domingo, 10 de agosto de 2008

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


ALGEMAS E “FICHAS-SUJAS”
Luiz Carlos Azedo


Resta o problema dos “grampos” ilegais. No ano passado, mais de 400 mil linhas telefônicas foram grampeadas, ou seja, no mínimo 800 mil pessoas foram bisbilhotadas.

O Brasil não tem uma tradição de Justiça popular, de forte influência anglo-saxônica, como a Inglaterra e os Estados Unidos. Aqui, como na França, o peso das instituições romanas fez do Judiciário um poder iluminista. Nossas tradições lusitanas se encarregaram de dar aos nossos tribunais uma imagem elitista, pachorrenta e vetusta, sem falar no patrimonialismo de alguns magistrados. Por isso mesmo, ações intempestivas e abusivas de alguns delegados federais, procuradores da República e juízes federais contra “crimes de colarinho branco” e políticos “fichas-sujas” têm a simpatia da opinião pública. Ainda que atropelem direitos e garantias individuais e outros dispositivos da Constituição, deixam o Supremo Tribunal Federal (STF) numa “saia-justa”.

Jovens turcos

Esses “jovens turcos” ocupam um papel que durante décadas foi exercido por militares de origem “tenentista”. Querem a moralização dos costumes políticos e as reformas institucionais por uma via meio “prussiana”, a matriz histórica do “golpismo” republicano. Melhor assim: o “prendo e arrebento” de origem civil acaba quando o STF e outras instâncias superiores da Justiça entram em campo, com seus habeas-corpus, liminares e sentenças em favor de quem teve seus direitos e garantias individuais desrespeitados. Ou seja, quando a ordem democrática regida pela Constituição de 1988 funciona em sua plenitude para evitar o surgimento de um Estado policial.

Duas recentes decisões do Supremo ilustram bem a questão. Em ambas, sem ceder às pressões da opinião pública, a mais alta Corte do país pautou suas decisões pela letra da Constituição, o que o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, chamou de “pedagogia dos direitos fundamentais”. Primeiro, por nove votos a dois, na terça-feira, ratificou o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que ninguém pode ser privado do direito de disputar uma eleição enquanto não for inapelavelmente condenado. Segundo, por unanimidade, na quarta-feira, limitou o uso legítimo de algemas no cumprimento de mandado de prisão e em circunstâncias posteriores, como julgamento, por exemplo.

Duas lições

O STF resistiu às pressões de tribunais regionais e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para banir da política os “fichas-sujas”, negando registro às candidaturas dos políticos que respondem a processos civis e criminais em qualquer esfera do sistema judicial. Segundo a AMB, 80% da população apóiam a “limpeza ética”, o que faz da decisão do STF um ato muito impopular. Os ministros do STF conhecem o Judiciário de cima a baixo, sabem como a banda toca em matéria de disputas políticas regionais, inclusive no Ministério Público. Qual a premissa da decisão? A de que não consta na Lei de Inelegibilidades nenhum dispositivo que proíba um cidadão processado de ser candidato, enquanto o seu caso não transitou em julgado. Portanto, só há duas saídas para banir “fichas-sujas” da política: uma é mudar a lei no Congresso, o que é mais ou menos como falar de corda em casa de enforcado; a outra, o povo não votar no político processado, o que parece ser a solução mais simples e rápida.

A segunda decisão se deu em razão do uso abusivo de algemas. A discussão começou com as prisões do banqueiro Daniel Dantas, do megainvestidor Naji Nahas e do ex-prefeito paulistano Celso Pitta, que foram algemados. No caso de Dantas, houve uma queda de braço entre o presidente do STF e um juiz federal, que mandou prender o banqueiro novamente, praticamente invalidando o primeiro habeas corpus. Mendes teve que assumir o desgaste de mandar soltá-lo pela segunda vez. Por essa razão, talvez, a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha sido ainda mais emblemática: anulou o julgamento de um pedreiro acusado de homicídio, porque ele foi algemado no tribunal de júri, o que teria — segundo a defesa — influenciado a decisão dos jurados de condená-lo a 13 anos e meio de prisão. O recado foi dado: o uso abusivo de algemas pode comprometer o processo. A humilhação do preso pode ser usada pela defesa para anular depoimentos ou sentenças. Isso vale para ricos e pobres, segundo o STF.

A propósito, resta o problema dos “grampos” ilegais. No ano passado, mais de 400 mil linhas telefônicas foram grampeadas, ou seja, no mínimo 800 mil pessoas foram bisbilhotadas. Telefones fixos, celulares e computadores perderam a privacidade. O “Guardião”, sistema que rastreia centenas de ligações simultaneamente, não discrimina suspeitos de outros cidadãos. Nem mesmo o chefe de gabinete do Presidente da República.

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