segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Bernardo Mello Franco - O golfo da Braskem

O Globo

Após décadas de mineração predatória, parte da capital de Alagoas está afundando

Na primeira metade do século passado, o escritor Graciliano Ramos arriscou uma explicação geográfica para o atraso nacional. “Todo grande país tem um golfo. Olhe um mapa do Brasil: a costa é quase toda lisa, com uma baía pequena aqui, outra ali. Golfo mesmo não tem”, observou. Depois de expor a tese ao repórter Joel Silveira, o autor de “Vidas Secas” propôs uma solução: arrasar seu estado natal, criando o Golfo das Alagoas. “Aí, sim, o Brasil era capaz de ir em frente”, gracejou.

O velho Graça morreu há 70 anos, quando o subsolo de Maceió ainda permanecia intocado. Hoje sua piada parece uma profecia. Parte da capital alagoana está afundando, num desastre ambiental sem precedentes no país.

A terra começou a tremer em 2018, abrindo rachaduras em ruas e casas do bairro Pinheiro. O Serviço Geológico do Brasil concluiu que o fenômeno estava ligado à extração de sal-gema em minas subterrâneas da Braskem.

A exploração foi suspensa, mas o solo continuou a ceder, e cerca de 60 mil pessoas tiveram que ser removidas. No último domingo, uma das minas entrou em colapso sob a Lagoa Mundaú. O rompimento abriu uma cratera que ameaça crescer nos próximos meses e anos, engolindo tudo o que havia à sua volta.

A ameaça de desmoronamento transformou 20% do território de Maceió numa cidade fantasma. Esvaziou cinco bairros, condenou 18 escolas, interditou um hospital, um cemitério, um estádio de futebol e uma linha de VLT.

O governo federal declarou estado de emergência, mas o presidente Lula não quer visitar a capital antes de pacificar a relação entre os grupos do senador Renan Calheiros e do deputado Arthur Lira. Talvez seja mais fácil negociar a paz na Faixa de Gaza ou convencer a Venezuela a desistir do petróleo do Essequibo.

Na quarta-feira, o Senado instalou uma CPI proposta por Renan, aliado ao governador Paulo Dantas. Ele quer investigar o acordo da Braskem com o prefeito João Henrique Caldas, afilhado de Lira. A petroquímica acertou o repasse de R$ 1,7 bilhão ao município, que se comprometeu a “nada mais reclamar ou cobrar”. As famílias que viviam na região não foram ouvidas.

Especialistas afirmam que os poços foram escavados sobre uma falha geológica, ignorando normas e limites de segurança. Isso não teria ocorrido sem a omissão do poder público, que falhou no licenciamento e na fiscalização ambiental.

Quem visita o site da Braskem aprende que a empresa possui “compromisso com as pessoas e com o planeta”. Se não fosse o rompimento da mina, a propaganda verde teria sido levada à COP28, em Dubai.

Em comunicados, a petroquímica diz que busca reparar as vítimas “de maneira justa, no menor tempo possível”. No mundo real, centenas de famílias reclamam que foram surpreendidas ao assinar os acordos. Para serem indenizadas, tiveram que vender suas casas e memórias a preço de banana.

Em meio à crise, o governador informou que deseja transformar a área num parque inspirado no Ibirapuera. Se o plano for adiante, os autores do crime ambiental arriscam lucrar pela terceira vez. Lucraram com a mineração predatória, lucraram com a compra dos terrenos e voltariam a lucrar com sua desapropriação. A não ser que a cratera cumpra a profecia de Graciliano, formando o Golfo da Braskem.

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente!