Anistia para réus do 8 de Janeiro é inadmissível
O Globo
Investigação da PF revela que violência e
invasão a sedes dos três Poderes foram parte da trama golpista
As revelações da Polícia Federal (PF) sobre a
tentativa de golpe para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
e o indiciamento de 37 envolvidos na trama golpista, entre eles o ex-presidente
Jair Bolsonaro e autoridades graduadas de seu governo, corroboram que é
inadmissível o projeto que tramita no Congresso para anistiar quem participou
da invasão às sedes dos três Poderes no 8 de Janeiro. Implicitamente, a
proposta visa também a beneficiar Bolsonaro, inelegível devido à condenação
pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Crimes contra a democracia são
gravíssimos. Não pode haver anistia nem para os participantes do 8 de Janeiro,
nem para quem tramou um golpe de Estado.
A trama golpista, diz a PF, foi urdida dentro do Palácio do Planalto por auxiliares próximos de Bolsonaro. Um plano com o passo a passo da intentona, que previa o assassinato de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, foi impresso nas dependências palacianas. As investigações mostram também que os acampamentos de onde partiram as manifestações violentas do 8 de Janeiro não foram protesto espontâneo de descontentes com a vitória de Lula. Faziam parte do plano para impedir a posse dele, depois tumultuar seu governo. De acordo com a PF, o general da reserva Mário Fernandes, preso na semana passada, funcionava como elo entre o Planalto e os acampados na frente do quartel-general do Exército em Brasília. A invasão e a vandalização dos prédios públicos, depois que a intentona fracassara por falta de apoio no Alto Comando do Exército, objetivavam gerar instabilidade ao governo recém-empossado.
Não havia ingenuidade no atentado contra a
democracia consumado uma semana depois da posse de Lula. Ônibus foram alugados,
participantes arregimentados, códigos usados para despistar serviços de
inteligência — manifestantes foram convocados a ir a Brasília para a “festa da
Selma”. Tudo planejado. Por isso participantes, organizadores, financiadores e
autoridades que atuaram para insuflar a violência ou se omitiram
deliberadamente precisam responder por seus atos. A dificuldade em aceitar as
regras democráticas é tamanha que mais de 60 acusados postos em liberdade
provisória pelo Supremo fugiram para a Argentina. Deveriam voltar ao país para
cumprir suas penas.
Tanto a conspiração golpista, revelada em
detalhes pela PF, quanto o episódio do 8 de Janeiro são fatos extremamente
graves, que precisam ser apurados, julgados e punidos, independentemente de
nomes, cargos e patentes. Nas palavras precisas do ministro Luís Roberto
Barroso, do STF, “tudo sugere que estivemos mais próximos do que imaginávamos
do inimaginável”. Planejava-se um golpe sangrento, que pretendia usar
instalações, armas, agentes e recursos do Estado para assassinar autoridades,
algo impensável em tempos de normalidade democrática.
Se já era descabida a proposta de anistia,
agora ela se torna ainda mais inadmissível. Parlamentares precisam enterrar
esse projeto nocivo. O que aconteceu no 8 de Janeiro não se enquadra na
categoria “liberdade de manifestação”. A trama golpista não pode ser minimizada
só porque não deu certo. Se o país vive seu mais longevo período democrático, é
graças à força de suas instituições. Essas mesmas instituições devem agir para
que episódios assim não se repitam. Para isso, é essencial que não fiquem impunes.
Para melhorar estradas brasileiras, saída é
concedê-las ao setor privado
O Globo
Apenas um terço das rodovias tem boa
qualidade. Governo já percebeu que concessões são a solução
Trafegar pelas rodovias brasileiras costuma
ser uma aventura, como se depreende dos números da mais recente pesquisa da
Confederação Nacional do Transporte (CNT), do Serviço Social do Transporte
(Sest) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), divulgada
na semana passada. Segundo o levantamento, que avaliou mais de 111 mil
quilômetros pavimentados da malha rodoviária brasileira, a maior parte (40,4%)
está em estado apenas regular em termos de pavimentação, sinalização e traçado.
As ótimas ou boas não passam de 33%. As ruins ou péssimas chegam a 26,6%.
Embora tenham sido constatadas melhorias em
relação a 2023, elas não foram significativas. Entre os dados positivos, está a
redução dos pontos críticos em 7,6% (de 2.648 para 2.446). São menos buracos,
pontes caídas, quedas de barreira e erosões na pista. Mas, em relação ao estado
geral, a situação é praticamente a mesma.
Mais uma vez, chama a atenção a discrepância
entre as rodovias administradas pelo Estado e pela iniciativa privada. Em
relação a estas últimas, 41,7% foram classificadas como boas e 21,4% como
ótimas. Apenas 5,7% como ruins e 0,4% como péssimas. As regulares somaram
30,8%. Entre as estradas administradas pelo poder público, em contraste, as
ruins ou péssimas representaram 33,6%, quase o sêxtuplo. Apenas 22,7% se
enquadraram na categoria boa ou ótima. A maior parte (43,7%) foi avaliada como
regular. Das dez melhores rodovias, nove são privadas.
Os dados são eloquentes. O melhor caminho
para melhorar as estradas brasileiras é concedê-las à iniciativa privada. A CNT
estima que o investimento necessário para reconstruir, restaurar e manter a
malha rodoviária esteja em torno de R$ 100 bilhões. O governo não dispõe desses
recursos. É claro que nem todas as rodovias do país são lucrativas, mas muitas
podem ser concedidas. Em abril do ano passado, o governo Lula, em geral
resistente a privatizações, anunciou um programa para conceder 5 mil quilômetros
da malha federal com o objetivo de aumentar investimentos no setor. Espera-se
que o plano seja cumprido.
Não basta simplesmente conceder as rodovias.
É preciso fiscalizar para que os compromissos pactuados sejam cumpridos. Há
concessionárias que, sob os mais variados pretextos, deixaram de implantar
serviços ou abandonaram obras que já deveriam ter sido concluídas. Nesses
casos, o governo deve relicitá-las. Os motoristas pagam pedágio e têm direito a
usufruir estradas bem pavimentadas, sinalizadas, com serviços decentes.
Melhorar a qualidade das estradas não é
questão irrelevante. Pelas rodovias brasileiras, circulam 65% da carga e 95%
dos passageiros transportados. O custo das passagens aéreas pôs mais carros e
ônibus nas pistas. A economia aquecida tem levado mais veículos pesados ao
asfalto. É preciso preparar a infraestrutura para
absorver esses impactos. Uma rodovia bem cuidada significa economia de tempo,
de combustível e, sobretudo, mais segurança para motoristas e passageiros. Não
é pouco.
Empresas mostram como gasto de Lula fomenta o
rentismo
Folha de S. Paulo
Companhias abertas, fora a Petrobras,
destinam R$ 232 bi a aplicações financeiras favorecidas pela alta dos juros
O país flerta perigosamente com uma crise de
financiamento, que não tardará a se revelar se não houver ações
corretivas por parte do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
Mesmo com a arrecadação federal em nível
elevado, de cerca de 22,6% do Produto Interno Bruto nos 12 meses acumulados até
outubro, maior patamar desde 2008, o deficit do Tesouro Nacional deve terminar
2024 em 0,7% do PIB —sem
contar a despesa com juros,
na casa dos 7% do PIB.
Como resultado a dívida
pública está em trajetória explosiva, tendo subido de 71,7% do
produto no final de 2022 para 78,3% em setembro. As projeções da Instituição
Fiscal Independente (IFI) apontam para 84,1% ao final de 2026, e a mesma
entidade calcula que as medidas do governo atual, se mantidas, custarão até R$
3 trilhões em dez anos.
A consequência da gastança sem controle
—herança maldita de Lula para si mesmo— é a disparada dos juros de mercado, que
apontam um pico para a taxa Selic de
até 14% ao ano. Descontada a inflação,
a rentabilidade dos títulos públicos de prazos mais longos se aproxima de 7%, o
que é insustentável.
Qualquer desaceleração da economia afetará
a coleta de impostos, elevará ainda mais o rombo nas contas e impulsionará o
crescimento da dívida além das projeções atuais, que já são temerárias.
O aperto das condições financeiras cobra sua
conta. Não é surpresa que as empresas retraiam investimentos e prefiram deixar
seus recursos em papéis de curto prazo do governo, indexados à taxa do Banco Central.
Em setembro, são R$ 232,4 bilhões de
companhias abertas (fora a Petrobras)
que poderiam estar a serviço de investimentos e empregos, 55% a mais que em
março de 2021, segundo levantamento da
consultoria Elos Ayta noticiado pela Folha. Não tardará para a economia
perder vigor, também por causa da pressão em empresas e famílias endividadas.
No curto prazo, os tão atacados rentistas até
agradecem a Lula e ao PT. É um erro, porém, acreditar que os juros altos por
muitos anos adiante poderão atrair investidores de forma sustentável. Sem
sustentabilidade fiscal, com o tempo nenhuma taxa será suficiente para
convencer credores.
Ninguém —nem bancos nem investidores— gosta
de juros altos. Custo de capital elevado destrói valor ao reduzir preços de
ativos, sejam imóveis, ações e os próprios papéis da dívida.
Não passa de infantilidade a crença em conspirações da elite e do mercado
financeiro. Muito ao contrário, no início do terceiro mandato de Lula havia
expectativas positivas de que o mandatário, com sua experiencia, saberia lidar
com as contradições de forma pragmática.
Infelizmente, até aqui ele optou pelo caminho incendiário. Agora, ou apaga as
chamas com um programa sério de controle de gastos, cuja divulgação é esperada
há semanas, ou seu governo e o país serão ameaçados pela perspectiva de
insolvência.
A inércia e o Estado laico
Folha de S. Paulo
Zanin e Dino votam no STF, em cujo plenário
há um crucifixo, contra retirada de símbolos religiosos de repartições públicas
Está na pauta do
Supremo Tribunal Federal definir se há ou não
constitucionalidade na presença de símbolos religiosos em edifícios públicos,
dado o princípio do estado laico presente na Carta de 1988.
O tema, que há muito é objeto de debate,
chegou à corte a partir de representação oferecida à Procuradoria Regional dos
Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, em razão de um crucifixo
exposto no plenário do Tribunal Regional Eleitoral paulista.
A Constituição veda
expressamente à União e aos demais entes federativos "estabelecer cultos
religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança".
É curioso que a mesma Carta de 1988, em seu
preâmbulo, anuncie sua promulgação "sob a proteção de Deus".
O caso está no plenário virtual do STF —que
também exibe um crucifixo em seu plenário, prática comum em repartições
públicas Brasil afora. O litígio específico de agora impactará outros processos
semelhantes.
Os ministros Cristiano
Zanin e Flávio Dino já
apresentaram votos contrários à retirada dos símbolos, entendendo-os como uma
expressão da tradição cultural brasileira. Zanin afirmou que tais objetos não
violam a imparcialidade do juiz. Dino foi além, qualificando que uma eventual
proibição representaria opor-se a raízes culturais e liberdades de crença.
Ambos os argumentos têm fragilidades
consideráveis. Embora a tradição cristã sem dúvida faça parte da cultura
nacional, privilegiá-la em repartições que servem a pessoas de todas as
crenças, inclusive a quem não professa nenhuma, pode significar "distinções
entre brasileiros ou preferências entre si", como também proíbe o texto
constitucional.
Sustentar a
retirada de símbolos religiosos tampouco deveria ser
interpretado como oposição a uma determinada crença. Pelo contrário: fazê-lo é
respeitar a impossibilidade material de que todas estejam representadas em
edifícios do Estado.
Não se pode confundir estado laico com
aversão a religiões ou ausência delas; laicidade impõe separação, não oposição,
enquanto a presença de símbolos religiosos, cristãos ou não, denota a rigor
privilégio a um credo em detrimento de outros.
Propositalmente ou não, Zanin e Dino parecem
antes fornecer argumentos jurídicos para a inércia —uma tendência sempre
poderosa, ainda mais na ausência de clamor público e diante da pletora de temas
explosivos e mais urgentes na pauta do Supremo.
Defender a Pátria é respeitar a Constituição
O Estado de S. Paulo
É perturbador o número de generais suspeitos
de apoiar a trama golpista investigada pela PF. Isso mostra que a formação
militar precisa deixar mais claro que respeito à lei não é opcional
Ainda há muitas dúvidas a respeito do suposto
golpe para manter Jair Bolsonaro no poder, mas uma coisa parece certa: se
realmente houve, a conspiração provavelmente não prosperou porque a maioria dos
chefes militares do País se manteve fiel à Constituição, em particular o Alto
Comando do Exército. Caso seja confirmado que houve mesmo um complô – que,
conforme as investigações, incluía o assassinato do presidente eleito Lula da
Silva, de seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Alexandre de Moraes –, é seguro afirmar que o Brasil escapou de ser
tragado por uma das mais graves crises de uma história já bastante marcada por
golpes e insurreições.
Pode-se especular quais teriam sido as
motivações dos chefes militares legalistas, mas a rigor elas são irrelevantes.
Seja pela convicção democrática de seus membros, seja por pragmatismo – afinal,
não havia, como não há, “clima” para um golpe militar no País –, o fato é que
os militares suspeitos de participar do tal complô foram afinal frustrados e o
governo federal legitimado pelas urnas em 2022 aí está, acumulando erros e
acertos até a prestação de contas no próximo ciclo eleitoral, como acontece em
qualquer democracia constitucional.
Dito isso, não deixa de ser perturbadora a
informação de que a Polícia Federal (PF) identificou que a trama golpista
contou com uma rede de apoio composta por ao menos 35 militares, entre os quais
há nada menos que 10 generais e 16 coronéis do Exército, além de um almirante.
Como se sabe, quatro oficiais das Forças Especiais do Exército, os chamados
“kids pretos”, e um policial federal foram presos pela PF, por ordem de Moraes,
pela gravíssima suspeita de terem planejado aquele triplo homicídio.
O simples fato de os nomes desses 35
militares terem sido citados no curso das investigações não significa,
necessariamente, que todos tenham feito parte da suposta conspiração para
impedir a posse de Lula da Silva. Não se pode descartar que alguns possam ter
sido citados como bravata, a indicar um apoio à intentona que, na realidade,
não houve. Há diligências em curso e só a denúncia que a Procuradoria-Geral da
República decerto apresentará ao STF individualizará as condutas dos suspeitos,
civis e militares, de tramar a permanência de Bolsonaro na Presidência a
despeito da derrota eleitoral.
Mas, independentemente do transcurso jurídico
do caso, é espantoso que tantos militares, e tão graduados, sejam suspeitos de
conspirar contra a democracia – reconquistada à custa de muita dor para os
brasileiros – em plena segunda década do século 21. Todos os coronéis e
generais da ativa foram formados para o alto oficialato após a redemocratização
do País. A esmagadora maioria deles já sob a égide da Constituição de 1988,
que, a despeito da exegese picareta que muitos fizeram do art. 142, define
claramente o papel das Forças Armadas no regime democrático, principalmente a
submissão do poder militar armado ao poder político civil.
A sociedade sabe apenas superficialmente como
se dá a formação dos militares, mas a luz dos fatos permite enxergar que algo
não vai bem nessa formação quando dezenas de oficiais de alta patente da ativa
e da reserva são citados como participantes de um plano de golpe de Estado.
Mais bem dito: o Brasil não pode ficar à
mercê dos humores dos senhores membros do Alto Comando do Exército, que hoje,
ao que tudo indica, são legalistas. Mas poderiam não ser, como vários de seus
colegas de farda mencionados como envolvidos na trama golpista. Por isso, é
importante enfatizar que o respeito à Constituição e ao Estado Democrático de
Direito não é uma escolha e que as escolas militares devem ter o especial
cuidado de incutir esses valores nos corações e mentes dos soldados desde o
primeiro passo que eles dão em um quartel. Amar e servir à Pátria, afinal, é
antes de tudo respeitar suas leis, em especial a maior de todas.
A Operação Contragolpe e outras antes dela,
além das que estão por vir, devem levar as Forças Armadas, em particular o
Exército, a um profundo reexame de uma mentalidade segundo a qual os militares
seriam uma espécie de “tutores” da República. Nunca foram e jamais serão, ao
menos não enquanto aqui vigorar uma democracia digna do nome.
A hora mais escura
O Estado de S. Paulo
É provável que ameaças nucleares de Putin
sejam mais um blefe. Mas as condições de dissuasão nuclear estão se
deteriorando. Apaziguar um ditador imperialista só acelerará esse processo
Em questão de dias, paradigmas de dissuasão
nuclear estabelecidos após a 2.ª Guerra estão colapsando. No dia 18, os EUA,
seguidos por Reino Unido e França, autorizaram Kiev a atacar território russo
com seus mísseis, o que ela fez no dia seguinte. Imediatamente, o Kremlin
revisou sua doutrina nuclear, declarando que agressões à Rússia poderiam ser
retaliadas com arsenal nuclear e ataques apoiados por potências nucleares
seriam tratados como uma agressão conjunta. No dia 21, a Rússia disparou
mísseis sobre a cidade de Dnipro. Um deles, segundo declarou Vladimir Putin,
seria um Oreshnik.
A Rússia já disparou mísseis com capacidade
nuclear contra a Ucrânia, mas o Oreshnik é um míssil balístico intercontinental
capaz de comportar múltiplas ogivas. Putin alega que ele pode viajar mais de 10
vezes a velocidade do som e não pode ser interceptado. Mas oficiais das forças
ocidentais dizem que se tratou de um míssil balístico de alcance mais curto. De
todo modo, foi uma mensagem.
Será um blefe? Possivelmente. Kiev já vem
atacando com mísseis de aliados a Crimeia, que o Kremlin considera território
russo. A aplicação das “linhas vermelhas” foi inconsistente: Putin escalou a
guerra várias vezes por conta própria; por outro lado, quando os aliados
bancaram suas ameaças e forneceram à Ucrânia foguetes, tanques e caças, ele
moveu as “linhas vermelhas” e declinou a retaliação. Seria irracional detonar
um conflito com a Otan a dois meses da inauguração do mandato de Donald Trump,
que se mostra inclinado a forçar a Ucrânia a concessões.
O risco, de todo modo, existe, e o mundo está
em seu momento mais perigoso desde a guerra fria. Comparações com os anos 30
não devem ser superestimadas, mas tampouco subestimadas. Oficialmente, a 2.ª
Guerra começou em 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha. Mas em 1931 o
Japão invadiu a Manchúria e em 1937 eclodiu a guerra com a China; nazifascistas
e soviéticos travaram uma guerra “por procuração” na guerra civil espanhola de
1936; e em 1938 a Alemanha anexou a Áustria e os Sudetos.
Hoje, a rivalidade entre EUA e China se
intensifica, a guerra civil no Sudão pode transbordar para vizinhos na África e
no Oriente Médio, já ameaçado por uma conflagração pelos confrontos entre
Israel e Irã em Gaza e no Líbano. A observância de tratados internacionais
(incluindo os de controle nuclear) está em declínio, e quatro autocracias –
China, Rússia, Irã e Coreia do Norte – estreitam relações para confrontar o
Ocidente.
Trump pode investir em capacidades militares
para ampliar o poder de dissuasão. Mas ele é cético em relação a concertações
multilaterais e suas políticas protecionistas tendem a minar alianças. Eventos
que fogem ao controle dos EUA podem levá-lo a reações improvisadas e soluções
heterodoxas, com consequências imprevisíveis.
Trump e seus assessores querem pôr fim à
guerra na Ucrânia para se concentrar na ameaça da China. Mas na esfera
atlântica ele não pode se permitir parecer fraco e precisa mostrar que seu
plano – sabe-se lá qual – é melhor que o de Joe Biden. Mas como advertiu o
ex-chanceler ucraniano Dmytro Kuleba: “Ele deveria se dar conta de que a
estratégia (de Biden) não está falhando porque é fundamentalmente falha,
mas porque nunca foi plenamente implementada. Meias medidas e meia resolução
levaram a meios resultados”.
Putin, como Hitler, é um imperialista
ressentido do Ocidente e dispõe de populações de etnia russa em antigos
satélites soviéticos prontas a promoverem conflito e subversão. Qualquer
solução temporária será só uma pausa até o próximo conflito. Se triunfar na
Ucrânia, a lista de desafios ao Ocidente não será alterada, mas será enfrentada
de uma posição mais fraca. Mesmo que uma paz plenamente justa – a restauração
completa da soberania ucraniana – se mostre impraticável, a paz possível deve
ser negociada de uma posição de força.
Em 1938, as democracias liberais acreditaram
que apaziguar um ditador imperialista traria a paz. Mas isso só mostrou
fraqueza e encorajou novas agressões. Se repetirem o erro, elas só ficarão mais
fracas e mais pobres; e seus inimigos, mais fortes e impetuosos.
‘Ressignificando’ Janja
O Estado de S. Paulo
Mulher de Lula queria ‘ressignificar’ o papel
de primeira-dama, e está conseguindo
Assim que Lula da Silva, seu marido, ganhou a
eleição presidencial em 2022, Rosângela da Silva, a “Janja”, declarou que
pretendia “ressignificar o conteúdo do que é ser uma primeira-dama”. No dialeto
afetado dos cursos de Humanas, “ressignificar” costuma significar um cavalo de
pau hermenêutico para fazer terra arrasada da tradição. E a socióloga Janja
está cumprindo o que prometeu: primeiras-damas, em geral, passam quase
despercebidas, graças à discrição que normalmente as caracteriza; já a mulher
de Lula decidiu que ser primeira-dama é causar confusão, intrometer-se em
questões de Estado e xingar desafetos estrangeiros.
O último episódio da “ressignificação” da
função de primeira-dama ocorreu há alguns dias, quando Janja, em plena reunião
do G-20, achou que era o caso de fazer uma declaração ofendendo gratuitamente o
empresário Elon Musk, que em breve ocupará cargo relevante no gabinete do
presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump. Janja ainda teve o cuidado
de ofender em inglês, língua de Musk. Obrigou um constrangido Lula a vir a
público dizer que “não temos que xingar ninguém”. Isso deveria ser óbvio, mas a
“ressignificação” está aí para desmoralizar o óbvio.
Para sorte do Brasil, a primeira-dama
desbocada não provocou danos ao País, somente a si mesma. Sua má-criação se
tornou apenas uma constrangedora nota de rodapé num evento em que a diplomacia
brasileira se saiu bastante bem, consideradas as circunstâncias. Do episódio,
ficou apenas o receio de que a sra. Lula da Silva ainda pode causar muitos
problemas ao marido e ao Brasil nos dois anos que restam de mandato, já que, ao
que tudo indica, ela está convencida de que seu papel é criar problemas.
Prova disso é a desenvoltura com que Janja se
intromete em diversas questões que não lhe dizem respeito, como a taxação de
produtos chineses importados, faz cobranças públicas a ministros, como no caso
do titular de Portos e Aeroportos, que levou um pito dela depois que um
cachorro morreu num voo, e interfere nas mensagens e campanhas da Secretaria de
Comunicação da Presidência. É comum vê-la em reuniões ministeriais e consta em
Brasília que nenhum ministro se considera a salvo de sua influência. Em suas próprias
palavras, Janja, em termos de hierarquia, se considera em pé de igualdade com
Lula. Esquece-se a primeira-dama que foi Lula, e não ela, quem teve mais de 50
milhões de votos, e que, se não fosse mulher de Lula, ela seria apenas uma
entre milhões de pessoas desconhecidas que se dedicam a falar bobagens
inconsequentes nas redes sociais.
Por fim, na ânsia de se mostrar uma mulher
independente, Janja na verdade acaba desmoralizando a luta das mulheres por
respeito e dignidade. Xingar desafetos e imiscuir-se em assuntos de governo sem
ter cargo ou mandato para tal são atitudes de quem não entendeu que seu poder,
se existe, não deriva da presunção de que, por ser mulher do chefe, pode tudo.
Clima e fome desafiam a governança global
Correio Braziliense
São sinais claros de que também é
indispensável a adoção o quanto antes de medidas que, de fato, favoreçam uma
cooperação estreita entre os países para o enfrentamento desses desafios
globais
Duas crises estiveram na pauta das mais
importantes mesas de negociação internacional dos últimos dias: a dos extremos
climáticos e a da escassez de comida. Ambas urgentes e, pelo desenrolar dos
encontros, cada vez mais desafiantes. Impasses, frustrações, sensação de falsas
promessas e até acusações de humilhação fizeram parte do roteiro da Cúpula do
G20 no Rio de Janeiro ou do script da 29ª edição da Conferência do Clima, a
COP29, no Azerbaijão. São sinais claros de que também é indispensável a adoção o
quanto antes de medidas que, de fato, favoreçam uma cooperação estreita entre
os países para o enfrentamento desses desafios globais.
Há de se considerar que a Cúpula do G20 deste
ano avança com a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, proposta
pelo Brasil, que presidiu o grupo até semana passada. A inédita concentração de
esforços para erradicar a fome no mundo até 2030 tem largada forte, com 148
membros fundadores, sendo mais de 80 países e bancos internacionais. Existe,
porém, o desafio de manter os principais atores engajados a longo prazo, já que
pobreza e fome não afetam de forma significativa boa parte dos países que integram
o bloco das maiores economias do mundo.
As Nações Unidas estimam que, em 2023, cerca
de 733 milhões de pessoas passaram fome no planeta — o equivalente a uma em
cada 11. Boa parte delas está na África: 58% da população enfrenta insegurança
alimentar moderada ou grave no continente mais pobre do mundo. Nesse cenário,
fica impossível cumprir a meta firmada à beira do mar carioca sem o
fortalecimento do multilateralismo — ainda que este também esteja em crise.
No caso da COP29, a questão é mais curiosa,
considerando que PIB alto não afugenta os extremos climáticos. A conferência
realizada no ano que deve ser a mais quente da história é também uma das mais
tensas e controversas desde o primeiro encontro, em 1995, na Alemanha. Ao
Correio, Claudio Angelo, chefe de Política Internacional do Observatório do
Clima, disse que o rascunho apresentado sobre o novo fundo para financiar
medidas de mitigação e adaptação climáticas é uma piada. O negociador do
Panamá, Juan Carlos Monterrey, foi além. Segundo ele, "o valor oferecido
pelos países desenvolvidos é uma cusparada na cara de nações vulneráveis".
Não à toa, representantes desses países
deixaram, ontem, as salas de negociações da COP alegando estarem sendo
insultados e ignorados. Há discordâncias, herdadas de conferências passadas,
sobre o valor a ser pago e quem deverá pagar a conta — os países mais ricos,
principais emissores de gases de efeito estufa, recusam-se a serem os únicos.
Mas é certo que a postura tende a prejudicar justamente as nações que mais
precisam de ajuda para combater, além das catástrofes naturais, as limitações
socioeconômicas.
Desigualdade social, meio ambiente e
protecionismo são questões que tendem a aumentar as tensões internacionais.
Entram nesse caldeirão a inabilidade das organizações multilaterais, como a
ONU, de lidar com as crises da atualidade e a pressão por novas cooperações
internacionais que sigam um princípio de equidade tributária. Todos esses
impasses na governança global têm ainda como efeito o enfraquecimento da
diplomacia e o avanço do radicalismo. Mais uma ameaça que não poupa ricos nem
pobres.
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