quarta-feira, 6 de agosto de 2008

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Nas Entrelinhas
DIÁLOGOS ENTRE A CRUZ E A ESPADA
Luiz Carlos Azedo


O diálogo com os militares sobre a abertura dos arquivos da repressão e os desaparecidos no regime militar não é uma missão impossível desde que sem revanchismo e no contexto de uma nova política de defesa que valorize as Forças Armadas

Os seqüestros, torturas e assassinatos de oposicionistas por órgãos de segurança do regime militar são um tema da transição à democracia que, lamentavelmente, 20 anos depois da Constituinte, ainda não tem um ponto final. Não resta dúvida de que o debate sobre o assunto foi reaberto da pior forma possível pelo ministro da Justiça, Tarso Genro. Seus colegas de Esplanada não sabem o que passou pela cabeça do ministro ao fazê-lo. Uns acham que ele tentou torpedear a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, uma ex-guerrilheira. Outros, que o ministro apenas falou o que não deveria para agradar uma platéia de militantes do movimento de defesa dos direitos humanos. Em qualquer hipótese, meteu os pés pelas mãos, apesar de certa simpatia da opinião pública à tese de que ex-torturadores devem ser punidos, como no Chile e na Argentina.

O problema

A exegese (interpretação crítica de textos e palavras) da Lei da Anistia é uma prerrogativa do Judiciário. Cabe ao Executivo, principalmente ao Ministério da Justiça, cumprir seus dispositivos. É atribuição do Supremo Tribunal Federal (STF), se provocado, pôr um ponto final nessa polêmica jurídica. Mas não houve ainda um pronunciamento oficial do governo sobre o tema, apesar das declarações categóricas do ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que a Lei da Anistia é um assunto resolvido. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa prosperar a polêmica, que esgarça as relações com os militares.

Na verdade, o problema do governo não é a Lei da Anistia, é a abertura dos arquivos das Forças Armadas e do Itamaraty, que têm muitos esqueletos guardados desde a Guerra do Paraguai e a Conquista do Acre. Esses arquivos continuam inacessíveis porque se teme que os dois países vizinhos reivindiquem reparações, inclusive territoriais. Se não há transparência sobre esses dois vetustos assuntos, por que haveria sobre o paradeiro dos corpos dos oposicionistas mortos na tortura? Se os arquivos foram incinerados, como alegam os comandantes militares, cadê a ordem para fazê-lo? Quem assinou? Qualquer funcionário público sabe que ninguém elimina documentos oficiais sem ordem por escrito, que dirá um oficial das Forças Armadas.

O desafio

O caso dos desaparecidos é imorredouro porque seus descendentes estão vivos e guardam um luto que não acabará enquanto o paradeiro de seus corpos não for esclarecido. Não é a dor física das torturas, é a dor visceral de uma mãe ou de um filho que não pôde enterrar seu ente querido, de uma viúva ou dos netos que não podem ir ao cemitério e chorar no Dia de Finados. Abrir os arquivos e entregar os restos mortais dos desaparecidos às suas famílias, simbolicamente, encerra o assunto. A discussão sobre a revisão da Lei de Anistia, na prática, é um obstáculo a isso. A tortura nos cárceres da ditadura era de conhecimento do Alto Comando das Forças Armadas e há uma cadeia de solidariedade que, ainda hoje, protege os agentes dos órgãos de repressão envolvidos com a tortura. É nesse aspecto que o debate aberto por Genro foi inoportuno e desastrado.

O diálogo com os militares sobre os arquivos da repressão e os desaparecidos no regime militar não é uma missão impossível desde que sem revanchismo e no contexto de uma nova política de defesa que valorize as Forças Armadas. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, trabalha nessa direção. Recentemente, produziu um texto importante para o reposicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na agenda nacional. Vale lembrar as negociações entre os militares e o alto clero da Igreja Católica brasileira no auge da repressão à luta armada, durante o governo Médici. São descritas no livro “Diálogos na sombra — bispos e militares, tortura e justiça social”, do historiador norte-americano Kenneth P. Serbin, da Universidade de San Diego (EUA).

Secretamente, oficiais das Forças Armadas e bispos da Igreja Católica, entre 1970 e 1974, numa Comissão Bipartite chefiada pelo general Antônio Carlos Murici e pelo cardeal dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, trabalharam intensamente para evitar o sumiço de presos políticos e combater a tortura nos quartéis. Graças à comissão, muitas mortes foram evitadas. E foi esclarecido o caso de quatro soldados que foram torturados até a morte por oficiais do Exército, em janeiro de 1972, em Barra Mansa. Os jovens não eram “subversivos”, e os criminosos foram condenados em janeiro de 1973 pela própria Justiça Militar.

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