Correio Braziliense
A diplomacia precisa de um consenso nacional,
para que o seu eixo não deixe de ser a política externa e passe a ser a
interna, o que dividiria ainda mais o país
Certa vez, o falecido historiador Tony Judt (Quando os fatos mudam, Objetiva) comparou os Estados Unidos a um veículo utilitário tipo SUV, tão ao gosto dos americanos e de brasileiros. “Com tamanho e peso subdimensionados, o SUV zomba de qualquer acordo negociado para limitar a poluição atmosférica. Consome quantidades extraordinárias de recursos escassos para abastecer habitantes privilegiados, com serviços que vão muito além do necessário. Expõe os que estão fora dele a risco mortal apenas para proporcionar uma segurança ilusória aos seus ocupantes. Num mundo superpovoado, o SUV aparece como um perigoso anacronismo”.
Judt comparava o SUV à política externa
norte-americana, “embrulhada em altissonantes informações sobre sua missão,
mas, debaixo disso tudo, não passava de uma picape de tamanho exagerado com o
motor potente demais. O veículo pode ser moderno, mas a ideia por trás dele,
não”. No contexto da guerra do Iraque, que foi um desastre para o Oriente Médio
e para a política internacional, o historiador aproveitou a analogia para
listar argumentos utilizados por intelectuais europeus contra os Estados
Unidos, por sua vã pretensão de ser o xerife de um imaginário mundo unipolar.
Os produtos norte-americanos, manufaturados e
embalados em outros países não exercem o mesmo fascínio. O América way of life
já não provoca tanta inveja. Entretanto, não existe um sentimento raivoso
contra o povo norte-americano, muito pelo contrário. Sua nova realidade
multiétnica tem enorme poder de atração, ainda que o supremacismo branco ainda
ronde a Casa Branca. O que realmente semeia o antiamericanismo é a política
externa intervencionista norte-americana, cuja sutileza é a de um HMMWV
(Veículo Automóvel Multifunção de Alta Mobilidade em português), que inspirou o
Hummer, o utilitário civil).
Desde a guerra do Iraque, quando pareciam
exibir sua melhor forma, essa política revela três contradições: primeira,
sistematicamente atropela a Organização das Nações Unidas (ONU), cujo papel na
política internacional continua sendo muito relevante, o que gera muita
antipatia; segunda, a instrumentalização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
para compensar a decadência de sua hegemonia na Europa, ao lado da Inglaterra,
gera muitos descontentamentos, principalmente na Alemanha e na França;
terceira, esse intervencionismo permanente neutraliza a própria capacidade de
resolução dos conflitos, como acontece, por exemplo, no Oriente Médio.
Entretanto, a força do “americanismo” no
cotidiano das pessoas ainda é muito maior do que esse sentimento antiamericano.
Inclusive aqui no Brasil, onde a esquerda tem motivos de sobra para se queixar
da interferência dos EUA na vida nacional, particularmente durante o governo
Dutra (1956-1941), na crise que levou Getúlio Vargas ao suicídio (1954) e no
golpe militar de 1964. Mas o que é o americanismo? Grosso modo, admiração e
imitação do que é americano, seja no modo de vida, na cultura ou na política.
Venezuela
Trata-se de um fenômeno cultural, político e
econômico, um modo de vida que surgiu imbricado, historicamente, na esfera
produtiva, com o taylorismo — como modelo de organização do trabalho — e com o
fordismo — um mecanismo de acumulação de capital, hoje ultrapassado pela
tecnologia digital e a acumulação de capital social. Quando surgiu, deslocou o
centro da indústria mundial da Europa para os EUA e forjou o modo de vida dos
americanos, que passou a ser um padrão imitado em todo o mundo. Essa vitória cultural
e política combinou força e persuasão, com altos salários, benefícios sociais,
propaganda moral e instrução. O americanismo criou um modo de consumo
intimamente associado à ideologia do progresso individual, que agora está sendo
posta em xeque pela sociedade pós-industrial.
Mesmo assim, a política externa brasileira
não tem nenhuma chance de dar certo se for pautada pelo antiamericanismo, ainda
mais em questões como a da Venezuela. A diplomacia precisa de um consenso
nacional, para que o seu eixo não deixe de ser a política externa e passe a ser
a interna, e aprofunde ainda mais a divisão do país. Quando a esquerda
brasileira aposta na permanência de Nicolás Maduro a qualquer preço, seja por
meio de eleições fraudadas ou de um golpe de Estado, comete o equívoco de
confrontar os valores democráticos. E o americanismo disseminado na sociedade,
muito mais do que a política externa dos EUA, tem projeção de poder que nem se
compara à nossa. Ou seja, não somos a força decisiva nesse processo
venezuelano, que opõe os EUA a Rússia, China e Cuba. Seríamos o marisco entre o
mar e o rochedo.
Nos bastidores das relações com a Venezuela,
os EUA são mais pragmáticos do que se imagina. A pedido da Casa Branca, o
Brasil teve um papel importante na negociação do acordo que sustou as sanções
norte-americanas ao governo de Maduro em outubro de 2023. Havia interesse
recíproco na normalização das relações, por causa do petróleo — sempre ele —,
sobretudo depois da guerra da Ucrânia. A condição do acordo era a realização de
eleições livres, em que houvesse direito ao dissenso e possibilidade de alternância
de poder.
As medidas tomadas por Maduro para conter a
oposição e manipular as eleições romperam o acordo, cujo fiador era o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Provocaram novas sanções e o impasse
político atual. Teremos dias de grandes emoções. Os EUA têm interesse no
petróleo venezuelano, sim, mas estão mais preocupados com a sua aliança militar
com a Rússia, a influência política de Cuba e a crescente presença econômica da
China na América do Sul. Com um olho na Venezuela e outro nos EUA, principal
destino das exportações de nossa indústria, o Brasil não pode se pautar pelo
antiamericanismo nesta crise da Venezuela, como deseja a nossa velha esquerda.
Seria um grave erro.
Um comentário:
Apoiado.
Postar um comentário