceilândia, no Distrito Federal.
Além de não ter autorização para fazer o
transporte interestadual de passageiros, não dispunha seguro e os pneus estavam
desgastados (carecas). O dono do veículo e seu filho foram presos em flagrante,
no posto da PRF na BR-070. De acordo com a legislação, o veículo que apresenta
essas e outras irregularidades e está lotado passageiros, deve ser escoltado ao
terminal rodoviário mais próximo,a fim de que os passageiros possam seguir para
o seu destino. No meio do trajeto, o motorista acelerou e o ônibus capotou.
Sete pessoas morreram e 17 ficaram feridas.
Embora essa seja a norma adotada pelas
autoridades, é preciso avaliar a sua eficácia. O que ocorreu no Distrito
Federal não foi um episódio inédito. Quantos outros acidentes não se deram
pelas mesmas causas? O acidente ocorreu no momento em que chovia muito. Água no
asfalto e alta velocidade é uma combinação, quase sempre, provocadora de
tragédias. Por que o veículo não ficou apreendido no posto da PRF e o
proprietário bancaria a despesa com o aluguel de um ônibus seguro para levar os
passageiros até a rodoviária mais próxima, uma vez que as agentes da PRF
identificaram que os pneus estavam desgastados, o que significava às pessoas de
dentro e de fora do ônibus?
Tão grave quanto o acidente, são as mortes e
a insegurança que o transporte pirata causa a passageiros e a outros condutores
no trânsito, é o fato de um ônibus irregular conseguir trafegar por quase 2 mil
quilômetros — distância entre o Maranhão e a capital federal — sem ter sido
barrado em outros postos da PRF. O episódio reforça a suspeita de que há um
vácuo na fiscalização rodoviária, que impõe uma revisão da estratégia da
corporação, a fim de garantir maior segurança no trânsito. Fora isso, as
campanhas educativas aos condutores se tornaram iniciativas raras do poder
público.
Da mesma forma que é importante aplicar com rigor a legislação, é essencial que as campanhas educativas sejam persistentes em todo o território nacional. Não basta responsabilizar os passageiros que não foram atentos ou, por dificuldade financeira, deixaram de exigir do motorista provas de que estariam seguros no trajeto, um exercício supletivo do dever das autoridades. É obrigação do Estado garantir a segurança e o bem-estar dos cidadãos.
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