terça-feira, 10 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Queda da tirania de Assad é razão para celebração

O Globo

Mas futuro da Síria, nas mãos de grupos jihadistas, desperta preocupação e traz incerteza à região

A realidade convulsiva do Oriente Médio ganhou novo capítulo com a queda da ditadura da família Assad, que governou a Síria por mais de 50 anos. O exílio de Bashar al-Assad na Rússia marca o fim do regime tirânico iniciado por seu pai, Hafez. Os dois governaram o país na base da repressão e da tortura, financiados por aliados externos. Somente na década passada, mais de 300 mil morreram numa guerra civil sangrenta que opôs milícias e facções religiosas, em que as forças de Assad chegaram a usar armas químicas contra o próprio povo. Com a vitória dos rebeldes, celebrações pelo fim da era Assad despontaram na capital, Damasco, pelo país e pelo mundo. Mas os casos de tiranias recentes também derrubadas no Oriente Médio — como Saddam Hussein no Iraque ou Muammar Gaddafi na Líbia — são suficientes para despertar preocupação com o futuro.

Não está claro quem ocupará o vácuo de poder, nem se as milícias chegarão a um acordo que estabilize o país com tolerância às minorias que integram a complexa sociedade síria, entre as quais curdos, cristãos e alauitas (ramo do islamismo a que pertence Assad). O presidente americano, Joe Biden, lembrou que os grupos vencedores têm “um histórico sombrio de terrorismo e abuso dos direitos humanos”. A principal força rebelde, conhecida por Hayat Tahrir al-Sham (Comitê pela Libertação do Levante, ou HTS), é uma ex-afiliada do Estado Islâmico e da al-Qaeda que tem tentado se distanciar do passado jihadista. “Estão dizendo as coisas certas agora”, disse Biden. “Mas, à medida que assumam maiores responsabilidades, avaliaremos não apenas as palavras, mas também suas ações.”

O líder do HTS, o sunita Abu Mohammad al-Jolani, diz estar ciente da premência de atrair investimentos para melhorar a vida da população. A ficha corrida do grupo, porém, é cheia de atrocidades. Há casos de massacres, confisco de propriedades e conversões forçadas envolvendo minorias religiosas; desaparecimentos, torturas e estupros em prisões; perseguição e assassinato de jornalistas. É uma questão em aberto se o HTS fará a transição completa de um grupo teológico para uma organização política inclusiva.

A explicação para a queda repentina da ditadura Assad está na conjuntura regional. O regime era apoiado pela Rússia, pelo Irã e pelo seu satélite local mais poderoso, o libanês Hezbollah. Na guerra que estendeu ao Líbano, Israel atacou o Hezbollah de forma implacável, dizimou seu comando e esfacelou seu arsenal. Os rebeldes do HTS, entrincheirados no norte e apoiados pela Turquia, viram uma oportunidade para avançar, enquanto tropas iranianas e do Hezbollah bateram em retirada. A Rússia, envolvida com a guerra na Ucrânia, não tinha força para sustentar Assad. Os rebeldes conquistaram Damasco quase sem resistência depois de tomar Aleppo, Homs e o norte do país.

A queda de Assad é mais uma derrota do Irã. Em 14 meses desde os atentados do Hamas contra Israel, a correlação de forças mudou de forma dramática. Para os americanos, a perda de influência da Rússia no Oriente Médio é bem-vinda, assim como o encolhimento do raio de ação iraniano. As circunstâncias parecem ser favoráveis ao Ocidente, mas tudo dependerá dos desdobramentos das próximas semanas e meses. Para os sírios, o pior que poderá acontecer será trocar uma ditadura cruel em meio a uma guerra civil por um regime islâmico de contornos tirânicos.

Câmeras nas fardas devem estar ligadas nos momentos críticos

O Globo

Uso tem se expandido, mas de nada adianta obrigar policial a usá-las se não funcionarem quando necessário

O uso de câmeras em fardas de policiais está mais disseminado pelo país. É uma boa notícia, uma vez que o equipamento dá transparência às operações, protege os cidadãos de comportamentos truculentos e os próprios agentes da lei de acusações infundadas. Pelo menos dez estados já as adotaram. Mas de nada adianta implantar o sistema se, quando há necessidade de recorrer às imagens, elas não estão disponíveis, seja porque o policial não levou o equipamento, seja porque não o ligou ou o sabotou.

Casos desse tipo têm sido recorrentes. No Rio, onde as câmeras são obrigatórias, PMs acusados de extorquir dinheiro de comerciantes da Baixada Fluminense deixavam o equipamento no quartel ou tentavam quebrá-lo. Numa ocorrência, a imagem ficou comprometida, mas o áudio continuou gravando. Um PM disse não levar o aparelho quando cometia crimes. Depois disso, o governo anunciou que faria mudanças no sistema e puniria quem tentasse sabotá-lo. Também no Rio, policiais não usavam as câmeras no momento em que uma mulher foi baleada em troca de tiros com bandidos.

Em São Paulo, imagens das câmeras do policial que jogou um homem do alto da ponte e dos agentes envolvidos na morte de um estudante com um tiro à queima-roupa estão sob análise. Há lacunas para investigar outros casos. Levantamento da Defensoria Pública mostra que, entre julho e novembro, de 457 solicitações de imagem, 221 não obtiveram resposta. Não se sabe se os agentes não usavam as câmeras ou se elas não gravaram por outro motivo.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), faz bem em recuar na resistência ao uso de câmeras pelos PMs. Hesitante no início do governo, chegou a falar em interromper o programa, mas decidiu continuá-lo. Diante de críticas às novas câmeras que permitem aos policiais ligar e desligar, Tarcísio informou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que elas poderão ser acionadas remotamente. Ontem o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, determinou que as câmeras sejam obrigatórias e que a gravação seja ininterrupta até ser comprovada a eficiência do modelo alternativo.

O protocolo federal exige que elas fiquem ligadas ininterruptamente em casos específicos, como abordagens, policiamento preventivo e ostensivo, episódios que envolvam confronto ou uso da força física. Estados que recebem financiamento para comprar câmeras têm de seguir as normas.

As secretarias de Segurança precisam exigir dos agentes que levem as câmeras às ruas e as mantenham ligadas. Estudos comprovam que contribuem para reduzir a letalidade policial, além de proteger os próprios policiais, como revelou reportagem do Fantástico. Muitas vezes as imagens são fundamentais para auxiliar na investigação de casos complexos. Apesar dos benefícios, nenhum estado é obrigado a adotar as câmeras — embora devessem ser. Para os que adotam, não faz sentido investir para comprá-las, treinar pessoal e armazenar vídeo se elas funcionam ocasionalmente. A falta de imagens deveria ser exceção, não a regra.

Milei tem vitórias no primeiro ano, mas crescimento é desafio

Valor Econômico

O apoio popular a suas iniciativas e a rejeição aos peronistas que lhe entregaram uma herança maldita são a chave de seu êxito político até agora

O presidente da Argentina, Javier Milei, completa hoje um ano de governo após uma série impressionante de avanços no processo de estabilização da economia. Esses avanços ainda não conseguiram gerar crescimento econômico que dê alento àqueles que sofreram com os custos sociais elevadíssimos do ajuste. Os argentinos continuam acreditando e apoiando Milei, mas os desafios para o seu segundo ano de mandato, econômicos e políticos, serão grandes.

Qualificado de aventureiro exótico e inábil, Milei sobrevive aos estereótipos que ajudou a criar e conseguiu, sem abandonar seu estilo agressivo, vitórias em um Congresso onde seu partido é minoria inexpressiva. O apoio popular a suas iniciativas e a rejeição aos peronistas que lhe entregaram uma herança maldita são a chave de seu êxito político até agora.

A Argentina se comportou por décadas como um viciado em políticas econômicas de curto prazo, marcadas por déficits fiscais. Nunca conseguiu debelar uma crônica inflação alta, que levou-a a sucessivas fugas do peso, feitas pelo próprios argentinos, enorme endividamento e calotes sucessivos.

Sem opções de ajuste gradual diante da gravidade da crise argentina, Milei executou talvez o mais agressivo programa de ajuste fiscal de um país em tempos de paz. Gerou desde o início superávit primário, por meio de corte de gasto público (como os numerosos subsídios) e da não correção monetária, deixando que a inflação corroesse despesas sociais, como as aposentadorias. Após uma disparada inicial, a inflação mensal começou a cair, passando de mais de 25% em janeiro para 2,8% em novembro. Ao mesmo tempo, iniciou um processo de desregulamentação de uma das economias mais burocratizadas do mundo.

Esse programa de ajuste acelerado resultou em fortíssima recessão, com previsão de queda do PIB de cerca de 3,5% neste ano e disparada da pobreza, que no primeiro semestre atingiu 52,9% dos argentinos, um salto de 11,2 pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023, segundo o Indec.

Apesar da terapia dolorosa, a população continua apoiando Milei, possivelmente percebendo no seu programa uma tentativa séria de normalizar a economia, e não apenas de aplicar remendos temporários. Segundo pesquisa do instituto Poliarquia, divulgada ontem pelo jornal “La Nación”, 56% apoiam o seu governo, contra 43% que desaprovam. Houve uma queda em relação aos quase 70% de aprovação do início do mandato, mas ainda assim é um nível surpreendente após um ano inteiro de sangue, suor e lágrimas.

Em seu segundo ano de governo, o principal desafio econômico de Milei é gerar crescimento. Há sinais de melhora na atividade econômica, após quedas nos três primeiros trimestres. E muito otimismo com 2025. O Banco Mundial e o FMI preveem crescimento de 5%, e alguns analistas locais falam em até 6%. Mais cautelosa, a OCDE prevê alta de 3,6%, o que apenas compensaria a queda deste ano.

O principal entrave à retomada do crescimento é o controle de câmbio. As medidas destinadas a proteger a moeda, adotadas pelo governo anterior, inibem a entrada de capital estrangeiro, pois implicam restrições a sua eventual saída. O governo teme que o fim das medidas de controle de câmbio destrave uma demanda represada por dólares, o que poderia gerar um “overshooting” do dólar e elevar novamente a inflação. Isso seria administrável se o Banco Central tivesse um estoque adequado de reservas internacionais, mas analistas estimam que as reservas líquidas ainda são negativas. Se ocorrer, a retirada das medidas de controle cambial possivelmente fique para depois das eleições legislativas de outubro.

Além do controle de câmbio, um problema herdado, o governo Milei se enfiou em uma armadilha que ele mesmo criou, ao deixar o peso se valorizar. A flutuação de 2% ao mês ainda é inferior à inflação corrente, e essa sobrevalorização da moeda traz uma série de problemas para a economia. Ao contrário do início do ano, quando a Argentina estava barata, hoje o país está muito caro. O fluxo de turistas estrangeiros desabou. A moeda forte torna ainda os produtos industriais argentinos pouco competitivos, e os importados, baratos. Tudo isso prejudica a conta corrente do país.

Mas, principalmente, o câmbio valorizado trava o investimento. Os investidores sabem que deverá haver uma desvalorização e se retraem. Já o investimento interno também recua, pois o câmbio atual não favorece a produção e não se sabe qual será o câmbio futuro. Essas enormes incertezas impedem a retomada da economia argentina até serem dissipadas.

Politicamente, Milei precisa de um bom resultado nas eleições de outubro. Pesquisas dão sua legenda A Liberdade Avança à frente dos partidos tradicionais, mas para avançar no seu programa de reformas, precisa consolidar uma maioria, o que não é garantido. Muito dependerá da economia. Um crescimento robusto possivelmente lhe renderá uma base de apoio sólida no Congresso. Milei e sua equipe estão prometendo um espetáculo do crescimento em 2025. Se até outubro isso não ocorrer, o presidente será punido nas urnas e terá dificuldades maiores na segunda metade de seu mandato.

Queda da ditadura síria merece celebração cautelosa

Folha de S. Paulo

Saída de Assad ocorre com Irã e Líbano em crise e Putin focado na Ucrânia; futuro depende de complexa rede de interesses

Mais de meio século de ditadura sanguinária e 14 anos de brutal guerra civil na Síria acabaram, como no verso de T.S. Eliot, não com um estrondo, mas com um suspiro.

Ou quase isso, considerado o padrão do conflito, que não foi sem sangue. Contudo a campanha de meros 12 dias liderada por forças contrárias a Bashar al-Assad, herdeiro da dinastia fundada por seu pai, Hafez, varreu o país de norte a sul e tomou Damasco sem esforço no domingo (8).

O ditador embarcou rumo à aliada Moscou com a família antes de as tropas da Organização para a Libertação do Levante (HTS) entrarem na capital do país.

A suavidade relativa da queda reflete a realidade geopolítica alterada desde que russos e turcos estabeleceram um cessar-fogo em 2020, mantendo estáveis não só frentes de batalha, mas territórios delimitados. Cabia a Assad, nesse arranjo, 70% do butim.

O tirano, entretanto, viu a guerra iniciada pelo preposto iraniano Hamas com Israel tornar-se regional, desmantelando dois de seus principais aliados: a própria teocracia de Teerã e seu joguete, o Hezbollah libanês.

Antes, o autocrata russo Vladimir Putin havia invadido a Ucrânia, o que o obrigou a retirar foco das operações na Síria, deixando enfraquecido o aparato que a partir de 2015 virou o jogo em favor do aliado conhecido como o "açougueiro de Damasco".

Essa nova conjuntura cheirou a sangue na água para a Turquia, que apoiou não só seus tradicionais aliados seculares no norte sírio, mas também a HTS, uma confederação de chefetes militares que até 2016 estava sob o comando da rede terrorista Al Qaeda.

Tais credenciais causam arrepios na comunidade internacional, particularmente em Israel, em princípio um vencedor na crise —por ver o rival Irã perder o elo central de coordenação e logística com seus parceiros regionais.

Tel Aviv deixou a cautela para europeus e americanos e abriu uma campanha aérea contra o arsenal de mísseis e armas químicas deixado por Assad, além de invadir a zona desmilitarizada entre a Síria e as Colinas de Golã, anexadas em 1967 do vizinho.

O Estado judeu, com boa justificativa, não quer ver jihadistas armados na sua fronteira.

Apesar disso, em Damasco a transição de poder começou com alguns sinais promissores: ao Exército de Assad foi prometida anistia, e o antigo premiê do regime entregou as chaves do governo sem violência.

Os radicais islâmicos dizem que pretendem partilhar poder, ainda a saber com quem: curdos do nordeste do país são inimigos da vitoriosa Turquia, a fiadora da debacle da ditadura. E ainda está em aberto o destino das estratégicas bases de Putin na região

O histórico recomenda precaução, dada a intrincada arquitetura de interesses cruzados e lealdades mutantes. Mas a perspectiva do fim do conflito que matou mais de 500 mil pessoas e deslocou 12 milhões deve, com a prudência necessária, ser celebrada.

Correios voltam a dar prejuízo bilionário sob gestão petista

Folha de S. Paulo

Com mais de R$ 2 bi no vermelho entre janeiro e setembro, ECT é outro exemplo de má administração de estatais sob Lula

Repete-se no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva o padrão petista de má gestão das estatais. Neste 2024, até outubro, as empresas federais consideradas no cálculo do resultado das contas públicas tiveram déficit primário (excluídos gastos com juros) de R$ 4,45 bilhões —que o governo atribui, em parte, a mais investimentos.

Não parece ser esse o caso dos Correios (ECT), que, segundo se noticia, registraram um prejuízo acima de R$ 2 bilhões nos primeiros nove meses deste ano, após terem fechado 2023 com R$ 600 milhões no vermelho.

Fracassou, infelizmente, a tentativa de privatização da empresa na gestão de Jair Bolsonaro (PL), quando foi preparado um modelo de viabilidade que buscava preservar a natureza pública de certas atividades essenciais, como correspondências, mas repassar para a iniciativa privada as áreas em que há concorrência acirrada.

Entre estas estão entrega de pacotes e soluções logísticas, em que a ECT tem dificuldades de competir com o setor privado. A resistência de grupos de interesse e barreiras ideológicas impediram a operação. O custo, esperado, aparece agora com clareza.

Diante do quadro grave, a estatal adotou recentemente um teto de gastos e busca reduzir encargos de contratos e pessoal. Ainda há um longo caminho a percorrer, dado que se trata do maior empregador entre as estatais federais não financeiras, com cerca de 85 mil funcionários.

Sem decisão firme no sentido de uma melhora de governança e abertura para a iniciativa privada, contudo, será difícil reverter a situação temerária em que a companhia se encontra.

Os problemas não se resumem às empresas controladas pelo Tesouro Nacional. O conjunto de estatais estaduais também registrou deficit primário, de R$ 3,35 bilhões, até outubro.

Ao menos há maior disposição por parte de governadores em avançar na agenda de privatizações, como se observa no caso da Sabesp e de outras empresas do setor de saneamento. No Paraná também foi vendida a Copel, de energia elétrica.

A venda da Eletrobras em 2022 também foi importante. O intervencionismo petista traria mais riscos se a maior geradora e transmissora de energia do país fosse controlada pela União.

Depois de tentativas de fragilizar a Lei das Estatais, de 2016, o governo anunciou nesta segunda (9) três decretos destinados a melhorar a governança das empresas. Qualquer iniciativa nesse sentido será bem-vinda, mas a experiência dos últimos dois anos não autoriza maior otimismo.

Só discurso não basta

O Estado de S. Paulo

Tarcísio dá raro exemplo de humildade ao admitir que, ao valorizar o confronto, pode ter ajudado a agravar a violência policial em SP. Mas não é suficiente: ele precisa demitir Derrite

O governador Tarcísio de Freitas deu um notável exemplo de humildade e espírito público ao admitir que seu discurso de valorização do confronto na área de segurança pública pode ter sido decisivo para o aumento dos casos de violência policial em São Paulo. “Às vezes, cometemos erros. Nosso discurso tem peso e, se erramos a mão no discurso, isso tem peso. Hoje, é fácil reconhecer isso”, disse o governador paulista na sexta-feira passada, durante um simpósio promovido pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Há poucos dias, Tarcísio já havia reconhecido que errou ao não valorizar as evidências positivas do uso das câmeras corporais no fardamento da Polícia Militar (PM) para a segurança da sociedade e dos próprios policiais. No evento do IDP, contudo, ele foi além, extrapolando a dimensão eminentemente técnica que envolve o debate sobre o uso das bodycams para reconhecer sua responsabilidade pessoal pelo problema na condição de maior autoridade do Poder Executivo de São Paulo. E o fez diante da imprensa, de ministros do Supremo Tribunal Federal, do ministro da Justiça e de especialistas em políticas de segurança pública.

De fato, como se constata pelos dados do Sistema Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, o índice de letalidade policial por 100 mil habitantes em São Paulo dobrou desde quando Tarcísio assumiu o governo estadual, saltando de 0,9 para 1,8 entre o início de 2022 e outubro de 2024. Ou seja, há um liame inequívoco entre a política de segurança pública da atual gestão e o aumento de mortes provocadas por intervenção policial no Estado.

Na história recente, não se tem notícia de um mandatário que tenha se prestado a um mea culpa nesse nível como Tarcísio. O que tem prevalecido na política moderna, ao contrário, é a postura arrogante de líderes que se arvoram em senhores da verdade e julgam ser os únicos intérpretes legítimos dos desejos do “povo”. Caminhando na direção diametralmente oposta, o governador paulista, a um só tempo, indicou que não está disposto a brigar com os fatos e, ademais, pretende corrigir os rumos de sua política de segurança pública, que ele mesmo classificou como uma “ferida aberta”.

Esse reposicionamento, ainda segundo Tarcísio, significa “modular o discurso para garantir, de fato, segurança jurídica (à atividade policial), mas também o atendimento às normas e aos procedimentos operacionais, como não permitir o descontrole, como deixar claro que não existe salvo-conduto”. E aqui reside o problema. Aprumar o discurso, não há dúvida, é fundamental. Afinal, como o próprio governador reconheceu, as palavras da autoridade têm peso. Mas só discurso não basta. A disposição de Tarcísio de reavaliar sua gestão da segurança pública tem de se materializar em ações para que disso advenham os resultados benfazejos aos quais ele parece almejar. Na prática, isso significa, em primeiro lugar, demitir imediatamente o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.

A natureza de Derrite, egresso da banda da PM que se orgulha da truculência, é obstáculo intransponível para fazer com que a polícia seja orientada pelo respeito às leis e aos direitos humanos – eixos fundamentais de uma política de segurança pública no Estado Democrático de Direito. Se Tarcísio fez a opção pela civilização ante a barbárie, como as suas virtuosas palavras indicam, ele precisa, necessariamente, de outro secretário de Segurança Pública para auxiliá-lo na missão de recolocar a PM de São Paulo no patamar de uma das mais eficientes e menos letais forças policiais do País. Era assim até pouco tempo atrás – e pode voltar a ser a depender da disposição do governador de traduzir seu discurso em ação.

O histórico de Derrite como mau policial militar, seu desempenho como deputado membro da “bancada da bala” e suas ações e palavras como secretário estadual de Segurança Pública evidenciam que não é ele a pessoa que vai ajudar Tarcísio a substituir por confiança o medo que muitos paulistas passaram a sentir da PM. Ao contrário, a permanência de Derrite no cargo decerto será vista como uma traição inequívoca às suas supostas boas intenções.

O mercado entendeu o pacote fiscal

O Estado de S. Paulo

Lula optou por uma pinguela que lhe permita chegar a 2026 com chance de reeleição. Até lá, o mercado se protegerá com títulos do governo, e os mais pobres estarão à mercê da inflação

Após a péssima recepção do pacote fiscal, o governo passou a investir na construção de uma narrativa muito conveniente para si mesmo. Para a equipe econômica, o mercado não compreendeu o quanto o ajuste é austero, sobretudo para um governo de esquerda cuja maior preocupação é a área social. Sua apresentação, portanto, seria uma vitória do ministro Fernando Haddad, que conseguiu convencer Lula da Silva a fazer o que era o certo a despeito da resistência da maioria do governo.

Prova do alegado vigor do ajuste fiscal é que a Câmara por pouco não aprovou o regime de urgência para acelerar a tramitação dos projetos do pacote por discordar das mudanças nas regras de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio pago a idosos vulneráveis e pessoas com deficiência. Além do rechaço da esquerda, lideranças do Centrão também manifestaram receio sobre o impacto econômico da medida vis-à-vis o desgaste político que ela poderia proporcionar.

Essa versão serve aos propósitos do governo, mas não resiste aos fatos. Sob o ponto de vista político, a má vontade da Câmara com o pacote fiscal nada tem a ver com a pretensa dureza das medidas, mas com a decisão do ministro Flávio Dino, referendada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), de impor regras que dificultam o pagamento de emendas parlamentares.

Aprovar esses projetos seria um passeio caso Dino tivesse se contentado com a proposta que deputados e senadores aprovaram para manter o esquema das emendas como estava. Mas o jogo ainda não acabou e, até o fim do ano, essas e outras propostas pendentes de votação pelo Congresso poderão ser aprovadas a toque de caixa, a depender de negociações que nada têm a ver com o cerne dos projetos.

Sob o ponto de vista econômico, contestar o teor das propostas é ainda mais fácil. Como destacou o pesquisador associado do Insper Marcos Mendes em entrevista ao Estadão, o Ministério da Fazenda nem sequer apresentou as notas técnicas que deram base à anunciada economia com cada projeto, o que enseja dúvidas sobre as premissas utilizadas nas contas. E, a despeito de o arcabouço fiscal ser incapaz de estabilizar a dívida pública, o governo tem tido dificuldade em cumpri-lo à risca.

Aliados alegam haver implicância dos investidores com Lula da Silva. Enquanto eles cobravam mais vigor do pacote fiscal, o IBGE divulgou que o PIB cresceu 0,9% ante o segundo trimestre e 4% na comparação com o terceiro trimestre do ano passado, e que a quantidade de brasileiros abaixo da linha da pobreza caiu de 67,7 milhões para 59 milhões, o menor número desde 2012. São, por óbvio, indicadores a serem celebrados, mas que falam do passado, e não do futuro, horizonte que pauta as análises do mercado. Uma análise mais justa demonstraria que o ano em que a pobreza recuou a níveis historicamente baixos coincidiu com o período em que o mercado apostou todas as suas fichas no País.

Na última sessão de 2023, por exemplo, o Ibovespa fechou o ano em alta de mais de 20%, aos 134 mil pontos, melhor desempenho anual desde 2019; o dólar foi cotado a R$ 4,8322, queda de 8,08% em relação ao fim do ano anterior, quando estava em R$ 5,2780. Àquela época, segundo o Boletim Focus, os investidores acreditavam que a Selic estaria em 9%, o dólar em R$ 5,00 e o IPCA em 3,91% no fim deste ano. Se o mercado errou, não foi por pessimismo. Hoje, a Selic está em 11,25%; a moeda norte-americana, em mais de R$ 6,00; e a inflação, em 4,76% no acumulado em 12 meses até outubro.

Se o governo tem genuíno interesse em melhorar a vida dos mais pobres, deveria fazer sua parte para manter a inflação na meta, o que exigiria rigor com o gasto público e programas sociais focalizados naqueles que mais precisam.

Mas, em vez de mostrar comprometimento com a responsabilidade fiscal, o Executivo optou por preservar o arcabouço fiscal com uma pinguela que lhe permita chegar com chances eleitorais até 2026, único panorama a guiar as ações de Lula da Silva.

O mercado, portanto, entendeu muito bem o significado do pacote e se protegerá da instabilidade gerada pelo governo com títulos públicos do próprio governo, que já rendem mais de 14%. Enquanto isso, os pobres ficarão à mercê da inflação.

O prejuízo do uso político do FGTS

Folha de S. Paulo

Crédito para negativados com recursos do fundo é exemplo de política pública de governos populistas

A receita de como não fazer política pública está disponível no relatório da auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) acerca do Programa de Simplificação do Microcrédito Digital para Empreendedores, o Sim Digital. Criado em 2022, no governo de Jair Bolsonaro, o programa distribuiu aos borbotões créditos de baixo valor usando recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). O selo de má governança, aplicado pela CGU à Caixa, que administra o FGTS, e ao Ministério do Trabalho, à época comandado por Onyx Lorenzoni, apenas atestou o óbvio.

Todos os ingredientes que qualificam um programa eleitoreiro, populista e leviano podem ser encontrados no Sim Digital. A começar pela criação do Fundo Garantidor de Microfinanças (FGM), no qual foram aportados R$ 3 bilhões do FGTS sem sequer consultar o Conselho Curador, colegiado que orienta as decisões de investimento do FGTS e aprova seu orçamento. Não bastasse isso, a farta distribuição de empréstimos foi feita com um dinheiro que nem é público: os recursos são dos trabalhadores celetistas.

Para culminar, o programa foi lançado no ano eleitoral de 2022, primeiro por medida provisória, depois transformada em lei, com a desculpa de incentivar o empreendedorismo no pós-covid, mas com o objetivo real de angariar popularidade para Jair Bolsonaro, então candidato à reeleição.

Inicialmente voltada a microempreendedores individuais, a linha atendeu também pessoas físicas, até mesmo as que integravam o rol de negativados, e a inadimplência por muito pouco não foi total, atingindo a marca de mais de 80%, um índice absolutamente inaceitável para qualquer instituição financeira.

Para o candidato a um novo mandato presidencial, no entanto, era um verdadeiro maná contar com a capilaridade da Caixa para distribuir País afora empréstimos de até R$ 3 mil, com dinheiro que não desfalcaria o erário, para agraciar possíveis eleitores. Para o contribuinte do FGTS restou o prejuízo de R$ 2 bilhões, como constatou a CGU. Somente em julho do ano passado se conseguiu o retorno de um terço do capital emprestado.

Mesmo levando em conta o rendimento historicamente baixo do FGTS – 3% ao ano mais a taxa referencial –, pôr em risco o patrimônio do fundo mantido pelos trabalhadores foi uma atitude perversa. As falhas de governança detectadas pela CGU fizeram o prejuízo ser absorvido pelo patrimônio líquido do Fundo, impactando a distribuição de lucros do FGTS e afetando os rendimentos dos trabalhadores que têm cotas no Fundo.

O SIM Digital foi apenas mais um exemplo de política pública criada para comprar o voto do eleitorado refratário à candidatura de Bolsonaro e/ou garantir o apoio de uma parcela mais simpática ao então presidente, como o auxílio financeiro pago a caminhoneiros e taxistas.

Se há muitos exemplos de medidas que, mesmo bem-intencionadas, não conseguem entregar os resultados esperados, há também aquelas incapazes de esconder seu viés eleitoreiro desde a origem. Mas não basta apurar os prejuízos e apontar os responsáveis. É preciso criar mecanismos que impeçam que erros como esse voltem a se repetir.

Educação contra as desigualdades

Correio Braziliense

Uma virada de página na realidade nacional depende muito da educação aliada aos avanços tecnológicos e de políticas públicas inclusivas voltadas especialmente para os jovens

Os jovens de 15 a 29 anos fora da escola e do mercado de trabalho somaram 10,3 milhões, segundo a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2023, do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE). Os números dos nem-nem, como são chamados, é o menor da série histórica iniciada em 2012. Um olhar mais detalhado no estudo, porém, mostra que as  graves desigualdades que compõem o perfil do Brasil persistem — nos 10% de domicílios com menor renda, 49,3% desses jovens estão nessa condição, por exemplo — e, para serem superadas, são necessários justamente avanços na educação.

preconceito racial é outro elemento da desigualdade. Os brancos que não trabalham nem estudam totalizam 3,05 milhões — homens (1,15 milhão) e mulheres (1,9 milhão). Os pretos e pardos  chegam a 7,04 milhões  — 2,4 milhões de negros e 4,64 milhões de negras. O fato de as mulheres negras serem maioria reflete que elas não avançaram nos estudos nem buscaram inserção no mercado de trabalho devido a outras chagas brasileiras, como a obrigação de, desde muito novas, se dedicarem aos afazeres domésticos ou aos cuidados de filhos e parentes.

geração nem-nem é um dos grandes desafios do poder público. Como levar esses jovens para o banco da escola, uma vez que a realidade que vivenciam é um dos obstáculos e as instituições de ensino não parecem atrativas para muitos deles? Despreparados, eles praticamente não têm condições de acessar as oportunidades do mercado e se limitam à informalidade e às suas restrições. Somam-se a essa paralisia possíveis efeitos na saúde mental e emocional em decorrência da impossibilidade de fazer planos de mudança de vida que são, de fato, viáveis.

O Executivo tem sinalizado preocupação com essa geração. No primeiro semestre deste ano, chegou a discutir soluções para os nem-nem. Entre elas, a de sensibilizar empresas do setor de tecnologia a contratarem os jovens e capacitá-los. O salário seria pago pelo governo federal, tomando como exemplo uma iniciativa anterior voltada aos universitários. A proposta seria inserida no programa Conecta e Capacita, do Ministério da Ciência e Tecnologia, segundo anunciou o jornal O Estado de S. Paulo. 

Mas é preciso mobilizar os setores adequados e capazes de atender às necessidades dos jovens que estão fora da escola e do trabalho. Na última quarta-feira, o CB Fórum, promovido pelo Correio Braziliense e o Serviço de Nacional de de Aprendizagem Comercial (Senac), reuniu autoridades do governo federal e especialistas do setor privado para um debate nesse sentido, a partir do tema Emprego, renda e cidadania: a educação como ferramenta de oportunidade. Os participantes enfatizaram o quanto a educação profissional é essencial para o futuro do trabalho. Criar oportunidades aos jovens, desenvolver programas de formação educacional para empregabilidade e prepará-los para a revolução tecnológica são iniciativas mais do que necessárias. 

O Brasil da pobreza e da extrema pobreza encolheu, respectivamente, 8 milhões e 3,1 milhões, resultado dos benefícios sociais implementados pelo poder público desde o ano passado. É um avanço importante, mas insuficiente. Uma virada de página na realidade nacional depende muito da educação aliada aos  avanços tecnológicos e de políticas públicas inclusivas voltadas especialmente para os jovens. O resultado beneficiará todas as camadas da sociedade, reduzindo as desigualdades, companheiras das injustiças socioeconômicas.

Um comentário:

Mais um amador disse...

Aparentemente, não existe receituário econômico padrão para os países e ainda é cedo para cravar julgamentos definitivos sobre o cenário argentino. Mas não deixa de ser interessante uma comparação entre o analisado no editorial do Valor sobre o governo Milei e o apontado nos outros que tratam das estatais brasileiras e a forma como utilizamos nossos recursos públicos. Enfim.

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