O Estado de S. Paulo
A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe
Eis a questão. O anterior presidente da
República praticou ou não o crime do art. 359-M do Código Penal: “tentar depor,
por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”?
Cada um pode ter uma resposta para essa
pergunta. No entanto, no Estado Democrático de Direito, com vigência do
princípio da presunção da inocência, não basta uma opinião, por mais
fundamentada que seja, para condenar uma pessoa. É necessário que se tenha uma
ação penal, dentro do devido processo legal e com amplo direito de defesa, para
que alguém seja declarado culpado por um crime.
Até o momento, o que existe é um inquérito sigiloso, no qual tem havido divulgação seletiva de alguns elementos probatórios. Ou seja, a sociedade ainda não conhece integralmente o que a Justiça tem em mãos. Sabe-se apenas o que o juiz do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes, quis revelar.
Essa divulgação seletiva é muito útil para
gerar determinadas impressões na sociedade, mas é muito prejudicial para um
processo judicial adequado, apto a pacificar os conflitos sociais. É como se a
própria Justiça estimulasse juízos parciais pela população, com condenações
imediatistas, que eliminam, na prática, a presunção de inocência. Nas palavras
de Vittorio Manes, professor da Università di Bologna, o acusado torna-se um
“culpado aguardando julgamento”.
Esse modo de proceder tem relação direta com
um problema sério e, infelizmente, muito frequente na Justiça brasileira: a
análise superficial dos fatos. É uma situação paradoxal, pois o processo
judicial, com suas etapas e recursos, está orientado justamente a assegurar uma
verificação cuidadosa dos fatos. Para condenar alguém, não basta ter uma
opinião sobre o que teria ocorrido. É preciso um procedimento
epistemologicamente seguro para aplicar corretamente o Direito.
A Operação Lava Jato deve servir de
aprendizado. O abundante material levantado produziu, em parcela relevante da
sociedade, profunda convicção sobre a culpa de algumas pessoas. Ao mesmo tempo,
além da questão da legalidade, os métodos utilizados – epistemologicamente
frágeis – produziram, em parcela relevante da sociedade, profunda dúvida sobre
a acurácia de suas descobertas. Por mais controvérsias que haja em torno da
Lava Jato, tem-se um consenso: ali, a Justiça fracassou.
No caso da Operação Tempus Veritatis, há uma
dificuldade adicional. O crime do art. 359-M é novo. O que significa “tentar
depor” o governo legitimamente constituído? O que constitui uma “grave ameaça”?
Divulgado pelo Supremo Tribunal Federal, o
vídeo de uma reunião de julho de 2022, com a presença do então presidente da
República e ministros de Estado, gerou forte debate. O que ali se presencia é a
execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos
preparatórios desse crime?
Responder juridicamente a essa questão exige
uma adequada compreensão do art. 359-M, bem como uma adequada verificação dos
fatos. A Lei n.º 14.197/2021 criminalizou a tentativa de golpe de Estado, e não
apenas o golpe de Estado fracassado. A tipificação do “tentar depor” foi
precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha
meios de defender a democracia antes do golpe. Afirmar que todas as ações
prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros
atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de
representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo
complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais
um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso
compreender o todo.
O legislador foi prudente. Para não instituir
um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que,
para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência
ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus
ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse
respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que
alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.
O Código Penal prevê não apenas os crimes e
as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem
ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras
coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8
de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial
acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o
erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20
do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se
refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais
tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.
Não é preciso inventar nada. O Congresso
Nacional fez a sua parte. Agora, cabe ao Judiciário assegurar o sentido
sistêmico e funcional do art. 359-M. Sem manobras e sem ingenuidades.
*Advogado
Um comentário:
Texto magnífico, realmente excepcional pela clareza e qualidade!! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho!
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