O Estado de S. Paulo
Com a futura assinatura do acordo com a UE, o bloco sul-americano pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional
A reunião presidencial do Mercosul, em
Montevidéu, na semana passada, foi uma das mais importantes desde sua criação
em 1991, em função da decisão dos países do Mercosul e da União Europeia (UE)
de dar por concluída definitivamente a negociação do acordo de parceria em
discussão há 30 anos.
Com a futura assinatura do acordo com a UE, o Mercosul sai do isolamento e pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional. Foi assinado acordo comercial com o Panamá e iniciadas conversações com os Emirados Árabes Unidos.
Na fase mais recente, em 2019, Mercosul e UE
acordaram os principais trade-offs da negociação, como as diversas cotas em
bens agrícolas acertadas entre o Mercosul e a UE. Em 2023/2024, foram propostos
reajustes para preservar a capacidade do Estado para alavancar políticas de
interesse público, como em compras governamentais (foram excluídas todas as
compras do SUS do capítulo de compras, pela importância que possuem para o
acesso a medicamentos, assim como para reforçar o sistema produtivo de
medicamentos). Para equilibrar algumas partes do acordo, foram recusados os
termos do documento adicional ( side letter) sobre comércio e desenvolvimento
sustentável apresentado no início de 2023 pela UE. De forma inédita, foi agora
estabelecido um mecanismo para evitar que medidas unilaterais das partes
prejudiquem o equilíbrio estabelecido no acordo, pois tais medidas têm o
potencial de comprometer concessões comerciais negociadas e desequilibrar o
resultado acordado. Após o “acordo político” de 2019, a UE adotou legislações
que, a depender da forma como sejam implementadas, poderão romper o equilíbrio
do entendimento de 2019 em temas que não foram renegociados na etapa iniciada
em 2023. É o caso, por exemplo, das cotas oferecidas pela UE para a exportação
de carnes do Mercosul, que não foram reabertas na etapa de 2023. Estabeleceu-se
que uma arbitragem definirá se houve esvaziamento dos compromissos assumidos e
em que montante, independentemente de ter havido violação ou não do acordo. Se
for o caso, a parte que restringiu o comércio deve oferecer compensações
comerciais (abertura de mercado) ao outro lado. Se não houver acordo quanto à
compensação, há direito à “retaliação” (suspensão de benefícios previstos no
acordo), no montante definido em arbitragem, com vistas a restabelecer o
equilíbrio do que foi negociado.
Em mais de 30 anos de existência, o Mercosul
negociou acordos comerciais de pouca relevância para a economia nacional
(Egito, Israel, Cingapura e, em breve, entrará em vigor o com a Palestina). O
acordo com a UE, o segundo mercado (16%) para o Brasil, de mais de 800 milhões
de pessoas e 27 países, é de longe o mais importante até aqui e manda uma
mensagem poderosa à comunidade internacional quanto à colaboração ampliada
entre duas regiões que defendem os mesmos valores e interesses, além de
sinalizar o fim do isolamento do Mercosul. Cerca de 90% dos produtos dos dois
países terão tarifa zero no primeiro ano do acordo.
Para o Brasil, a assinatura do acordo reforça
a projeção externa do País e fortalece a política de independência e
equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as
tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com
uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar
o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo
comercial, mas também de um ambicioso acordo de associação estratégica com a
União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do
livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a Efta, a
Associação Europeia de Livre Comércio, integrada por Suíça, Noruega, Islândia e
Liechtenstein.
As transformações na economia e na ordem
global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico tanto
para o Mercosul quanto para a União Europeia. Os dois lados perceberam que esse
acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa
a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais.
Resta agora a assinatura e aprovação dos
acordos de diálogo político, de cooperação e de livre comércio. O comercial,
pelo Conselho da União Europeia e pelos Congressos dos países do Mercosul, e os
demais pelos Parlamentos dos países-membros da UE. A oposição da França, da
Itália e da Polônia ao comercial terá de ser superada pela maioria liderada
pela Alemanha, Portugal e Espanha.
Outra matéria importante incluída na pauta do
Mercosul foi o pedido da Argentina para que seja revista, para dar maior
flexibilidade, a regra da Resolução 32 pela qual as negociações de acordos
comerciais devem ser feitas conjuntamente pelos paísesmembros. Com isso, o
governo argentino espera poder negociar acordo de livre comércio isoladamente
com os EUA, embora pareça pouco provável que os EUA mudem sua política e abram
negociações comerciais com a Argentina. A proposta argentina não tem chance de
ser aceita pelos países do Mercosul (e agora a UE também vai demover Javier
Milei), mas adquire um caráter sensível porque a Argentina coordenará os
trabalhos do Mercosul no primeiro semestre de 2025.
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