ENCONTRO COM O TEMPO
Alberto Dines
Na altíssima morada dos deuses, o Olimpo, reina a felicidade e a concórdia. Em busca de ambas, abaixo, os jogos olímpicos pretendiam uma trégua entre as aguerridas cidades-estado da Grécia.
De quatro em quatro anos, a cada inauguração da maior festa desportiva mundial, ocorre uma salutar aproximação entre a antiguidade e a modernidade. Enquanto os atletas preocupam-se com a imortalidade através da conquista de coroas de louro – hoje medalhas de ouro – nos intervalos entre as provas, os comuns mortais descortinam um percurso iniciado provavelmente quinze séculos antes da Era Comum e, através dele, estabelecer fascinantes vínculos entre o passado e o presente.
O adjetivo "olímpico" pode ser aplicado indistintamente às provas desportivas como também a um tipo de comportamento, atitude moral de quem as assiste. Nas competições, o sentido olímpico é marcado pela participação absoluta, integral, enquanto que longe dos estádios, o olimpismo pressupõe eqüidistância e eqüidade, superioridade e discrição. Quanto mais olímpico for o desempenho dos envolvidos nos jogos, mais olímpica deve ser a atitude dos circunstantes.
Não pode ser desprezado o gigantesco esforço da China para apresentar-se ao mundo tal com é, sem disfarces, nação igual às outras. A fabulosa soma de recursos investidos pelo governo associada ao formidável empenho da sua população oferece um exemplo ímpar de disciplina coletiva. A China quer ser aceita, precisa ser aceita. A aura de mistério e lenda que ainda a envolve estimula falsidades e preconceitos.
Essa olímpica exibição de energia, por outro lado, nos obriga a um distanciamento crítico, também olímpico, e nos coloca diante de um passado recente (se comparado aos grandes lapsos de tempo que remontam às origens dos Jogos). Há apenas 72 anos, a Alemanha também organizou um grandioso espetáculo de determinação, na realidade monumental demonstração ao vivo do Triunfo da vontade, nome do filme que a cineasta Leni Riefensthal, havia rodado dois anos antes em Nuremberg para comemorar o Congresso do Partido Nazista (Nacional-Socialista).
Berlim foi escolhida para sediar as Olimpíadas ainda em 1931 quando a Alemanha ainda era a República de Weimar, em escombros é verdade, mas ainda uma democracia e uma constituição considerada socialmente a mais avançada. Seria uma oportunidade para mostrar que o antigo império fragorosamente derrotado na Grande Guerra treze anos antes, ameaçado por quarteladas de direita e esquerda, era capaz de ancorar uma solução européia alternativa aos EUA e à URSS. As eleições de 1932 e a inesperada chegada ao poder em 1933 ofereceram a Hitler uma vitrine para exibir o seu demoníaco poder três anos depois.
Joseph Goebbels, não era apenas o comissário da propaganda e da cultura, era um diabólico estrategista político encarregado de preparar a Alemanha para ser vista durante os Jogos Olímpicos como exemplo de convivência e harmonia. As milícias paramilitares foram recolhidas, a Gestapo desapareceu, os judeus deixaram de ser espancados nas ruas, disfarçada foi a repressão contra os social-democratas e comunistas.
O mundo viu a Alemanha em 1936 como um país asseado, organizado, sadio, alegre, aparentemente próspero, disposto à convivência. A suástica negra rodeada de vermelho, naquela época era apenas uma estranha logomarca. Impossível conceber que aquela cruz-quebrada, kitsch, de mau-gosto, seria imediatamente convertida em ícone universal do horror. O resto do filme já é conhecido: invasão dos Sudetos, anexação da Áustria, Kristallnacht (Noite dos Cristais, ensaio de furor para os campos de extermínios), o esmagamento da Polônia.
Os dirigentes chineses conhecem a história do mundo (o país, de certa forma, é uma vítima desta história) e resolveram avançar na abertura política. Goebbels não é mais necessário, o formidável crescimento do país dispensa as velhas técnicas de propaganda e persuasão.
Mas os 36 mil jornalistas estrangeiros acantonados em Pequim não foram apenas para acompanhar as competições. Querem ver, conferir, o mundo hoje, felizmente, é mais exigente do que em 1936.
Aprendeu a desconfiar. A China aceitou todos os riscos olímpicos. Resta saber se saberá examinar os resultados da sua ousadia para as necessárias correções. Olimpicamente.
» Alberto Dines é jornalista.
Alberto Dines
Na altíssima morada dos deuses, o Olimpo, reina a felicidade e a concórdia. Em busca de ambas, abaixo, os jogos olímpicos pretendiam uma trégua entre as aguerridas cidades-estado da Grécia.
De quatro em quatro anos, a cada inauguração da maior festa desportiva mundial, ocorre uma salutar aproximação entre a antiguidade e a modernidade. Enquanto os atletas preocupam-se com a imortalidade através da conquista de coroas de louro – hoje medalhas de ouro – nos intervalos entre as provas, os comuns mortais descortinam um percurso iniciado provavelmente quinze séculos antes da Era Comum e, através dele, estabelecer fascinantes vínculos entre o passado e o presente.
O adjetivo "olímpico" pode ser aplicado indistintamente às provas desportivas como também a um tipo de comportamento, atitude moral de quem as assiste. Nas competições, o sentido olímpico é marcado pela participação absoluta, integral, enquanto que longe dos estádios, o olimpismo pressupõe eqüidistância e eqüidade, superioridade e discrição. Quanto mais olímpico for o desempenho dos envolvidos nos jogos, mais olímpica deve ser a atitude dos circunstantes.
Não pode ser desprezado o gigantesco esforço da China para apresentar-se ao mundo tal com é, sem disfarces, nação igual às outras. A fabulosa soma de recursos investidos pelo governo associada ao formidável empenho da sua população oferece um exemplo ímpar de disciplina coletiva. A China quer ser aceita, precisa ser aceita. A aura de mistério e lenda que ainda a envolve estimula falsidades e preconceitos.
Essa olímpica exibição de energia, por outro lado, nos obriga a um distanciamento crítico, também olímpico, e nos coloca diante de um passado recente (se comparado aos grandes lapsos de tempo que remontam às origens dos Jogos). Há apenas 72 anos, a Alemanha também organizou um grandioso espetáculo de determinação, na realidade monumental demonstração ao vivo do Triunfo da vontade, nome do filme que a cineasta Leni Riefensthal, havia rodado dois anos antes em Nuremberg para comemorar o Congresso do Partido Nazista (Nacional-Socialista).
Berlim foi escolhida para sediar as Olimpíadas ainda em 1931 quando a Alemanha ainda era a República de Weimar, em escombros é verdade, mas ainda uma democracia e uma constituição considerada socialmente a mais avançada. Seria uma oportunidade para mostrar que o antigo império fragorosamente derrotado na Grande Guerra treze anos antes, ameaçado por quarteladas de direita e esquerda, era capaz de ancorar uma solução européia alternativa aos EUA e à URSS. As eleições de 1932 e a inesperada chegada ao poder em 1933 ofereceram a Hitler uma vitrine para exibir o seu demoníaco poder três anos depois.
Joseph Goebbels, não era apenas o comissário da propaganda e da cultura, era um diabólico estrategista político encarregado de preparar a Alemanha para ser vista durante os Jogos Olímpicos como exemplo de convivência e harmonia. As milícias paramilitares foram recolhidas, a Gestapo desapareceu, os judeus deixaram de ser espancados nas ruas, disfarçada foi a repressão contra os social-democratas e comunistas.
O mundo viu a Alemanha em 1936 como um país asseado, organizado, sadio, alegre, aparentemente próspero, disposto à convivência. A suástica negra rodeada de vermelho, naquela época era apenas uma estranha logomarca. Impossível conceber que aquela cruz-quebrada, kitsch, de mau-gosto, seria imediatamente convertida em ícone universal do horror. O resto do filme já é conhecido: invasão dos Sudetos, anexação da Áustria, Kristallnacht (Noite dos Cristais, ensaio de furor para os campos de extermínios), o esmagamento da Polônia.
Os dirigentes chineses conhecem a história do mundo (o país, de certa forma, é uma vítima desta história) e resolveram avançar na abertura política. Goebbels não é mais necessário, o formidável crescimento do país dispensa as velhas técnicas de propaganda e persuasão.
Mas os 36 mil jornalistas estrangeiros acantonados em Pequim não foram apenas para acompanhar as competições. Querem ver, conferir, o mundo hoje, felizmente, é mais exigente do que em 1936.
Aprendeu a desconfiar. A China aceitou todos os riscos olímpicos. Resta saber se saberá examinar os resultados da sua ousadia para as necessárias correções. Olimpicamente.
» Alberto Dines é jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário