Folha de S. Paulo
Cada formador de opinião fala quase que
unicamente para quem está do mesmo lado
Por mais que os progressistas desejem e
sonhem com isso, os quase 50% dos votos
válidos para Bolsonaro não
desaparecerão tão cedo, e boa parte deles será transferida para algum candidato
que tenha o apoio de Bolsonaro. Resta saber se será tão extremista quanto ele
ou se será mais moderado.
Independente de quem seja, a própria discussão sobre se é possível alguém próximo de Bolsonaro ser menos extremista do que ele já salientou um fato inescapável: a polarização continuará dando as cartas no debate público. Ou seja, a visão do outro lado como irremediavelmente maléfico —ou, na hipótese mais caridosa, burro— veio para ficar. Qualquer reação que não seja o combate irrestrito a tudo que o outro polo representa é tida por suspeita.
O efeito dessa polarização é
que há cada vez menos debate real. Cada formador de opinião —conceito que está
cada vez mais fluido, dado que hoje todo mundo pode se fazer ouvir nas redes—
fala quase que unicamente para quem está do mesmo lado. Seu papel é menos o de
levantar discussões e mais o de jogar para a torcida. Entregar ao torcedor
motivos engenhosos pelos quais o seu lado está sempre correto e —ainda mais
importante— o outro lado é perverso. Na medida em que é bem-sucedido, consegue
os aplausos e o engajamento.
Nas poucas ocasiões em que o conteúdo gerado
para um dos lados da polarização chega ao lado contrário, é apenas para servir
de espantalho. Um dos recursos favoritos do brasileiro para evitar discutir
qualquer assunto importante é a confusão entre rotulagem e refutação. A
insinuação de intenções perversas é o bastante para desqualificar um argumento
sem ter que respondê-lo.
Ao classificar um adversário como pertencendo
a uma categoria indesejável, não é mais preciso refutar diretamente nada do que
ele diz. Na esquerda,
os grupos malditos são burgueses, neoliberais, reacionários, fascistas. Na
direita, elitistas, globalistas, woke, comunistas. Em ambos os casos, o que
move o adversário são interesses inconfessáveis e não qualquer fato da
realidade. Basta colar um desses que o público-alvo saberá reagir de acordo.
Por trás desse tipo de argumento está a
pressuposição de que a realidade já é conhecida, basta pertencer ao lado bom
para aceitá-la. E quem pertence ao lado mau seguirá empedernido no erro que lhe
é conveniente. Com essa lógica, as convicções ficam cada vez mais extremas; as
posições políticas cada vez menos negociáveis. E a perspectiva da vitória do
adversário cada vez mais apocalíptica. No limite, as palavras perdem qualquer
capacidade de persuadir, restando apenas o recurso final às armas.
E, no entanto, não conseguimos abrir mão das
palavras. É necessário não apenas vencer, mas ter razão e mostrar que se tem
razão. Existe uma realidade que pode ser em alguma medida conhecida pela razão
humana? Se não existe, então as palavras não passam de um artifício enganador e
não há por que perder tempo lendo, falando e escrevendo. Se existe, então a
identidade ou mesmo os supostos interesses do interlocutor jamais serão
suficientes para se avaliar um argumento, e pode bem calhar de aquela pessoa que
consideramos a mais pérfida estar certa em algum ponto e, nós, errados.
No passado, o ajuste e a moderação do debate público
dependiam de editores capazes de avaliar o que era ou não digno de chegar às
massas. Hoje, cada um é seu próprio editor e nada mudará isso. E a única coisa
que pode evitar a completa desagregação social é a disposição de cada um de não
ceder aos encantos da certeza moral.
2 comentários:
Muito bom!
Verdade.
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