O Globo
Um ano já. E Israel ainda não permitiu a
entrada em Gaza de um só jornalista ou fotógrafo profissional independente
Se o destino sussurrar no seu ouvido que você
não pode deter a tempestade, sussurre de volta “eu sou a tempestade”.
Muitos tentam, porém desistem, varridos pela
implacável ventania da vida. (Jean Cocteau já dizia que “viver é uma queda
horizontal”.) Alguns de nós até conseguem ficar de pé. Mas só um punhado
bastante especial desafia o destino com a naturalidade de Bisan Owda. Ela é
irresistível, e seu documentário de oito minutos “It’s Bisan from Gaza, and I’m still alive”
também. Tanto assim que seu curta noticioso conquistou um dos prêmios do 76º
Emmy de duas semanas atrás, além de reconhecimento unânime na premiação dos
Peabody Awards e Edward R. Murrow Awards deste ano.
A jornalista palestina de 25 anos mora em
Gaza, tem três filhos e, desde o início dos bombardeios israelenses ao enclave,
em outubro passado, empunhou o celular e passou a fazer postagens do que vê,
sente, pensa e vive — tudo em inglês, sem saber se suas mensagens jogadas na
imensidão da blogosfera aportariam em alguma praia. Todas começavam com sua
imagem sorridente, dizendo:
— Sou Bisan, de Gaza, e ainda estou viva.
O episódio premiado foi produzido pela Al Jazeera Plus,
está acessível pelo link e retrata o início do estrangulamento de Gaza
que se seguiu à matança do 7 de Outubro contra Israel. Passado um ano,
Bisan continua a falar para o mundo — tem 4,8 milhões de seguidores no
Instagram, e seus despachos mantêm o frescor e o horror dos primeiros dias.
— É uma vitória para a Humanidade — celebra a
Al Jazeera Plus não sem razão.
No mesmo espaço de tempo, mais de 130 colegas
jornalistas de Bisan foram mortos pelo avanço israelense em Gaza. Todos
palestinos.
Foi com indignação que a Creative Community
for Peace — uma ONG pró-Israel de Los Angeles com forte influência sobre
Hollywood — recebeu a atribuição do Emmy para Bisan Owda.
— Em vez de premiar um dos respeitáveis
trabalhos apresentados sobre a guerra em Gaza, [os jurados] optaram por
aplaudir uma ativista política filiada à Frente Popular de Libertação da
Palestina (FPLP) — acusou a entidade.
A nota também criticava “esse dia triste do
jornalismo, de presságio sombrio para o futuro da indústria”. A resposta do
braço documental do Emmy, que há quase 50 anos premia excelência no jornalismo
televisivo, fincou pé.
— Damos visibilidade a vozes que alguns
espectadores podem considerar condenáveis, ou mesmo odiosas — esclareceu o
presidente da News & Documentary Emmy Awards.
Um ano já. E Israel ainda não permitiu a
entrada em Gaza de um só jornalista ou fotógrafo profissional independente.
Blecaute total, exceto para raras visitas de algumas horas em área designada e
sob vigilância de escolta militar. Nem uma única equipe de televisão, rádio ou
mídia eletrônica ocidental até hoje terá testemunhado o primeiro ano de
desterro e aniquilamento de vida no enclave de 365 quilômetros quadrados.
Situação particularmente inédita para esta era da comunicação instantânea e
global. É um manto de sigilo e segredo insustentável no longo prazo. Quando
Gaza, algum dia, vier a ser liberada para o grande jornalismo independente,
tudo já terá sido dito por palestinos de celular na mão como Bisan Owda.
Segundo dados divulgados pela agência
Anadolu, da Turquia, “902 famílias palestinas de Gaza tiveram seus registros
civis obliterados por morte de todos os seus membros”. Tem mais: 1.364 famílias
foram dizimadas restando um único membro. De 3.472 outras famílias sobraram
apenas dois indivíduos. Foi para dar conta do orfanato a céu aberto em Gaza que
organizações humanitárias criaram o acrônimo inglês WCNSF, para “criança
ferida, sem familiares vivos”.
Em contrapartida, no Líbano agora também
regado a bombas e atropelado por tanques israelenses em caça ao Hezbollah,
a destruição é transmitida ao vivo e em cores, em todas as línguas, por
jornalistas do mundo inteiro. Daí a correria maior em busca de um cessar-fogo
imediato — se possível, antes de o Irã ser tragado na centrífuga de guerras que
Israel pretende vencer simultaneamente. O primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu parece não ter pressa: faltam poucos dias para a
eleição presidencial americana. Aumentar o círculo de fogo no Oriente Médio
prejudica bastante a difícil campanha de Kamala Harris à
Casa Branca. E um cessar-fogo de bandeja para um Donald Trump eventualmente
vitorioso teria sabor de desforra adicional. Como deter essa tempestade?
4 comentários:
Meu Deus!
Brilhante, Dorrit. Do latrocida ao genocida, a (eterna) condição de vítima parece justificar tudo.
Texto perfeito, muito sensível. Os crimes de guerra de Israel são escondidos pelo governo do genocida Netanyahu. A censura à imprensa é total em Gaza, e os ocidentais ainda acreditam que Israel é a única democracia da região. Poucas vezes a "democracia" foi tão bárbara e sanguinária!
Bem observado, concordo plenamente.
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