domingo, 10 de agosto de 2008

DEU NO JORNAL DO BRASIL / IDÉAIS

TERCEIRA VIA COM AÇÚCAR E SEM AFETO
Rodrigo de Almeida

Em `O que a esquerda deve propor", Mangabeira Unger busca alternativas radicais

"O mundo sofre, hoje, sob a ditadura da falta de alternativas", escreve o professor Roberto Mangabeira Unger, na primeira linha do livro que acaba de lançar pela editora Civilização Brasileira, O que a esquerda deve propor. Repete a frase, com sutis variações, o intelectual sentado à mesa de ministro de Assuntos Estratégicos, em Brasília, na primeira resposta ao repórter. ­ Ao mesmo tempo em que está sob o jugo de uma ditadura, o mundo está inquieto, em busca de alternativas ­- insiste ele.

Esgotadas todas as aventuras ideológicas do século 20, Mangabeira acha que o repertório das alternativas disponíveis à humanidade fez água. Ficou estreito demais para o tamanho e a profundidade das mazelas e dificuldades do presente. Os problemas das sociedades contemporâneas tornaram-se insolúveis se corrigidos dentro dos limites desse repertório. ­ É preciso ampliar, até mesmo radicalmente, as alternativas institucionais disponíveis ­ sugere, ao falar de um dos temas centrais do livro e de sua vasta obra teórica.

Sua nova publicação é, na verdade, um livro-manifesto publicado originalmente em inglês, em 2005: What should the left propose? Nele, põe o dedo em riste com mais ênfase em direção aos teóricos e governos de esquerda. "Os autodeclarados progressistas aparecem no palco da história contemporânea como humanizadores do inevitável: seu programa tornou-se o programa de seus adversários conservadores, com um pequeno desconto", escreve, para arrematar em seguida: "Disfarçam a rendição como síntese ­ de coesão social e flexibilidade econômica, por exemplo. Suas `terceiras vias" são a primeira via com açúcar: o adoçante da política social compensatória e da seguridade social, substituindo a ampliação fundamental de oportunidades".

Parece referir-se indiretamente ao próprio governo do qual faz parte, mas se dirige, em particular, à social-democracia que encantou a Europa na primeira metade do século passado e se tornou o mais do mesmo adiante. ­

A social-democracia resultou de um compromisso. As forças que lutavam por uma reconstrução institucional da economia e do Estado abandonaram essa luta. Em troca desse abandono, conseguiram que o Estado conquistasse uma posição forte no domínio da distribuição ou redistribuição da riqueza. Ocorre que, mesmo nas sociedades mais ricas, os problemas fundamentais não podem ser equacionados nos limites do compromisso histórico.

O resultado, diz ele, é o distanciamento de três mundos: o dos setores avançados da produção e do conhecimento; o mundo das indústrias tradicionais, da produção em larga escala de bens e serviços padronizados; e o mundo dos imigrantes, dos pobres, dos empreendimentos descapitalizados e desqualificados. ­

-O Estado trata de aplacar os problemas pela prestação de serviços sociais ­ afirma Mangabeira. ­ O problema é que essa violenta segmentação hierárquica da sociedade, resultante da separação desses três mundos, não pode ser revertida, ou nem sequer controlada, por políticas meramente distribuidoras.

Conclusão: é preciso encontrar uma maneira de espalhar o acesso do primeiro mundo ­ os setores avançados da produção e do conhecimento ­ a uma parcela maior das sociedades. E o caminho, sugere, passa longe da via escolhida até aqui. ­ A redistribuição compensatória por políticas de transferências pode tirar as pessoas da miséria, mas não pode reverter a segmentação hierárquica. É uma luta de Sísifo contra forças estruturais.

Mangabeira, portanto, ignora ou reduz o impacto de programas como o Bolsa Família, que tem feito diferença na mudança da pirâmide social do Brasil nos últimos anos. Falta, segundo suas palavras, "rebeldia imaginativa": ­ Temos toda a razão para nos associarmos à rebeldia imaginativa. E temos seguido o caminho oposto: o do conformismo intelectual. Mangabeira parece hoje confortável na condição de ministro. Comanda um dos mais relevantes projetos do governo do presidente Lula, o Plano Amazônia Sustentável, não sem passar por uma ruidosa queda-de-braço com o Ministério do Meio Ambiente, guerra fria que se tornou, entre outras coisas, a pá de cal para a saída de Marina Silva do governo.

Sua missão oficial é conduzir a discussão e a elaboração de projetos de longo prazo, destino que logo permitiu a detratores, críticos e céticos em geral o apelidarem de "ministro do futuro" ­ no mau sentido. Esquiva-se, porém, das polêmicas de governo.

Se o repertório institucional disponível é estreito, se falta imaginação criadora, se a inclusão social prometida é meramente acessória e não transformadora, a trilha sugerida em O que a esquerda deve propor é o que Mangabeira chama de "agenda de reconstrução das instituições e das consciências": mudanças na forma de organização do Estado, da política democrática e da economia de mercado.

A esquerda entre o utópico e o trivial

De que esquerda falamos?

­Podemos identificar três es- querdas. Duas constituídas e a terceira lutando para nascer. Uma esquerda rejeita o mercado e a globalização, mas não sabe o que pôr no lugar. Tenta desacelerar o movimento em direção a eles para manter as prerrogativas de sua base histórica ­ o operariado e a classe média ­ encastelada na indústria fordista. O problema é que essa base histórica é cada vez menor. Uma segunda esquerda abraça o mercado e a globalização e procura humanizá-los, sobretudo por meio de políticas de transferência da renda e da riqueza. Corta a ligação com a base histórica e se dirige à sociedade em geral. Mas não tem uma mensagem, não se distingue das outras forças políticas.

E a terceira?

Seria uma esquerda que insiste na agenda da reconstrução das instituições e das consciências. Procuraria, em primeiro lugar, ampliar o repertório das alternativas, sobretudo das alternativas institucionais, as maneiras diferentes de organizar o Estado, a política democrática, a economia de mercado. Não trataria a igualdade como um objetivo supremo. Essa que estou chamando de esquerda que luta para nascer teria como objetivo orientador o engrandecimento e a capacitação das pessoas comuns, a elevação da vida cotidiana dos homens e mulheres comuns a um nível mais alto de intensidade e capacitação. E o igualitarismo, a diminuição das desigualdades, é um instrumento acessório. Não é o verdadeiro objetivo.

Tem outra base?

Não se aferra às bases sociais da esquerda histórica. O maior erro estratégico da esquerda ocidental no curso dos dois séculos foi eleger a pequena burguesia como sua inimiga. E essa mesma burguesia veio a ser a base dos grandes movimentos de direita nos últimos dois séculos. Hoje, no mundo todo, há mais pequenos burgueses do que proletários industriais. E se definirmos pequena burguesia de maneira subjetiva ­ a aspiração para um grau modesto de independência e prosperidade ­ a vasta parcela da humanidade tem um horizonte pequeno burguês.

No livro o sr. critica o vínculo entre mudança e crise. Como rompê-lo?

As sociedades modernas e os Estados modernos estão organizados de maneira que ainda faz a mudança depender da crise. Todas as sociedades tiveram suas transformações movidas por traumas das guerras e dos colapsos econômicos. Uma tarefa é diminuir essa necessidade. É preciso reorganizar institucionalmente a democracia. São necessárias instituições que elevem de forma organizada o nível de engajamento político, arranjos institucionais que resolvam rapidamente os impasses entre os Poderes, o aprofundamento do regime federativo, práticas que assegurem aos cidadãos o mínimo de direitos e oportunidades e uma combinação de democracia representativa com democracia participativa. Isso reduziria esse vínculo.

Muitos dos seus livros insistem no problema das alternativas. Por que a insistência?

Esse livro é a manifestação de um projeto intelectual maior. Um traço da minha obra é a imaginação das alternativas. Não sabemos argumentar programaticamente. Quando uma pessoa propõe algo muito distante do que existe, as pessoas dizem: "É interessante mas utópico". E quando propõe algo próximo do que existe, as pessoas dizem: "É viável mas trivial". Tudo o que se propõe parece utópico ou trivial. Na falta de uma visão crível da transformação estrutural, acabamos nos fiando num critério abastardo de realismo político. Minha obra é um esforço para sair dessa condição.

* O que a esquerda deve propor – Roberto Mangabeira Unger. Tradução de Antônio Risério Leite Filho. 192 páginas R$ 29,00

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