Regra do mínimo corrói reforma da Previdência
O Globo
Como apontou colunista do GLOBO, impacto das
economias previstas para dez anos cairá pela metade
Pela nova regra proposta pelo governo e
aprovada pelo Congresso no ano passado, o salário mínimo passou a ser corrigido
pela inflação do ano anterior somada ao crescimento do PIB de dois anos antes.
Em palanques ou no púlpito do Parlamento, defensores da nova lei exaltaram a
necessidade de resgatar a dívida social histórica do Brasil. Um olhar mais
atento, porém, faz lembrar a máxima atribuída ao Conselheiro Acácio: o problema
das consequências é que elas vêm depois. O governo decidiu dar com uma mão, mas
acabará tirando com a outra.
Como aposentadorias e benefícios sociais estão atrelados ao salário mínimo, todo aumento repercutirá nas contas do governo. As despesas com o INSS saíram de 2,5% do PIB em 1988 para 8% hoje. Com a nova lei e o envelhecimento da população, não pararão de aumentar. Quanto mais dinheiro for destinado à Previdência e à Assistência Social, menos sobrará para saúde, educação, segurança pública, infraestrutura ou ciência e tecnologia — investimentos capazes de alavancar a economia e beneficiar a renda e o bem-estar dos brasileiros.
Em sua última
coluna no GLOBO, o economista Fabio Giambiagi demonstrou em números o tamanho
do problema que o governo criou para si mesmo. Somadas as
despesas do INSS e do programa assistencial Loas atreladas ao salário mínimo,
chega-se a R$ 500 bilhões neste ano. Tomando como premissa que o crescimento
médio da economia nos próximos anos será de 2%, o impacto anual na despesa
previdenciária e assistencial será equivalente a R$ 10 bilhões. Como o
crescimento se dá em progressão geométrica e os valores se acumulam ao longo do
tempo, ao final de dez anos os mesmos benefícios terão custado aos cofres
públicos R$ 550 bilhões a mais (em valores atuais).
Num país desigual como o Brasil, há quem diga
que é o preço a pagar pelo resgate das mazelas sociais. Mas a realidade é mais
complexa do que parece. Para brasileiros em situação econômica precária,
aumentos no salário mínimo têm pouco reflexo. No Nordeste, onde há forte
concentração de pobreza, quatro de dez trabalhadores ganham menos de um mínimo.
A nova lei diminui a desigualdade, mas nas camadas intermediárias da pirâmide
social. Para atender pobres e miseráveis, a política deveria ser outra, com mais
foco.
O Ministério do Planejamento conta com uma
secretaria para monitorar e avaliar políticas públicas e temas econômicos.
Tanto a criação de postos como a contratação de profissionais preparados para a
burocracia estatal têm sido enfatizados. Mas de nada adianta todo o esforço se
a nova secretaria não tiver força para realizar análises que contrariem dogmas
antigos do PT — ou se o governo fizer pouco-caso das avaliações.
Numa formulação feliz, Giambiagi usou na
coluna a expressão “elefante na sala”. O tamanho do elefante é tão grande que é
fácil imaginar um futuro governo forçado a mudar a lei de correção do mínimo.
Ou a promover outra reforma da Previdência para conter o aumento dos
benefícios, já que o impacto da regra em vigor corrói metade dos ganhos
previstos com a última reforma ao longo de dez anos (estimados por Giambiagi em
R$ 1,1 trilhão em valores atuais). A responsabilidade fiscal nunca foi uma
abstração teórica. A irresponsabilidade tem efeitos na vida de todos e, por
mais acaciano que seja repetir, um dia a conta chegará.
Investigação sobre monitoramento ilegal da
Abin deve ser aprofundada
O Globo
Acusações de que havia ‘estrutura paralela’
para atender a interesses políticos são extremamente graves
A Polícia Federal (PF) deflagrou nesta semana
uma operação
para investigar a suspeita de uso político da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) durante a gestão do delegado Alexandre
Ramagem (atual deputado federal pelo PL) no governo Jair
Bolsonaro. Ramagem, pré-candidato à Prefeitura do Rio, nega as
acusações e diz que há “uma salada de narrativas” para incriminá-lo. Aliados de
Bolsonaro têm tratado a operação como ato de perseguição à oposição. Mas as
acusações são extremamente graves, estão embasadas em indícios sólidos e
precisam ser investigadas até o fim.
De acordo com a PF, a Abin criou
uma “estrutura paralela” que funcionava como organização criminosa para
monitorar ilegalmente ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),
parlamentares, adversários políticos do governo e até a promotora que chefiava
as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de
seu motorista Anderson Gomes. No ano passado, O GLOBO
revelou que, nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Abin usara, sem
autorização da Justiça, um software capaz de monitorar a localização de até 10
mil celulares em todo o território nacional.
Agora, a PF afirma que o sistema foi
empregado para vigiar o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia,
a então deputada federal Joice Hasselmann (ela foi líder do governo na Câmara,
mas rompeu com Bolsonaro) e o então governador Camilo Santana (PT), atual
ministro da Educação (sobre quem a vigilância envolveu, segundo a PF, até
drones). Ainda de acordo com as investigações, agentes da Abin usaram
ferramentas e serviços oficiais para intervir em favor de Jair Renan Bolsonaro,
filho do ex-presidente, numa ação investigando tráfico de influência que acabou
arquivada. A PF encontrou também relatórios para defesa do senador Flávio
Bolsonaro no caso das “rachadinhas”. Por fim, as investigações identificaram
anotações da Abin tentando associar os ministros do Supremo Alexandre de Moraes
e Gilmar Mendes ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das maiores facções
criminosas do país.
Não é segredo que Bolsonaro usou instituições
de Estado para benefício próprio, da família e de amigos. Na célebre reunião
ministerial de 22 de abril de 2020, cobrou informações de órgãos oficiais, em
especial da PF, para não ser surpreendido pelos fatos. A crise levou à demissão
do então ministro da Justiça, Sergio Moro. Ele disse à época que Bolsonaro
queria ter na PF uma pessoa de confiança para quem pudesse ligar, colher dados
e relatórios. Com a saída de Moro, Bolsonaro nomeou Ramagem como chefe da PF,
mas a nomeação foi suspensa pelo Supremo, por ferir princípios constitucionais.
É fundamental levar as investigações adiante
para descobrir até que ponto houve uso do Estado em benefício de Bolsonaro,
seus aliados e familiares. Também é importante esclarecer se a atual gestão da
Abin atuou para dificultar apurações. Sempre há risco de captura de organismos
de Estado pelo governo, afastando-os do papel republicano. A sociedade precisa
ficar alerta.
Limites a Milei
Folha de S. Paulo
Pacote é desidratado no Legislativo;
argentino ameaça tensionar o campo político
Javier Milei conseguiu levar para o
plenário da Câmara dos Deputados o projeto da sua lei "omnibus",
um pacote de 664 artigos chamado de "Bases e Pontos de Partida para a
Liberdade dos Argentinos". Tratava-se de um grande plano de reforma da
economia —e também da sociedade e da política.
Tratava-se. Mudanças de impacto foram
amputadas do texto por comissões. Mesmo aspectos essenciais do programa de
corte de gastos corriam risco de rejeição.
O partido do presidente conta com
apenas 38 do total de 257 deputados. Somados os parlamentares de
blocos potencialmente aliados ou que, ao menos, aceitam negociar com o governo,
Milei poderia contar com metade dos votos.
Poderia. Um dia depois do relativo progresso
na Câmara, o presidente voltou a acirrar os ânimos. Disse em entrevista que não
está "disposto a negociar nada" —o que não for aprovado agora, o será
mais tarde, de alguma maneira.
Nas comissões, caíram artigos relativos às
reformas penais e eleitorais, à do Código Comercial e Civil, a prerrogativa de
governar por medidas de emergência por dois anos (reduzida a um ano) ou
privatizações maiores, como a da petroleira YPF e a do Banco de la Nación.
Nesta sexta (26), o governo anunciou que
tiraria do diploma artigos essenciais para o reequilíbrio orçamentário, como o
controle do reajuste de aposentadorias.
Em troca de apoio, governadores de
províncias, com influência parlamentar relevante, querem que o governo proponha
a restauração da cobrança do imposto de renda, derrubada em iniciativa
eleitoreira do governo anterior, apoiada também pelo então deputado Milei.
A política impõe por enquanto limites à
atuação do chefe de Estado. Porém o presidente reafirma seu programa de
conflito, seu personalismo e sua defesa de refundação incontestada da
Argentina. Opositores seriam apenas parte da "casta" de privilegiados,
cúmplices de um século de ruína do país.
Ao menos na retórica, Milei insiste no tudo
ou nada. Líderes do bloco adepto do diálogo reiteram apelos para que a Casa
Rosada negocie seu projeto. Pedem interlocução mais qualificada e atenciosa.
O mandatário dá sinais de que pretende usar
sua popularidade para pressionar os que não se filiam ao kirchnerismo ou à
esquerda.
A centro-direita indica que aceita aprovar o
essencial do programa de controle das contas públicas. Sem isso, o governo
corre risco de naufrágio rápido.
Na próxima semana, quando devem ser
discutidos artigos da "lei das liberdades", será possível verificar
se o presidente pretende preservar a viabilidade de seu mandato ou se vai
insistir em ilusões revolucionárias fadadas ao fracasso.
Vacina vem de berço
Folha de S. Paulo
Imunizar crianças contra Covid é seguro;
pesquisa do CFM pode gerar confusão
A atuação do governo Jair Bolsonaro (PL)
durante a pandemia foi desastrosa —em atos, com inépcia logística, e palavras,
com falácias sobre os efeitos colaterais das vacinas. A mudança de gestão
trouxe a sensatez baseada em evidências de volta à pasta da Saúde.
Contudo os efeitos do discurso negacionista,
notadamente sobre imunizantes, permeiam alguns setores da sociedade brasileira.
No primeiro dia deste ano, o Calendário
Nacional de Vacinação passou a incluir a inoculação contra a Covid-19 para
crianças de 6 meses a 5 anos de idade. Poucos dias depois, o Conselho Federal
de Medicina lançou uma pesquisa para
saber a opinião dos médicos sobre a vacina para essa faixa etária.
A ação reúne problemas incompatíveis com um
órgão ligado à atuação técnica na área médica.
A precariedade da metodologia do questionário
—com apenas quatro perguntas, sem espaço para comentários, direcionadas a
profissionais de especialidades diversas, sem foco em pediatria, infectologia e
imunização— só pode gerar resultado no mínimo enganoso ou, pior, que implique
confusão e mistificações sobre o tema.
A Organização Mundial de Saúde atesta a
eficácia e a segurança da vacinação de crianças, que já está presente em 60
países.
O guia de imunização da OMS indica grupos de
alta prioridade, como idosos, e faz recomendações de protocolo à população
geral. Crianças com comorbidades devem receber uma dose —ou duas, no caso de
vacina inativada.
Abrir espaço para o questionamento de
evidências estimula posições refratárias à imunização na população em geral e
entre médicos —não foram poucos os que, durante a crise sanitária, criticaram
vacinas e emitiram receitas contraindicadas, como de cloroquina.
O CFM alega que já fez consultas gerais entre
os profissionais sobre telemedicina e publicidade médica. No entanto esses
temas não estão diretamente relacionados a medidas que podem salvar vidas.
Desde o início da pandemia, foram 2.103 casos
da Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica, uma manifestação tardia da
Covid-19. Até novembro, o vírus havia matado 135 crianças menores de 5 anos.
Mas, em agosto de 2023, apenas 11%
dos brasileiros até essa idade estavam vacinados.
Em vez de ações dúbias com métodos precários, o CFM deveria contribuir para o aumento desse índice de imunização.
Não foi essa a agenda que venceu a eleição
O Estado de S. Paulo
Ao tentar impor agenda de intervenção
estatal, Lula flerta com desastre
Diante da péssima repercussão da crescente
pressão do governo petista para que a Vale aceitasse colocar o ex-ministro
Guido Mantega na presidência da empresa, o ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, correu a dar explicações, dizendo que o presidente Lula da
Silva jamais interviria numa empresa de capital aberto. Acredita quem quer.
O fato é que a pressão existiu,
desvalorizando as ações da Vale – que, sintomaticamente, voltaram a se
valorizar depois da informação de que o governo teria desistido de impor
Mantega. E esse caso em particular, sobretudo por tratar de ingerência numa empresa
que não pertence ao governo há 27 anos, é um dos principais sintomas de que
Lula da Silva está convencido de que conquistou seu terceiro mandato não para
“defender a democracia”, como apregoou na campanha, mas para impor a agenda
petista de desbragada intervenção estatal.
A ofensiva lulopetista sobre a Vale já seria
indecorosa mesmo se fosse uma iniciativa isolada, mas está longe de ser. Tudo
parece fazer parte da visão fantasiosa segundo a qual o Brasil elegeu Lula para
dissipar o pouco progresso que o País fez para regular o apetite estatal. O
governo, por exemplo, decidiu entrar na Justiça para retomar assentos que
perdeu no Conselho de Administração da Eletrobras após a privatização, retomar
investimentos na malfadada Refinaria Abreu e Lima, resgatar a combalida indústria
naval e lançar uma política industrial que só gerou apreensão – em suma,
retomar políticas fracassadas e marcadas pela mão pesada do Estado.
Está claro que a única preocupação no
horizonte de Lula da Silva são as eleições. De olho nos desdobramentos da
disputa municipal, o presidente corre para recriar bandeiras ideológicas que
impulsionem os candidatos a prefeito do PT e de partidos aliados. Vê nisso um
caminho para ampliar a rede de apoios regionais e fortalecer sua própria
candidatura à reeleição em 2026, bem como ampliar a base aliada no Congresso.
Lula da Silva, no entanto, parece ter
dificuldade de entender o contexto que o levou à conquista do terceiro mandato.
Parece ter esquecido que venceu a disputa eleitoral mais acirrada da história
por pouco mais de 2 milhões de votos – uma diferença que não chegou a alcançar
2% dos votos válidos.
Se isso não diminui sua vitória, deveria
fazê-lo refletir sobre as razões pelas quais não conseguiu impor uma derrota
acachapante a um presidente que atacou a democracia e as instituições ao longo
de todo o seu mandato.
Muitos dos votos que Lula obteve no segundo
turno não representaram apoio incondicional ao petista e às suas políticas, mas
uma rejeição inequívoca à figura intragável de Jair Bolsonaro, que, durante a
pandemia de covid-19, boicotou medidas preventivas, postergou a compra de
vacinas e debochou da morte de milhares de brasileiros.
Ao convidar o ex-adversário Geraldo Alckmin
para compor sua chapa como vice-presidente e obter o endosso de Simone Tebet
entre o primeiro e o segundo turnos, o petista pôde assumir o discurso de uma
“frente ampla” sem o qual certamente não teria sido eleito.
O tom conciliador que Lula adotou assim que
foi eleito começa a dar lugar a um revisionismo histórico que nega os equívocos
que permearam a malfadada “Nova Matriz Econômica”. A nova política industrial
recentemente apresentada, por exemplo, é um compilado das ideias atrasadas que
tantos prejuízos causaram ao longo da trevosa era petista, em especial durante
a terrível passagem de Dilma Rousseff pela Presidência. Lá estão as exigências
de “conteúdo local” e o velho protecionismo que incentivam o subdesenvolvimento.
A mera cogitação do nome de Guido Mantega
para fincar a bandeira do governo na direção da Vale mostra que Lula quer mesmo
reescrever a história da passagem do PT pelo poder. Mantega, como poucos,
representa o desastre petista. Ao tentar reabilitá-lo, Lula quer na verdade que
o País se convença de que esse desastre nunca aconteceu. Vai ser difícil.
Um arremedo de SNI
O Estado de S. Paulo
Suspeitas de que Bolsonaro converteu Abin em
órgão de bisbilhotagem a seu serviço são estarrecedoras, mas não surpreendem,
considerando os devaneios autoritários do ex-presidente
É gravíssima a suspeita de que, durante o
governo de Jair Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria
sido convertida num arremedo de SNI, o serviço de espionagem que serviu à
ditadura militar. A ser verdadeira apenas uma fração do que veio a público até
o momento, é caso para punição exemplar de todos os que tentaram instalar no
Brasil um instrumento de bisbilhotagem típico de Estado autoritário.
Anteontem, a Polícia Federal (PF) deflagrou
uma operação para cumprir mandados de busca e apreensão em endereços do
deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que chefiou a Abin entre julho de
2019 e março de 2022. Durante a gestão de Ramagem, segundo a PF, agentes do
órgão teriam usado um sistema de rastreamento de celulares para monitorar os
passos de políticos, magistrados e jornalistas tidos como “inimigos” por
Bolsonaro – sem justificativa ou autorização judicial, evidentemente.
Não bastasse essa espionagem ilegal, Ramagem
também é suspeito de fazer da Abin uma espécie de puxadinho das equipes de
defesa de dois dos filhos de Bolsonaro enrolados com investigações policiais: o
senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), suspeito de liderar um esquema de
“rachadinhas” na Assembleia do Rio, e Jair Renan Bolsonaro, suspeito de tráfico
de influência, estelionato e lavagem de dinheiro.
A existência de uma “Abin paralela” nunca foi
segredo desde que o próprio Bolsonaro, na infame reunião ministerial de 22 de
abril de 2020, jactou-se publicamente de contar com os préstimos de uma rede de
informação “particular” – que “funciona”, como enfatizou. O que o jornal O
Globo revelou em março de 2023 e a PF investigou até agora é o possível uso de
recursos oficiais e legítimos à disposição do órgão de Estado para atender aos
interesses particulares, e possivelmente ilegais, do então presidente da República.
Integrante do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, a Abin tem entre suas atribuições
“avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional”. Causa um
frio na espinha constatar que as investigações da PF apontam para o fato de que
a própria Abin pode ter se tornado uma dessas ameaças à Constituição,
possivelmente violando direitos e garantias fundamentais de cidadãos
brasileiros sem outras justificativas a não ser o furor de Bolsonaro por
bisbilhotar tudo e todos que pudessem representar ameaça à consecução de seus
objetivos.
A suspeita de espionagem estatal durante o
governo Bolsonaro – que, segundo consta, teria alcançado o então presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal,
entre outros – tem de ser investigada a fundo e, uma vez apurados os indícios
de autoria e materialidade, levada ao Ministério Público para a devida
responsabilização de seus autores. Democracias dignas do nome não toleram que
haja uma parte da máquina do Estado agindo fora dos controles institucionais
para satisfazer interesses do governante.
A ser verdade o que se levantou até agora, a
subversão da Abin – além de violar a privacidade individual, direito
resguardado pela Constituição – expôs o País e a sociedade a riscos não
triviais. A vigilância ilegal dos cidadãos opera sob a lógica do medo e da
desconfiança generalizada, o que, ao fim e ao cabo, constrange a dissidência
política e a liberdade de expressão, vitais para a democracia. Tem ainda o
condão de instaurar um estado de medo permanente, impedindo a livre
participação dos cidadãos na vida política do País.
Não menos importante, a transformação da Abin num aparato de inteligência a serviço da família Bolsonaro, se comprovada, também revela uma tentativa de construir um Estado com poder desmedido sobre os cidadãos, poder que, sem controle, pode ser facilmente manipulado. Não era necessária nenhuma investigação da Polícia Federal para concluir que este era o sonho de Bolsonaro e sua grei. Felizmente, ao que parece, o sonho frustrou-se.
‘El Loco’ descobre a democracia
O Estado de S. Paulo
Ao negociar projeto de lei com o Congresso,
Milei dobra-se às instituições democráticas
O anarcocapitalista Javier Milei, presidente
da Argentina, parece ter entendido que sua caneta não é suficiente para impor,
ao arrepio do rito democrático, seu programa de governo. Como manda a
Constituição, curvou-se à negociação com o Congresso de seu projeto de lei
voltado para a superação da crise econômica abismal. Desidratou o texto e, na
madrugada do último dia 24, obteve o apoio de 55 deputados de oposição. Dobrar
Milei certamente foi um grande feito do Legislativo. Salvaram-se algumas
medidas caras ao projeto da Casa Rosada de liberalizar e recuperar a economia
do país, resguardando-se a democracia dos arroubos autoritários do novo
governante.
A resistência do Congresso em aceitar
bovinamente um projeto de lei que concedia amplos direitos ao Poder Executivo –
inclusive o de legislar – teve efeito pedagógico. Antes avesso a qualquer
negociação, “El Loco”, como Milei ainda hoje gosta de ser chamado, recuou e
enviou nova versão que altera 100 dos 664 artigos do texto no último dia 19.
Ruidosas promessas de campanha, como a privatização da petroleira YPF, saíram
do horizonte da Casa Rosada. Sua ambição de governar com poderes ampliados até
o final do mandato, em nome da situação de emergência nacional, foi encurtada
para dois anos, no máximo. A de impor reformas nos sistemas partidário e
eleitoral caiu por terra.
Novos recuos tendem a ser exigidos de Milei
até a apreciação do projeto pela Câmara dos Deputados. O que foi acertado até o
momento, porém, vai requerer da equipe do Ministério de Economia políticas
alternativas para o país reduzir o déficit nas contas públicas neste ano. Por
pressão dos parlamentares de oposição, o governo não poderá mais valer-se de
aumento do imposto sobre exportações nem alterar o reajuste das aposentadorias,
as principais medidas fiscais do projeto de lei original.
Os oposicionistas que apoiaram o projeto
depois da desidratação reconheceram que a iniciativa tem potencial de tirar a
Argentina do atoleiro econômico e social em que se afundou nas últimas décadas.
Mesmo tendo em vista que tudo vai piorar antes de começar a melhorar, tais
segmentos políticos conhecem a alternativa dada pela rejeição total ao texto:
um abismo mais profundo do que o percebido até agora. Suas ressalvas tornaram o
plano de Milei mais palatável ao Legislativo.
O novato presidente argentino provavelmente constatou que não lhe convém mais o figurino de “El Loco” se quiser levar adiante o desafio de estabilizar a economia do país. Sua iniciativa de baixar medidas econômicas por decreto acabou por travar parte de sua agenda na Justiça. Querer outorgar-se amplos poderes de legislar por quatro anos e ditar reformas políticas e econômicas por projeto de lei, mas sem negociar com o Congresso, provou-se inaceitável. As instituições responderam a Milei que suas atribuições têm limites constitucionais e que a democracia é um valor a ser respeitado mesmo diante de uma emergência nacional. Espera-se que tenha aprendido.
Arapongagem é inaceitável
Correio Braziliense
Segundo as investigações, o aparato ilegal de
monitoramento político teria produzido cerca de 30 mil operações de vigilância
eletrônica, contra aproximadamente 1.500 pessoais, entre as quais ministros do
Supremo, parlamentares, jornalistas e dirigentes políticos
A transformação da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) em instrumento político de espionagem contra os poderes
Legislativo e Judiciário, para supostamente favorecer interesses políticos do
então presidente Jair Bolsonaro, seria um fato muito grave. As investigações da
Polícia Federal apontam a existência de uma estrutura paralela no órgão, com
utilização dos mais sofisticados equipamentos de monitoramento eletrônico e
policiais federais, que estariam sob o comando do então diretor-geral da Abin,
delegado Alexandre Ramagem, hoje deputado federal e pré-candidato a prefeito do
Rio de Janeiro.
Segundo as investigações, o aparato ilegal de
monitoramento político teria produzido cerca de 30 mil operações de vigilância
eletrônica, contra aproximadamente 1.500 pessoais, entre as quais ministros do
Supremo, parlamentares, jornalistas e dirigentes políticos. As apurações da PF
sugerem que a motivação era beneficiar a família Bolsonaro e os aliados do
ex-presidente, além de criar falsas narrativas que seriam usadas contra
políticos e integrantes da mais alta Corte do país.
Um dos objetivos mais escabrosos era
caracterizar infundadas ligações dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes com a facção Primeiro Comando da
Capital (PCC), de São Paulo, comandada pelo traficante Marcos Willian Herbes
Camacho, o Marcola, preso em regime de Isolamento na Penitenciária Federal de
Brasília, na Papuda.
Na quinta-feira, por ordem do ministro
Alexandre de Moraes, que comanda as investigações sobre a tentativa de golpe de
8 de janeiro, foi realizada uma operação de busca e apreensão no gabinete de
Ramagem na Câmara e no seu apartamento funcional, em Brasília, além de sua
residência no Rio de Janeiro. No gabinete, os agentes encontraram, inclusive,
um relatório que tinha informações levantadas pela Abin sobre a atual
investigação da PF.
Por se tratar de um deputado federal, a
operação gerou protestos do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, os quais não
encontraram eco junto aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do
Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ambos se opuseram firmemente à tentativa de
golpe de 8 de janeiro, que consideram um divisor de águas em relação à
solidariedade do Congresso com seus integrantes.
"Os policiais federais destacados, sob a
direção de Alexandre Ramagem, utilizaram das ferramentas e serviços da Abin
para serviços e contrainteligência ilícitos e para interferir em diversas
investigações da Polícia Federal", afirmou o ministro Moraes. Outros sete
integrantes da Polícia Federal estão sendo investigados. Na execução de 21
mandados de busca e apreensão, foram apreendidos documentos, celulares,
computadores e pen drives que podem gerar novas ações judiciais e abrir outras
linhas de investigação.
A investigação também apura a utilização do
sistema de inteligência First Mile pela Abin no monitoramento de dispositivos
móveis, sem a necessidade de interferência e/ou ciência das operadoras de
telefonia e sem a necessária autorização judicial. O referido sistema foi
fornecido pela empresa Cognyte Brasil S.A., que registra a localização em tempo
real de qualquer pessoa monitorada.
Em se tratando de agentes encarregados da segurança nacional haveria relações com condutas ilegais que atentam contra a soberania nacional, as instituições democráticas, o processo eleitoral e os serviços essenciais, que podem vir a ser caracterizadas no Código Penal como atentado à soberania (art. 359-I), abolição violenta do Estado democrático de direito (359-L), golpe de Estado (art. 359-M), interrupção do processo eleitoral (art. 359-N) e violência política (art. 359-P).
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