Conceito de ‘trabalhador’ ficou no passado
O Globo
Fracasso do Primeiro de Maio é sinal de que
realidade econômica não é a que Lula e os sindicatos imaginam
O esvaziamento do ato das centrais sindicais
em comemoração ao 1º de Maio em São Paulo irritou o presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva. Pouco
mais de 1.600 pessoas compareceram ao evento na quarta-feira, o
que fez Lula passar um pito em público nos organizadores. Eles não têm, porém,
como reverter as transformações da sociedade brasileira, que tornaram coisa do
passado o conceito de “trabalhador” tão caro a Lula e aos sindicatos — e que
estão na raiz do esvaziamento.
Um em cada quatro brasileiros hoje trabalha como autônomo ou por “conta própria”, na classificação do IBGE. Não tem patrão, muito menos vínculo com qualquer entidade sindical. Em dez anos, essa parcela da população cresceu de 20,8 milhões para 25,6 milhões. É certo que parte da tendência resulta da falta de opção de emprego, que leva muitos a fazer bicos para sobreviver. Mas é inegável o avanço de ocupações autônomas, como motorista ou entregadores de aplicativo, e da cultura do empreendedorismo. Isso fica evidente na proporção de trabalhadores por conta própria com CNPJ, que saiu de 24% em 2013 para 34% em 2023. São brasileiros que identificaram demandas de consumidores, viram oportunidades e abriram negócios.
É uma tendência global. Nas palavras de Paul
Donovan, economista do banco UBS, o 1º de Maio deveria celebrar o lucro, não o
salário. As mudanças estruturais provocadas pela tecnologia pavimentaram uma
nova fase para o empreendedorismo. Isso ficou claro durante a pandemia, quando
muitos enxergaram na economia digital uma oportunidade.
Em 2021, houve crescimento significativo na
abertura de novos negócios tanto nos Estados Unidos como na União Europeia,
especialmente empresas com até nove funcionários. Plataformas digitais de
diversas naturezas criaram espaço a toda sorte de iniciativa. Não apenas
gigantes como Uber ou Airbnb. Havia, segundo estudo da Organização
Internacional do Trabalho, 142 dessas plataformas no mundo em 2010. Dez anos
depois eram 777. Uma das citadas é uma startup britânica que emprega menos de
cem pessoas, mas coordena a prestação de serviço de mais de 2 milhões de
trabalhadores.
Para Donovan, o avanço do empreendedorismo
exigirá mudança na análise de economistas. “A renda dos produtores de conteúdo
do TikTok aparece nos dados de lucros”, diz ele. “Mas não se trata de
corporações pagando a acionistas institucionais. São indivíduos que usam o
dinheiro para pôr comida na mesa. O efeito econômico do aumento do lucro nesses
casos equivale a um aumento de salário. A distinção entre a poupança das
famílias e a corporativa fica menos clara.”
No Brasil, os novos “plataformizados” estão
concentrados entre quem tem ensino médio completo ou superior incompleto (61%).
Vendem uma variedade de produtos e serviços, alugam quartos e apartamentos ou
trabalham em empresas de entregas. Em vez de participar de um evento com
políticos a cada 1º de Maio, estão mais interessados em saber como o presidente
e sua equipe pensam em destravar a burocracia, melhorar o ambiente de negócios
ou fazer a economia crescer mais, de forma sustentada. Lula demonstra desconhecer
essa realidade, e isso poderá lhe custar o apoio que esse novo trabalhador dará
a quem facilite seus negócios.
Greve oportunista corrói prestígio das
universidades federais
O Globo
Movimento em instituições já esvaziadas
contribui para afastar ainda mais alunos e professores
No dia 15 de abril, professores de
universidades federais, institutos e centros federais de educação tecnológica
decidiram entrar em greve. No rol de reivindicações, estão reajuste salarial,
reestruturação de carreira, recomposição orçamentária e pautas políticas, como
a revogação da reforma do ensino médio.
Passadas duas semanas sem que governo e
sindicatos tenham chegado a um acordo, parte das instituições permanece
funcionando precariamente. A greve não tem adesão plena. Em alguns lugares,
tanto professores quanto técnicos administrativos pararam. Noutros, somente
técnicos ou somente professores. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), uma das maiores do país, docentes continuam dando aulas, enquanto
servidores estão em greve. A situação se repete noutros lugares. Paralisações
atingem pelo menos 52 universidades, 79 institutos federais e 14 instalações do
Colégio Pedro II. A cada dia surgem novas adesões à greve.
Não é apenas a recomposição salarial que está
em jogo na queda de braço entre docentes e governo. Há forte componente
político. A greve dos professores tem sido incensada pelo Sindicato Nacional
dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), um enclave do PSOL
que disputa hegemonia na esquerda. Não é por acaso que a pauta de
reivindicações inclui bandeiras políticas como a rejeição à reforma do ensino
médio.
É incerto dizer quando as universidades
voltarão à rotina. Professores e técnicos rejeitaram proposta apresentada pelo
governo, que previa reajuste apenas em 2025. Está tudo praticamente na estaca
zero. Certo é que os maiores prejudicados são os alunos, com quem os grevistas
não estão nem um pouco preocupados. Não bastassem as perdas significativas
durante a pandemia com as escolas fechadas, agora sofrem o baque da greve. No
ensino médio, estudantes temem ficar em desvantagem no Enem. Nas universidades,
a preocupação é atrasar a formatura e a entrada no mercado de trabalho.
As perdas não se restringem ao aprendizado. A
greve atinge as universidades depois de um período de esvaziamento
orçamentário. Algumas mal têm recursos para pagar as contas básicas. Como a
greve afeta também setores administrativos, serviços oferecidos aos estudantes
foram interrompidos. Há casos de universitários sem acesso ao bandejão que não
têm dinheiro para comer fora do campus.
A greve oportunista, organizada por
sindicatos mais preocupados em fazer política que em melhorar a qualidade do
ensino, acaba se voltando contra os alunos, as universidades e os próprios
professores, uma vez que contribui para esvaziar e desprestigiar as
instituições ainda mais. Quem vai querer estudar em universidades que
sistematicamente passam parte do ano paradas por greves sem razão de ser?
Alívio com o Fed não autoriza leniência aqui
Folha de S. Paulo
Declaração do banco central dos EUA dá mais
otimismo aos mercados, mas imprudência com Orçamento mantém Brasil em risco
Mesmo representando hoje cerca de 20%
do PIB mundial,
os Estados
Unidos continuam a ter influencia determinante no âmbito
financeiro. Juros altos
no país valorizam o dólar e
fazem escassear fluxos de capital para outras economias, com consequências
globais.
É o que tem ocorrido desde o início do ano,
diante do acúmulo de evidências de que a economia americana
permanece firme, com boa geração de emprego e renda —e, de outro lado, de
que a inflação se
mostra mais renitente em torno de 3% ao ano, acima da meta de 2%
perseguida pelo Federal Reserve.
No primeiro trimestre, de fato, o núcleo do
índice de preços ao consumidor (que exclui energia e alimentos) ficou acima da
expectativa de analistas, na casa de 4% em termos anualizados.
A pressão não chega a interromper a tendência
de desaceleração observada desde o começo de 2023, mas no mínimo coloca o Fed em
compasso de espera.
Frustrou-se, assim, a expectativa de que
haveria alívio iminente e substancial do custo do dinheiro no maior centro
financeiro global. A taxa básica de juros se mantém em 5,25% ao ano, e os
mercados apontam hoje para redução de apenas 0,5 ponto percentual em 2024, bem
menos que a esperada há algumas semanas.
O resultado nos mercados financeiros é o
fortalecimento da moeda americana, inclusive ante o real, e alta nos juros de
longo prazo em outros países, fenômeno que também afeta o Brasil. Espera-se
hoje que a taxa Selic caia para não menos que 10,5% anuais, cerca de 1 ponto
percentual acima do que era esperado no início do ano.
Embora os mercados aqui também tenham reagido
negativamente à decisão do governo petista de afrouxar suas metas fiscais para
2025 e 2026, não parece distante da realidade o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, quando diz que dois terços do aumento das taxas e da
desvalorização do real podem
decorrer de fatores externos.
Ao menos houve certo alento na semana
passada, quando o presidente do Fed, Jerome Powell, reforçou que vê como
improváveis elevações adicionais dos juros.
Ao contrário, a autoridade monetária
americana crê que o mais provável é que a inflação volte
a mostrar tendência de queda para 2% nos próximos meses, o que abriria espaço
para alguma suavização no torniquete financeiro do dólar antes do fim de 2024.
A conclusão para o Brasil é que não pode
haver acomodação nem leniência com as contas públicas. Justamente por
reconhecer que o país sofre influências do ciclo financeiro global, é
necessário agir com prudência na gestão doméstica para evitar que tais riscos
possam prejudicar o desempenho da economia e do emprego —coisa que o
governo não tem feito.
SP sem manicômios
Folha de S. Paulo
Estado tarda a fechar instituições; agora
tempo exíguo não pode afetar transição
O governo de São Paulo corre
para cumprir a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de
fevereiro de 2023, que exige a
desativação dos hospitais de custódia do país —onde pessoas com
transtornos mentais que cometeram crimes e são inimputáveis ficam internadas.
É fundamental
que o poder público realize essa tarefa com rigor técnico, para
garantir a segurança de pacientes, seus familiares e da população. No entanto a
gestão paulista vem encontrando dificuldades para cumprir o prazo, que já foi
prorrogado pelo CNJ de maio para 28 de agosto.
O fechamento dessas instituições é medida
correta, já que constituem patente violação da Lei Antimanicomial de 2001, e
tão necessária quanto hercúlea.
São Paulo precisa desenvolver, em apenas três
meses, planos
individuais de tratamento para 925 pacientes ainda alocados em
três hospitais de custódia do estado.
Segundo a Folha, grupos de até dez
pacientes do hospital Franco da Rocha são levados à unidade de Taubaté para
realizar perícia individual de periculosidade em apenas um dia. Há que cuidar
para que essas avaliações sejam criteriosas.
Ademais, os ex-internos que viverão com suas
família devem receber acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial
(Caps). Contudo a contratação dos profissionais que cuidarão desses
atendimentos ainda está em andamento.
Aqueles que não têm onde morar serão
encaminhados às residências terapêuticas, de responsabilidade das prefeituras.
Especialistas se preocupam com uma possível falta de vagas.
O acúmulo de trabalho em cima da hora em São
Paulo não se justifica. A decisão do CNJ tem mais de um ano, e alguns estados
já atendem esse público exclusivamente nos Caps, como faz Goiás há mais de uma
década —com taxa de reincidência de somente 5%.
É descabido que o estado mais rico do país esteja tão atrasado nessa questão. Agora governos estadual e municipais devem se esforçar para que o tempo exíguo não prejudique a precisão técnica das perícias e a acomodação dos pacientes.
O perigoso cerco ao liberalismo
O Estado de S. Paulo
Direita articula ataques ao ‘Ocidente
liberal’, enquanto esquerda se encanta pelo ‘eixo da revolta’ contra o
Ocidente; mais do que nunca, os valores liberais precisam ser defendidos
Passado apenas um século da vaga totalitária
que desafiou a democracia e o liberalismo e resultou na 2.ª Guerra Mundial, os
valores que definem o Ocidente voltam a ser desafiados de maneira frontal.
Sob a liderança da China, formouse o chamado
“eixo da revolta” contra os valores ocidentais. Esse agrupamento, que tem na
Rússia, no Irã e na Coreia do Norte os principais associados, vem ganhando
adeptos e simpatias ao redor do mundo, exatamente por desafiar um liderado
pelos Estados status quo, Unidos e pela Europa, visto como intrinsecamente
desigual e injusto.
O Brasil governado pelo PT é um dos países
que expressaram admiração pelo “eixo da revolta”, seja por meio de uma política
externa que dá razão a agressores quando o agredido é ocidental, seja pelo
apreço demonstrado pela liderança do PT à “democracia efetiva” da China. O Irã,
que por sua vez lidera o “eixo da resistência anti-imperialista”, integrado por
um seleto grupo de entidades terroristas do Oriente Médio, foi calorosamente
aceito no Brics, o bloco dominado pela China, do qual o Brasil faz parte. Toda
essa miscelânea de ressentidos com o Ocidente, numa reedição do Terceiro Mundo
dos tempos da guerra fria, ganhou o nome fantasia de “Sul Global”.
Enquanto isso, a extrema direita também se
organiza de maneira global contra os valores ocidentais. Na mais recente
Conferência de Ação Política Conservadora – Cpac, principal palco de líderes e
formuladores do ultraconservadorismo –, realizada na Hungria, novos ataques
foram disparados contra os alvos preferenciais dessa turma: a imprensa, o
Judiciário, os imigrantes, os intelectuais, as minorias em geral e, sobretudo,
o “Ocidente liberal”. O ex-presidente americano Donald Trump, líder inconteste
dos reacionários, mandou um vídeo no qual parabeniza os “patriotas húngaros”
que estão “na vanguarda da batalha para resgatar a civilização ocidental”.
A “civilização ocidental” nomeada por Trump
inclui herdeiros do franquismo espanhol, argentinos devotos da motosserra de
Javier Milei, os Bolsonaros e os representantes de partidos xenófobos da
Itália, Polônia, França e Alemanha, todos em concertação articulada para
disputar eleições. Para o anfitrião, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán,
vencer as eleições significará “colocar fim à inglória era que o Ocidente
atravessa”. Ou seja, a vitória eleitoral é vista como uma espécie de chancela
para o projeto de destruição da mesma democracia que a ensejou.
Essa destruição se dá por meio da
desmoralização dos valores mais caros à democracia, como, por exemplo, a
liberdade de expressão, meramente utilitária para essa gente saudosa de ferozes
ditaduras. Na prática, eles defendem não o Ocidente como berço da democracia
liberal, da emancipação do indivíduo e dos direitos humanos, acima de
nacionalidades, credos e fronteiras, e sim um “Ocidente” ultranacionalista,
anti-iluminista e fundamentalista – e não há nada menos democrático e liberal
do que isso.
Como quase todo problema visto com olhos
teocráticos, sua solução passa por um “messias”. Trump seria o salvador do
Ocidente, assim como Orbán enxerga a Hungria como “uma ilha que desafia” os
progressistas europeus, e Bolsonaro se via como um “messias” que salvaria o
Brasil de um sistema carcomido pela política tradicional, pelo esquerdismo e
pelo “globalismo”. Para cada um dos extremistas presentes no Cpac, seus líderes
livrarão o Ocidente da “era inglória” do liberalismo. Esses iliberais na
verdade querem o “Ocidente” que enfrentou os infiéis nas Cruzadas, isto é,
aquele que precedeu o iluminismo e as grandes revoluções políticas que forjaram
a ideia democrática contemporânea.
Assim como no século passado o nazi-fascismo
e o stalinismo tinham como meta implodir a democracia liberal como ideia, o
“eixo da revolta” e os direitistas “iliberais” de hoje lutam para desacreditar
o Ocidente democrático e cosmopolita. Os valores liberais sobreviveram às
guerras do século 20, ao custo de milhões de mortos, mas, como se vê, o risco
de que venham a perecer está longe de ter desaparecido.
Novos tempos nas Forças Armadas
O Estado de S. Paulo
‘Aval’ do Exército à volta da Comissão de
Mortos e Desaparecidos era desnecessário, mas simboliza uma bem-vinda mudança
de compreensão da caserna sobre o digno propósito desse colegiado
Oficiais da cúpula do Exército, apurou o
Estadão, deram “aval” para a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP). Essa anuência dos militares era desnecessária
do ponto de vista formal, mas não deixa de ser simbólica neste momento do País,
haja vista que o aceno reflete uma bem-vinda mudança da compreensão das Forças
Armadas – do Exército, em particular – sobre o real propósito civilizatório
dessa comissão.
A CEMDP foi extinta nos estertores do governo
de Jair Bolsonaro por puro rancor, bolor ideológico e negacionismo histórico –
como seria de esperar de um admirador confesso da ditadura militar e de alguns
de seus agentes mais cruéis. Sua reinstalação deveria ter sido um dos primeiros
atos do presidente Lula da Silva. Mas veio o infame 8 de Janeiro, cujas
investigações, até o momento, apontam para o envolvimento direto e indireto de
fardados na intentona. Isso abriu uma crise entre as Forças Armadas e Lula, na
condição de seu novo comandante supremo.
A pretexto de conter a escalada das tensões
com os militares, de resto um receio descabido à luz das prerrogativas que a
Constituição lhe atribui, Lula tem resistido a reinstalar a CEMDP. O presidente
tem ignorado olimpicamente os pareceres dos Ministérios da Justiça e dos
Direitos Humanos, favoráveis à medida, e preferido seguir o aconselhamento dos
que advogam pelo “apaziguamento” da relação entre o Palácio do Planalto e as
Forças Armadas. É preciso deixar claro: a paz entre Lula e os militares, cuja relação
é definida nos termos da Lei Maior, não está nem nunca esteve a perigo pela
existência da CEMDP.
A preocupação com os humores da caserna
jamais teve razão de existir pelo simples fato de que a CEMDP não se presta ao
revanchismo nem tampouco à responsabilização individual de quem quer que seja,
militar ou civil. Trata-se apenas de uma comissão destinada a apurar e
reconhecer o básico: a responsabilidade do Estado, não de indivíduos, pela vida
e a integridade física dos que estiveram sob sua custódia durante um dos
períodos mais sombrios da história do País.
Segundo oficiais de alta patente ouvidos pela
reportagem deste jornal, todas as famílias têm o direito de saber o que
aconteceu com parentes e amigos desaparecidos durante aqueles chamados anos de
chumbo. É de reconhecimento, informação transparente e conforto emocional que
se está tratando, não de punições ou reescrita da História. Aliás, foi
exatamente com este propósito republicano que a CEMDP foi criada em 1995 pelo
então presidente Fernando Henrique Cardoso – e com esse mesmo espírito deve se
dar a sua reinstalação por Lula da Silva.
O aval dos militares contrasta com o
mal-estar gerado nos quartéis com a criação da Comissão Nacional da Verdade, em
2012, pela então presidente Dilma Rousseff. Mal-estar, diga-se, que não tinha
razão de ser, uma vez que a Comissão da Verdade não se prestava a nenhuma forma
de revanchismo. Alguns militares, no entanto, murmuravam descontentamento com o
fato de que integrantes das Forças Armadas teriam de dar explicações sobre a
repressão durante a ditadura, o que consideravam intolerável, ainda mais porque
Dilma era, ela mesma, uma exguerrilheira. Não é exagero enxergar nesse episódio
uma das sementes do bolsonarismo.
Mas os tempos, felizmente, são outros. O
atual comando militar parece genuinamente interessado em despolitizar os
quartéis e restabelecer o caráter institucional das Forças Armadas,
vacinando-se contra o golpismo bolsonarista.
Talvez a força dos fatos e a passagem do
tempo revelem ser impossível reunir todas as evidências de que o Estado
brasileiro falhou com muitos de seus cidadãos durante a ditadura militar. Mas é
preciso empreender o máximo de esforços para que esse reconhecimento seja,
enfim, alcançado. Os representantes do Estado hoje precisam olhar nos olhos do
passado com maturidade, coragem e espírito público, pois só assim darão à
sociedade civil as informações de que ela precisa para que todos tenham um
futuro mais pacífico.
Confiança é o cerne do problema
O Estado de S. Paulo
Moody’s se importa menos com as metas e mais
com o compromisso fiscal do governo
A mudança de parâmetro para as metas fiscais
de 2025 e 2026 – alteração que deve ocorrer também na meta deste ano – é o que
menos preocupa na aferição de risco do Brasil, como reforçou a vice-presidente
da Moody’s, Samar Maziad, em entrevista ao Estadão/Broadcast. O foco de atenção
dos avaliadores está, na verdade, no compromisso real do governo com o
arcabouço fiscal como instrumento de controle do endividamento, o que vai além
da calibragem das metas na programação orçamentária.
As reformas estruturais e o bom – e
surpreendente, como avaliou a executiva – desempenho da economia brasileira nos
últimos dois anos foram um dos motivadores da revisão da perspectiva, de
estável para positiva, na classificação da Moody’s sobre o Brasil. Ou seja, a
Moody’s indicou que aposta na melhora do endividamento brasileiro a médio
prazo, mas não a ponto de elevar desde já a nota do País, que permanece dois
degraus abaixo do grau de investimento, reservado a países considerados bons
pagadores.
Antes de comemorar a primeira boa-nova de uma
classificadora de risco desde 2018, o governo Lula da Silva deveria se
concentrar no exame minucioso das ressalvas feitas pela Moody’s e endossadas na
entrevista de Maziad ao Estadão. O governo reduziu as metas fiscais de 2025 (de
superávit de 0,5% para zero) e 2026 (de superávit de 1% para 0,25%), o que foi
decerto um sinal ruim – mas, ainda assim, só um sinal. “O que importa são a
direção e a atitude”, declarou a executiva.
Esse é o ponto central que convém ao governo
observar – mais o Palácio do Planalto do que o Ministério da Fazenda, vale
ressaltar. Além do ruído desencadeado pela redução das metas fiscais, o que
cerca de dúvidas o compromisso do governo Lula da Silva na estabilidade são os
movimentos orquestrados entre Executivo e Congresso.
Um exemplo foi a aprovação recente, pela
Câmara, de um dispositivo que permite ao governo liberar despesa extra de R$
15,7 bilhões este ano. O projeto, que ainda terá de passar pelo Senado, é
resultado de acordos de bastidores para ampliar de imediato os gastos de 2024,
um ano de eleições municipais. Cada jogada para driblar as regras fiscais e
cada declaração de Lula a favor da gastança minam mais a credibilidade no
compromisso com o arcabouço. A discrepância entre as previsões oficiais e as de
mercado é um sintoma dessa desconfiança.
Samar Maziad afirmou que a própria Moody’s
não partilhava da confiança no déficit zero este ano e em superávit em 2025. Na
avaliação da agência, o resultado esperado para os dois anos já era de déficit,
com gradação menor em 2025. Mesmo assim, bons resultados econômicos apontaram
para a melhora do perfil de crédito, segundo ela o fator-chave para a melhor
perspectiva chancelada pela agência.
Trata-se de um voto de confiança tênue, que se dissipará se a elevação de gastos deixar de ser apenas um sinal. Afinal, a maior deficiência do arcabouço é a dependência excessiva de receita, que tem se revelado aquém do esperado, e a principal falha da gestão Lula é o apreço às despesas. Sem estabilidade fiscal, a desconfiança permanecerá.
Prevenir é melhor do que remediar
Correio Braziliense
Acontecimentos climáticos extremos ocorrem de
forma mais ou menos aleatória, mas são previsíveis estatisticamente. Esse
raciocínio serve para elaboração de planos de prevenção de desastres naturais e
para evacuação de populações em risco
As catástrofes climáticas em todo o mundo são
cada vez mais frequentes e intensas. Cientificamente, está provado que o
aquecimento global já mudou o clima. Esses acontecimentos extremos ocorrem de
forma mais ou menos aleatória, mas são previsíveis estatisticamente. Ou seja, é
possível saber o grau de probabilidade com que vão ocorrer, embora nem sempre
seja possível detectar sua localização com maior antecedência. Uma simples
comparação facilita o raciocínio: quando se ouve uma playlist aleatoriamente, não
se sabe qual, mas uma música será executada, às vezes até repetida.
Esse raciocínio serve para elaboração de
planos de prevenção de desastres naturais, como obras de macrodrenagem, e de
contingenciamento de defesa civil, para evacuação de populações em situação de
risco e socorro imediato às vítimas. Por exemplo, desde ontem sabia-se que o
Rio Guaíba transbordaria em Porto Alegre e que o sistema de diques, comportas e
bombas da cidade, construído depois da grande enchente de 1941, não daria conta
de impedir a inundação de grande parte da cidade, sobretudo o centro histórico,
que ocorre desde ontem.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se deu
conta da gravidade do problema, pelas medidas tomadas após visitar o Rio Grande
do Sul. Ontem, voltou a se solidarizar com as vítimas ao receber a visita
oficial do primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida. Por sinal, o Japão é um
país que lida com desastres naturais com o maior planejamento possível por,
entre outros fatores, a recorrência de furacões, terremotos e até tsunamis.
"As primeiras palavras do ministro
Kishida na reunião que fizemos foi de solidariedade ao povo do estado do Rio
Grande do Sul, que está sendo vítima de uma das maiores enchentes de que nós
temos conhecimento. Nunca na história do Brasil tinha havido uma quantidade de
chuva tão grande em um único local", disse Lula. Até ontem, 235 dos 496
municípios do estado haviam sido atingidos de alguma forma.
A capital gaúcha entrou em colapso. As pontes
sobre o Guaíba foram interditadas, o sistema de macrodrenagem não deu conta de
conter as águas, principalmente na maré cheia, quando o mar invade o rio em vez
escoá-lo. O rio superou a marca de 4,5m, sobe em média de 8cm por hora e,
segundo previsões das autoridades, ultrapassará os 5m, um recorde histórico. Os
prejuízos por causa da chuva deverão ser superiores a R$ 100 milhões.
Em todo o Brasil, quando ocorre uma enchente
de grandes proporções, a vulnerabilidade das moradias é desnudada,
principalmente nos bairros pobres. Ao monitorar 872 municípios — são 5.570 nos
26 estados —, o IBGE identificou cerca de 8,3 milhões de pessoas que vivem em
áreas de risco. O caso mais grave é o de Salvador, com 45,5% da população em
locais com maior propensão a desastres.
Em 2010, o IBGE lançou um relatório específico sobre áreas de risco, em parceria com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O levantamento aplicou uma metodologia própria para definir áreas de riscos de movimentos de massa, inundações e enxurradas e identificou 8.270.127 pessoas vivendo nesses locais, em 2.471.349 domicílios particulares permanentes. Cerca de 17,8% desse montante era formado por crianças de até 5 anos (9,2%) ou idosos com 60 anos ou mais (8,5%), mais vulneráveis a desastres. O Sudeste foi a região com mais cidades listadas (308), seguida do Nordeste (294), Sul (144), Norte (107) e Centro-Oeste (19). Ou seja, Porto Alegre e outras cidades gaúchas não estavam entre as mais vulneráveis.
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