Toffoli foi sensato em voto sobre Marco Civil
O Globo
Ministro criou regra razoável ao declarar
inconstitucional o artigo 19 e impor dever de cuidado às plataformas digitais
O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi certeiro na essência de seu voto sobre o Marco Civil da Internet. Declarou inconstitucional o artigo 19, que assegura às plataformas digitais imunidade por danos causados pelo conteúdo que veiculam até o momento em que a Justiça decida o contrário. Só que o Judiciário é lento demais. A maioria fica indefesa. Muitos não contam com recursos para contratar advogado. Mesmo os que têm condições dependem da Justiça morosa. Quando a decisão é tomada e enviada às plataformas, o dano se tornou irreversível. A postagem é retirada, mas o criminoso já atingiu seu objetivo.
“Não se pode admitir que a importância dos
novos serviços digitais para a economia continue a mascarar (…) visões
preconceituosas ou discriminatórias — e, não raro, finalidades espúrias”,
escreveu. Em seu voto, Toffoli restaurou um princípio constitucional básico:
empresas e cidadãos são responsáveis por danos que causem. Estipulou que, no
caso das plataformas digitais, tal responsabilidade passa a valer não a partir
de uma ordem de juiz, mas do momento em que sejam notificadas pelos atingidos
(sistema notice and take down). Para alguns crimes específicos, instaurou um
dever de cuidado, pelo qual a responsabilidade existe desde o momento em que o
dano começa a ser causado (caso de racismo, homofobia, incitação a suicídio ou
mutilação, linchamento virtual, violência contra mulheres, crianças ou
vulneráveis, infrações sanitárias, conspirações terroristas ou atentados à
democracia).
Críticos sustentam que o STF invade
prerrogativas do Congresso. É verdade que o Legislativo já deveria ter votado o
PL das Redes Sociais, que estabelece dever de cuidado semelhante. Mas a crítica
nesse caso não tem sentido, já que cabe ao STF dirimir questões
constitucionais, e a Constituição determina que todos são responsáveis por
danos que causem. Ao garantir imunidade às plataformas, o artigo 19 ignora que
elas não são um canal passivo. Ao contrário, respondem, por meio de seus
algoritmos, pelo alcance dos conteúdos criminosos — e ganham mais com
publicidade quando esse alcance é maior. Como toda empresa de comunicação,
devem ter responsabilidades compatíveis com o serviço que prestam. O voto de
Toffoli acerta ao isentar do dever de cuidado canais passivos, como correio
eletrônico, aplicativos de mensagem ou videoconferência.
Outros críticos temem que o dever de cuidado
levará a um ambiente de censura, pois, temerosas de arcar com indenizações, as
plataformas tirariam previamente do ar tudo o que possa ensejar reclamação.
Trata-se de uma falácia. A legislação da União Europeia já impõe esse dever, e
não se tem notícia de que os europeus vivam sob censura digital. Ainda que
algumas empresas adotem políticas mais restritivas, num mercado competitivo
outras mais liberais atenderão aos insatisfeitos.
É um contrassenso acreditar que defender a
aplicação da lei no mundo on-line ameace a liberdade de expressão. Nesse ponto,
a argumentação de Toffoli é certeira. Ele próprio abriu espaço à discussão dos
crimes sujeitos ao dever de cuidado. O voto do ministro Luiz Fux, relator do
segundo processo sobre o Marco Civil, poderá contribuir. Mas a maioria da Corte
deveria desde já seguir o espírito do voto de Toffoli, para a internet deixar
de ser terra sem lei.
Jovens que não trabalham nem estudam
continuam a ser desafio
O Globo
Apesar da queda constatada pelo IBGE, um a
cada cinco brasileiros na faixa etária ainda pertence ao grupo
É um alento a constatação de que a quantidade
de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham,
categoria conhecida como “nem-nem”, caiu no ano passado para 10,3 milhões,
menor número da série histórica iniciada em 2012, segundo dados divulgados
pelo IBGE na
última quarta-feira. Mas a boa notícia não deve encobrir a realidade: 21,2% dos
jovens nessa faixa etária permanecem longe das salas de aula e do mercado de
trabalho (a média nos países da OCDE foi de 13,8% em 2023).
O aquecimento do mercado de trabalho, o
retorno às escolas depois do isolamento imposto pelo coronavírus e a menor
participação de jovens na composição da população brasileira contribuíram para
o resultado, segundo o IBGE. Um dos desafios agora é diminuir ainda mais a
proporção dos “nem-nem”, que desde o início da pesquisa fica no patamar dos 20%
(em 2020, na pandemia, atingiu o pico de 28,3%). O cenário de hoje está próximo
do registrado entre 2012 e 2014.
A despeito da queda, nas entrelinhas da
pesquisa há dados que ensejam preocupação. Nos 10% de domicílios com menor
renda, praticamente metade dos jovens (49,3%) continua sem estudar nem
trabalhar — quase 7,5 vezes a proporção entre os 10% mais ricos (6,6%). A
diferença aumentou em relação a 2022, quando era de sete vezes.
Outro dado inquietante está ligado a gênero e
cor. Dos 10,3 milhões de jovens fora da escola e do mercado de trabalho no ano
passado, 6,7 milhões (65%) eram mulheres. Pretas ou pardas somavam 4,65 milhões
entre os “nem-nem”, enquanto as brancas representavam 1,95 milhão. De acordo
com o IBGE, a predominância feminina não é singularidade brasileira. Também é
observada nos países ricos.
Coordenadores da pesquisa dizem que as
mulheres tendem a ser maioria entre os “nem-nem” devido a fatores culturais e
estruturais. Os afazeres domésticos e o cuidado com parentes dificultam a
permanência na escola e no emprego. “Isso as impede de ir em busca de uma
colocação no mercado de trabalho devido à falta de rede de apoio, além de
oferta adequada de creches públicas, asilos ou centros de lazer para pessoas
idosas”, diz o IBGE.
A situação não mudará enquanto não houver
políticas públicas voltadas para os grupos mais vulneráveis. Os dados mostram
que a parcela de jovens fora da escola ou do mercado de trabalho está
concentrada entre os mais pobres e entre as mulheres. Tais grupos devem receber
maior atenção e apoio. Muitas jovens engravidam cedo e não têm com quem deixar
os filhos. É dever do Estado proporcionar condições para que exerçam sua
cidadania. Oferecer creches seria um começo.
É improvável que jovens estejam fora da
escola ou do trabalho porque queiram. Certamente têm outras obrigações. É uma
situação cruel. Se não estudam nem trabalham, as oportunidades de gerar renda e
melhorar de vida se estreitam. Não é bom para eles, não é bom para o país.
Perde-se um contingente valioso. É louvável que o Brasil tenha reduzido os
“nem-nem”, mas a situação ainda está longe de aceitável.
Privilegiados reagem até a um pacote fiscal
tímido
Folha de S. Paulo
Marinha faz vídeo constrangedor e sistema de
Justiça mais caro do mundo se insurge contra mera revisão dos supersalários
Mesmo medidas tímidas de contenção de gastos
públicos, como as anunciadas neste fim de ano pelo governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
são capazes de provocar reações ruidosas de setores que desfrutam de benesses
do Estado e acesso a gabinetes de Brasília.
Assim se viu nos últimos dias.
O caso mais constrangedor ocorreu no meio
militar, ao qual o pacote reservou uma suave mudança nas generosas regras
de aposentadoria,
entre outras propostas ainda menos impactantes.
Mas foi o bastante para que a Marinha
divulgasse um vídeo publicitário que contrasta imagens de fardados em
atividades árduas e de civis em momentos idílicos de lazer. A peça tragicômica
se encerra com a mensagem "Privilégios? Vem pra Marinha".
Militares
inativos custaram R$ 50 bilhões aos contribuintes brasileiros
no ano passado. Cada um recebeu, em média, R$ 158,8 mil mensais dos cofres do
Tesouro, ante R$ 9.400 entre os segurados do INSS,
que atende à ampla maioria da população.
Propõe-se agora apenas fixar idade mínima de
55 anos para as aposentadorias nas Forças
Armadas —para os civis, são 65. Hoje, exigem-se 35 anos de
serviço, o que, na hipótese de uma carreira iniciada aos 18, significa o
direito de pendurar a farda aos 53. A choradeira da corporação ainda serviu
para esticar o prazo de transição para a adoção plena da regra, de 2030 para
2032.
Mais acintoso é o lobby das carreiras da
magistratura e do Ministério
Público contra um dispositivo de proposta de emenda
constitucional que pretende restringir os chamados supersalários —vale dizer, o
acúmulo de auxílios e abonos extrassalariais que contribuem para que o sistema
de Justiça brasileiro seja o mais caro de que há notícia no mundo.
O texto enviado ao Congresso não faz mais do
que prever uma
lei para disciplinar tais penduricalhos, hoje graciosamente
autoconcedidos por tribunais Brasil afora. Graças a eles, cada juiz custa em
média R$ 68,1 mil mensais ao erário, ante um teto salarial de R$ 44 mil no
serviço público.
A mera perspectiva de ver o tema em debate
despertou manifestações públicas de cortes e entidades de classe, que incluíram
até vaticínios
catastrofistas de aposentadorias em massa caso os mimos sejam
limitados.
Sabe-se, no entanto, que as pressões mais
eficazes têm lugar nos salões da Câmara dos
Deputados e do Senado,
no contato direto com parlamentares interessados em boas relações com o
Judiciário —e eles próprios preocupados em proteger suas emendas orçamentárias
dos esforços de ajuste das contas públicas.
Lula, infelizmente, desperdiçou a
oportunidade de início de mandato para reformas mais ambiciosas do Estado
brasileiro. Forçado pelas circunstâncias, tenta agora mitigar o impacto da
elevação irresponsável de gastos que promoveu. Nada disso, é claro, torna menos
corretas providências para a redução de privilégios. É menos que o mínimo.
O virtual destino de Tuvalu
Folha de S. Paulo
Para enfrentar crise do clima, país na
Oceania cria cópia digital de suas ilhas e até mesmo uma nova definição de
Estado
Mais de 14 mil quilômetros separam São Paulo de
Tuvalu, nação insular do Pacífico. Seu nome significa "grupo de
oito", alusão às ilhas originalmente habitadas, que nas próximas décadas
terminarão em boa parte debaixo d’água.
As terras que emergem do atol têm no máximo 2
m de altitude. Se a comunidade internacional lograr manter o aquecimento global
em 1,5ºC, o que se afigura improvável, o nível do mar no planeta subirá até 55
cm no próximo século —o bastante
para tornar Tuvalu inabitável, com a perda de território e
infraestrutura.
Outras dificuldades atingirão os 26 km² do
país. Ressacas e tufões castigarão quem ficar. Plantar alimentos poderá
tornar-se inviável, com a salinização da terra. Qualquer diminuição de chuvas,
única fonte de água doce, pode colapsar o abastecimento.
Não é, por certo, o único país insular em
risco. Os mesmos vagalhões baterão às praias de Tonga, Seychelles, Ilhas
Marshall, para não mencionar nações portentosas como Filipinas,
que tem 117 milhões de habitantes e é considerada a mais ameaçada.
Não há escapatória para os cerca de 12 mil
tuvaluanos. Só para construir diques e elevar edificações, calcula-se que seria
necessário US$ 1 bilhão, algo em torno de 20 vezes o PIB do
arquipélago.
Opções mais radicais de sobrevivência estão
sob exame, como realocar toda a população em outro país da Oceania,
como Nova Zelândia ou Austrália.
Outra medida vai ainda mais longe, para o
metaverso: criar uma nação virtual. A fim de manter o vínculo de seus cidadãos
com o território, onde quer que estejam, o governo passou a digitalizar toda a
paisagem loca.
Demais povos sem território já sobreviveram,
no passado, mantendo unidade só no domínio da cultura. Tuvalu, ao que se
prenuncia, será pioneiro em preservar a terra comum de sua história por meio de
uma cópia digital.
A iniciativa inclui ainda a questão da
soberania. Em 2023, a nação mudou o conceito de Estado na sua Constituição,
indicando que ele "permanecerá perpetuamente no futuro", mesmo após
perda do território físico. Outros países insulares apoiam essa redefinição. Na
legislação internacional, entretanto, um Estado consiste de um território
definido com população permanente.
Na prática, a crise existencial tuvaluana evidencia que, a tantas populações pobres do globo, falta um compromisso real de nações desenvolvidas com o financiamento da adaptação à crise do clima, coisa que não se viu na COP29 de Baku e dificilmente sobrevirá na COP30 de Belém.
Disfuncional, ilegal e impróprio
O Estado de S. Paulo
Apesar de boa medida, freio do STF ao mau uso
das emendas parlamentares pelo Congresso reafirma distúrbio institucional com
ares de normalidade que pode significar riscos à democracia
Ao restabelecerem o pagamento das emendas
parlamentares definidas no Congresso, fixando ressalvas e critérios exigentes
para a liberação dos bilionários recursos orçamentários da União, o ministro
Flávio Dino e todos os seus pares do Supremo Tribunal Federal (STF) corrigiram
uma distorção institucional. Frearam, pelo menos até resposta em contrário do
Congresso, o apetite sem controle e sem transparência que avança sobre o
Orçamento público, uma espécie de poder paralelo à margem de qualquer
escrutínio republicano, o que, nos últimos anos, deu à cúpula do Legislativo
força política e poder discricionário sem precedentes na história. Noves fora a
correção da medida, relatada por Dino – claramente o principal representante do
presidente Lula da Silva no STF, algo por si só uma aberração –, a Corte
mostrou também que, no País das anomalias institucionais, distorção se corrige
com outra distorção.
O episódio reafirmou a disfuncionalidade com
ares de normalidade: um Executivo que transfere para o Judiciário o
enfrentamento político com o Legislativo; um Judiciário que é simultaneamente
tribunal constitucional, legislador e fiador da governabilidade; e um
Legislativo que, tendo descoberto nas artimanhas do Orçamento sua emancipação
em relação ao Executivo, adota o tensionamento da convivência entre os Poderes
como arma de negociação. As digitais desse distúrbio institucional aparecem
também num governo que gere mal sua desarrumada base política e não sabe o que
fazer com a nova dinâmica do chamado presidencialismo de coalizão; um STF que
se empolgou em demasia com a condição de “vanguarda iluminista” (na definição
do ministro Luís Roberto Barroso) e de “bastião da democracia” (na convicção de
Alexandre de Moraes); e um Congresso poderoso e fragmentado, hostil ao governo
e agastado com o ativismo do STF.
O resultado é um sistema disfuncional, ilegal
e impróprio, em que os Poderes passam a exercer prerrogativas não previstas na
Constituição, que extravasam o tradicional sistema de pesos e contrapesos,
desvirtuam o propósito de cada um e geram incerteza e insegurança. Os riscos
impostos à democracia podem até ser distribuídos uniformemente, mas entre a
malandragem de um Congresso insaciável e as metamorfoses de um Lula da Silva
concentrado na sobrevivência política, parece inevitável um destaque especial ao
STF – a quem caberia zelar pelos devidos preceitos constitucionais. Seus
ministros, ao contrário, parecem confortáveis no papel de conselheiros
extraconstitucionais do Estado, que atuam como uma espécie de notáveis da
República, convocados a promover a resolução dos conflitos entre os Poderes,
negociar a implementação das próprias decisões e supostamente aperfeiçoar
políticas públicas, muitas vezes à custa da usurpação de competências.
Atos como o de Flávio Dino em relação às
emendas parlamentares são parte desse conforto misturado com a vaidade. Não foi
o único caso, contudo, em que o governo se escorou no STF como seu braço de
sustentação política. Em setembro, coube a Dino, monocraticamente, “autorizar”
a abertura de créditos extraordinários que permitiram ao governo combater as
queimadas sem precisar passar pela tarefa de negociar com o Congresso e sem
afrontar o já maltratado arcabouço fiscal. Foi inspirado no mesmo espírito de “inovação”
que o ministro Gilmar Mendes converteu o STF em câmara de conciliação, reunindo
atores políticos e partes litigantes para discutir a Lei do Marco Temporal. Ou
o que dizer do afã legiferante da Corte em temas como a responsabilização das
plataformas digitais – não satisfeitos em decidir ou não sobre a
constitucionalidade de determinados artigos do Marco Civil da Internet, cujo
julgamento foi iniciado em novembro, ministros como Dias Toffoli e Alexandre de
Moraes já se apressaram em sugerir mudanças nas normas em vigor.
Tudo parece normalizado e aceitável para quem
concorda com tais decisões ou acredita nas suas boas intenções, aquelas das
quais o inferno está cheio. Só parece. Convém lembrar-lhes, porém, o risco dos
precedentes. O que hoje é remédio pode, adiante, transformar-se em veneno,
benfazejos de hoje poderão virar agonia amanhã, e a maioria do presente
inevitavelmente será a minoria no futuro.
Presídios de segurança mínima
O Estado de S. Paulo
Nove meses após fuga dos detentos da
penitenciária de Mossoró, o ministro da Justiça não conseguiu entregar a mais
prosaica de suas promessas: erguer muralhas em torno das prisões
O Ministério da Justiça começou o ano
passando por um vexame e termina amargando outro.
Em fevereiro, dois assassinos do Comando
Vermelho promoveram uma fuga rocambolesca do presídio dito de “segurança
máxima” de Mossoró (RN), escalando luminárias na cela, enfiando-se em vãos no
forro e derrubando tapumes improvisados com barras de ferro e alicates catados
ao léu.
Por 45 dias, 500 agentes federais mobilizados
pelo ministro Ricardo Lewandowski, além das Polícias Militares de cinco
Estados, bateram cabeça. Especialistas apontaram falta de coordenação central
nas buscas, abrindo espaço para decisões erráticas e conflitantes dos agentes
em campo, “um ajuntamento de recursos policiais estaduais e federais sem uma
doutrina policial comum clara de busca e captura em cenários adversos”, segundo
disse ao Estadão a professora de segurança pública da Universidade
Federal Fluminense Jacqueline Muniz, para quem “houve sobreposição de meios
onde cada um fazia o que sabia, em uma lógica reativa de pronto-emprego”.
Quando o governo já tinha jogado a toalha e
desmontado o circo, os criminosos acabaram capturados no Pará, a 1,6 mil km de
Mossoró, após um vareio de 50 dias nas equipes de busca.
A fuga, ao que parece, foi improvisada. Já as
condições para ela não foram obra do acaso, mas o resultado acumulado de
décadas de desídia. Há anos 124 das 192 câmeras do presídio estavam
inoperantes. A iluminação apresentava falhas. Em 2023, já na gestão
lulopetista, uma vistoria alertou para os forros vazados que viabilizaram a
fuga.
Para acrescentar insulto à agressão, à época
Lewandowski “justificou”, digamos assim, a fuga, constatando que no carnaval os
guardas costumam ficar mais “relaxados”. De lá para cá, pouco se viu da pasta
sobre medidas como aprimoramento dos sistemas de tecnologia e vigilância dos
presídios ou monitoramento de atividades suspeitas dos agentes penitenciários.
Mas ao menos o óbvio o ministro prometeu: erguer muralhas em torno das prisões.
Nove meses depois, contudo, a “lógica reativa
de pronto-emprego” segue imperando. Segundo reportagem do Estadão, dos
cinco presídios federais, só em Porto Velho as obras saíram do papel, e ainda
assim enfrentam falhas de planejamento, atrasos e prejuízos aos cofres
públicos. Mais da metade do cronograma já deveria estar completa, mas só 8%
foram cumpridos. Foi preciso um aditivo de R$ 1 milhão para corrigir erros do
projeto, mas a empreiteira protesta que o valor é insuficiente e acusa o
governo de ter subestimado custos. O Ministério tenta rescindir o contrato e,
enquanto um e outro batem cabeça, os detentos esperam o carnaval chegar,
seguramente contando com novos apetrechos deixados ao relento nas obras
paradas.
De longe e há tempos a criminalidade é a
maior preocupação dos brasileiros. Mas segurança pública não é o forte das
esquerdas em geral e do PT em particular. Não é só a miopia ideológica atávica
que vê no crime um mero subproduto das “injustiças sociais”, mas incúria pura e
simples.
Quando era ministro da Justiça, Flávio Dino
parecia mais preocupado em investir na sua carreira de influencer, fustigando
bolsonaristas nas redes para cativar o coração do presidente Lula e conquistar,
como conquistou, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Lewandowski, seu
sucessor no Ministério e antecessor no STF, neófito em administração pública e
tarefas executivas de segurança, tem planos grandiosos para integrar as forças
policiais, em tese até pertinentes: para combater o crime organizado é preciso
uma União organizada. Mas, na prática, Lewandowski parece se escudar numa
complexa e incerta tramitação para inscrever seus planos na Constituição como
um salvo-conduto para a inação, como se o Sistema Único de Segurança Pública já
não existisse desde o governo de Michel Temer e não pudesse ser
operacionalizado já. Mas, mesmo se admitindo que o governo consiga entulhar uma
já congestionada Constituição com regras novas em folha, fica a questão: qual a
chance de elas serem eficazes, quando o Ministério não consegue executar sequer
uma tarefa tão prosaica, objetiva e inequívoca quanto erguer um muro?
Propina não é fantasia
O Estado de S. Paulo
Juíza transforma em réus investigados que já
se apresentavam como meras vítimas da Lava Jato
O infortúnio do juiz Sérgio Moro, do
procurador Deltan Dallagnol e do time da Lava Jato, que nos últimos anos levou
à total desmoralização da operação que messianicamente pretendeu salvar o
Brasil da corrupção, resultou num providencial benefício aos investigados:
corruptos confessos passaram a se considerar pobres vítimas do lavajatismo; e
seus atos, uma mera fantasia forjada pelos integrantes da força-tarefa para
destruir reputações e arruinar o País.
Em meados de novembro, sem estardalhaço, a
juíza Rejane Zenir JungBluth Suxberger, da 1.ª Zona Eleitoral de Brasília, deu
um passo importante para corrigir esse desvio maléfico, ao colocar no banco dos
réus o empresário Marcelo Odebrecht, o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, o
ex-diretor de serviços da Petrobras Renato Duque e outros 36 investigados da
antiga Lava Jato. A denúncia teve o sigilo retirado na última semana de
novembro.
Antes conduzido pela 13.ª Vara Federal de
Curitiba, que abrigava a Lava Jato, o caso foi remetido para a Justiça
Eleitoral de Brasília após o Supremo Tribunal Federal reconhecer a sua
competência para analisar ações conexas a crimes eleitorais. O processo foi
atingido também pela anulação das provas do acordo de leniência da Odebrecht,
mas o Ministério Público Federal ofereceu nova denúncia, apontando que, mesmo
com a exclusão de inúmeras provas, a acusação ainda se sustentava.
“Estão presentes os pressupostos processuais
e as condições da ação para o recebimento da denúncia”, afirmou a juíza
Suxberger em seu despacho. Os citados eram acusados de crimes de corrupção,
gestão fraudulenta de instituição financeira, lavagem de ativos e organização
criminosa na construção e ampliação da “Torre de Pituba”, nova sede da
Petrobras em Salvador. O empreendimento teria sido construído em meio a
pagamentos de propinas na casa dos R$ 68 milhões pelas empreiteiras OAS e
Odebrecht a então dirigentes da estatal. Para a juíza, há “indício de
materialidade” dos crimes cometidos.
Eis um bom e claro aviso a quem se fartava
com um suposto salvo-conduto oferecido pela aniquilação moral de Moro,
Dallagnol e demais integrantes da força-tarefa da Lava Jato. Erros e abusos
sabidamente cometidos por eles, afinal, foram usados não só para desqualificar
a operação, como fazer de conta que a corrupção nunca existiu entre as maiores
empreiteiras do País e a Petrobras – a despeito das irrefutáveis provas de
desvios de recursos públicos por meio de contratos fraudulentos e da própria
confissão de muitos nomes envolvidos.
A aceitação da nova denúncia e a consequente reinserção dos investigados à condição de réus, agora na instância competente, podem ajudar a colocar o debate sobre o combate à corrupção nos seus devidos termos. É inadiável o País superar as sequelas deixadas pela Lava Jato, deixar de confundir a agenda anticorrupção com a operação, fazer o caso avançar com respeito ao princípio do devido processo legal e, enfim, escapar do perigo de ver delinquentes confessos posando de vítimas.
Oportunidades para Mercosul-EU
Correio Braziliense
O acordo ainda precisa vencer diversas etapas
antes de ser colocado em prática, mas o trabalho conjunto tem o seu valor, na
medida em que busca reunir condições para se criar uma zona de livre-comércio
que pode beneficiar 750 milhões de pessoas
Após negociação de 25 anos, o Mercosul e a
União Europeia deram um passo relevante em direção à integração econômica. O
acordo anunciado em Montevidéu, com a participação dos chefes de governos dos
países membros sul-americanos e da presidente da Comissão Europeia, ainda
precisa vencer diversas etapas antes de ser colocado em prática. Mas o trabalho
conjunto tem o seu valor, na medida em que busca reunir condições para se criar
uma zona de livre-comércio que pode beneficiar 750 milhões de pessoas, em um
mercado que corresponde a 25% do Produto Interno Bruto Global.
O acordo Mercosul-UE significa, ainda, um
relevante avanço no multilateralismo. Em um contexto no qual a maior economia
mundial, sob a liderança do presidente eleito Donald Trump, pretende avançar
com medidas protecionistas, o estreitamento comercial entre os dois blocos
econômicos representa uma alternativa estratégica. Trata-se, em última
instância, de um posicionamento político ante um cenário econômico acirrado.
Como ressaltou a líder europeia Ursula von der Leyen, "em um mundo cada
vez mais conflituoso, demonstramos que democracias podem confiar umas nas
outras. Esse acordo não é apenas uma oportunidade econômica. É uma necessidade
política".
Apesar dos esforços para se chegar a um
entendimento, existem obstáculos reais à implementação do acordo. Uma etapa
crucial ocorrerá no Conselho Europeu. O texto concluído em Montevidéu precisará
ser aprovado por pelo menos 15 dos 27 países que integram o conselho,
correspondendo ao aval de pelo menos 65% da população do bloco econômico, o
equivalente a 310 milhões de habitantes.
Como esperado, a França capitaneia a
resistência à aproximação econômica entre os dois blocos. O Palácio do Eliseu,
novamente, deixou clara a insatisfação com os termos negociados, considerados
inaceitáveis. Na mesma toada crítica se posicionam Polônia e Áustria. Em
compensação, países como Portugal e Espanha saúdam o acordo porque, assim como
a presidência da Comissão Europeia, veem vantagens na abertura de
livre-comércio.
Do lado sul-americano, espera-se que o avanço
do acordo comercial mais complexo negociado no âmbito do Mercosul impulsione o
bloco econômico a um novo patamar. Apesar do temperamento histriônico e da
postura ultraliberal, o presidente da Argentina, Javier Milei, marca um ponto
quando afirma que o Mercosul pode ser comparado a uma "prisão", pois
cláusulas internas impedem os países-membros de negociarem acordos bilaterais.
O presidente uruguaio, Lacalle Pou, queixa-se no mesmo sentido. "A existência
do Mercosul não é contrariada com a flexibilidade do bloco. Sejamos, cresçamos,
não atacamos o espírito fundador. Simplesmente progredimos", defendeu.
O Brasil, que exerceu papel fundamental na criação do Mercosul e foi decisivo no acordo com a UE, tem, nessa nova página, a oportunidade de encontrar uma solução que atenda aos interesses dos países-membros e ao setor produtivo nacional.
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