DOUTRINA CABRAL
Editorial /Jornal do Commercio (PE)
Editorial /Jornal do Commercio (PE)
A despreocupação e o descuido do poder público com a segurança dos cidadãos estão ultrapassando os limites normais. Depois de permitir que os criminosos se organizassem em máfias que se tornaram, diante da omissão da autoridade, um poder paralelo, depois de deixar que as corporações policiais se degradassem e aviltassem no despreparo, na remuneração inadequada, na indisciplina e até no conluio com as quadrilhas, agora é a vez de justificar o mau comportamento de quem deveria proteger a sociedade. Chegamos à fase de a polícia atirar a esmo contra criminosos e também contra qualquer pessoa esteja em locais de confronto. Isso não é apenas tolerado, mas explicitamente aceito, por ao menos um governador, o do Rio, Sérgio Cabral. Ele declarou que a função da polícia é atirar contra os bandidos. Prender para quê? Atingimos assim a plena democracia: todo cidadão é um fora-da-lei até prova em contrário depois de morto ou ferido.
A velha incompetência e a prepotência que caracterizam as autoridades brasileiras de um modo geral assim decidiram. Casos como os de pessoas que estão a pé ou de automóvel ao alcance da polícia, ou até dentro de casa, e são atingidas por tiros, morrem, tornam-se quase diários, principalmente na jurisdição de Sérgio Cabral. Em vez de melhorar a qualidade da polícia fluminense, ele optou pelo confronto indiscriminado nas ruas, executado por agentes geralmente despreparados. Há poucos dias, as conseqüências da Doutrina Cabral chegaram ao Recife. Vítima inocente da polícia não é novidade por aqui e pelo Brasil afora. Mas é especial o caso de Maria Eduarda, 9 anos, baleada e morta na Várzea, em ação de policiais da Companhia Independente de Policiamento com Motos (CIPMotos).
Conforme as pessoas que estavam no carro baleado e várias testemunhas, inclusive um menor assaltante que se refugiou-se no carro das vítimas, a família saía de uma festa quando foi surpreendida por assaltantes e, em seguida, por policiais que já chegaram atirando. Sete pessoas estavam no carro, cinco eram crianças. “Foi uma ação desastrosa. A polícia foi imprudente. Não analisou a situação e não tinha treinamento. Os policiais atiraram numa altura que era para alcançar quem estava dentro do carro. Tanto que Maria Eduarda foi atingida no abdome”, disse o engenheiro Márcio Malveira, motorista do carro atingido. Ele disse ainda que os PMs estavam à porta do local da festa onde parou alguns instante e viram que o carro dele estava cheio de crianças.
Feito o estrago, ceifada uma vida em botão para desespero de pais e familiares da menina, o chefe do Estado Maior da PMPE, coronel Daniel Ferreira, lembrou-se de que o curso de capacitação para os PMs lotados em batalhões responsáveis pelo policiamento do Grande Recife é deficiente. Já o secretário de Defesa Social, Servilho Paiva, garantiu que os PMs da CIPMotos passaram por treinamento de capacitação em técnicas de abordagem este ano.
Depois ele fez uma consideração estranha de que o policial nunca estará totalmente preparado “porque os bandidos estão sempre mudando as formas de abordar as vítimas”. Teriam os PMs de aprender técnicas de abordagem com os bandidos? O secretário não concorda com as críticas feitas pela imprensa à PMPE, apontada como despreparada. Ele acha que trata-se de um “fato isolado”. Mas fatos isolados assim se repetem sempre e fica tudo por isso mesmo, pois as vítimas são geralmente pobres e moram em lugares onde a polícia já chega derrubando portas e atirando a qualquer hora.
Fatos como o que estamos tratando e as circunstâncias e impunidade que os cercam tiram a confiança da sociedade na lei, na democracia, nas autoridades. O pai da criança morta disse que não vai acionar o Estado porque não adianta. Os dois policiais envolvidos no caso foram deslocados para funções burocráticas. Os superiores passam a mão na cabeça de subordinados que assim agem, pois sabem que eles são mal treinados e mal pagos, e sabem também que nada vai mudar e, se punissem e afastassem policiais que assim agem, sobraria muito pouca gente nas corporações.
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