Folha de S. Paulo
A capacidade de construir coalizão
multiétnica com raízes populares deu força a Trump
Fosse outro o adversário de Kamala Harris,
o resultado das eleições americanas não teria causado surpresa nem comoção.
Afinal, o desfecho da disputa seguiu o padrão verificado em outros países nos
quais a derrota dos incumbentes —ou dos candidatos por eles indicados— vai se
tornando regra. Nos Estados
Unidos, pesava contra a democrata a avaliação negativa do presidente
Biden, o mau humor generalizado com a economia e o pessimismo da maioria com a
sua própria situação: receita conhecida para uma vitória oposicionista.
Só que o vencedor foi Donald Trump, um homem sem qualidades, ameaça à democracia e, pior, aos princípios básicos da convivência civilizada. Assim, a extensão dos efeitos negativos de seu regresso à Casa Branca —bem como as razões de seu êxito— têm produzido uma enxurrada de análises no Brasil e pelo mundo afora.
A segunda vitória de Trump derruba também
muitos dos conceitos com os quais analistas políticos têm procurado entender os
percalços das democracias contemporâneas sob a contestação dos populismos. Esse
o tema da excelente coluna do professor Marcus André Melo, publicada
na Folha no dia 11/11 —leitura mais que recomendada.
Uma das verdades estabelecidas a cair por
terra foi a que associa a força do populismo de direita, do qual o novo
presidente americano é militante de longa data, ao ressentimento dos perdedores
da globalização —nos EUA, os trabalhadores brancos de regiões e empresas
afetadas pela concorrência de produtos importados e que se sentem ainda
ameaçados pela oferta de mão de obra mais barata, alimentada pela imigração.
De fato, a classe operária branca foi firme
andaime para a ascensão de Trump, dando feição popular ao partido
tradicionalmente associado às elites econômicas.
Mas o apoio dos ressentidos brancos pobres
está longe de dar conta não só do que as urnas escancararam da semana passada,
como do que já tinha sido perceptível na rodada eleitoral de 2020. Essa a tese
de Patrick Ruffini, no livro "Party of the people" (Partido do Povo),
publicado em 2023, antes, portanto, do início da disputa presidencial. Nele, o
pesquisador de opinião pública alinhado aos republicanos mostra, com pencas de
dados, a erosão da afinidade com o Partido
Democrata daqueles votantes cujas vidas melhoraram, levando-os
a aportar na legenda adversária. São hispânicos, asiáticos e, em menor medida,
negros a transformar o velho partido do clã Bush numa coalizão populista
multirracial com robusta viabilidade eleitoral.
Longe de ser fenômeno efêmero, a mudança
parece expressar o realinhamento do eleitorado em torno de diferenças
educacionais e ideológicas —o povo com escolaridade média e valores
conservadores contra as elites portadoras de diploma universitário e valores
liberais. Essas diferenças se sobreporiam às semelhanças étnicas, raciais ou de
gênero, mobilizadas pelos movimentos identitários, mais ligados aos Democratas.
A capacidade de construir frentes
reacionárias policlassistas e multiétnicas com fundas raízes populares não é,
porém, monopólio trumpista. Com perfis próprios em cada país, parece ser traço
comum aos populismos. Daí sua força política e seu potencial destrutivo das
instituições liberal-democráticas.
Um comentário:
Tem coisas que só o carma coletivo explica,rs.
Postar um comentário