OS CHEFES DO TORTURADOR
Fábio Wanderley Reis
É famosa a manifestação de Pedro Aleixo a propósito do AI-5, retomando velha idéia e declarando que o motivo de preocupação era o uso que faria dos poderes arbitrários não o presidente da República, mas o guarda da esquina. É indicativo dos problemas atuais do Judiciário brasileiro o fato de que essa manifestação, opondo o guarda da esquina à figura do ditador (embora, naturalmente, essa não fosse a linguagem de Pedro Aleixo), venha sendo evocada, como em editorial recente do jornal "O Estado de S. Paulo", a propósito das relações das altas cortes de Justiça com juízes de primeira instância: se fizesse sentido ver estes últimos como instrumento de poderes ditadoriais, acabaríamos tendo, ao contrário do que pretende o jornal, um argumento em favor da independência dos juízes.
Mas a contraposição entre o ditador e o guarda da esquina é aplicada de maneira também confusa na discussão sobre a punição aos torturadores do regime de 1964. A defesa da punição se baseia na idéia de que, em vez de crime político, trata-se de crime comum, definido como tal na própria legislação em vigor durante o regime, e além do mais hediondo, inafiançável etc. Deslocando assim o problema para o terreno de tecnicismos jurídicos, a posição deixa de lado algo essencial: a relação do torturador (o "guarda da esquina" que comete abusos e violências) com seu chefe, o ditador.
Não há dúvida quanto ao caráter odioso do crime de tortura (que, de passagem, continua a ser prática corriqueira em nosso sistema prisional, lastreado, ademais, como mostram com clareza as pesquisas, em difundido desapreço pelos direitos civis na opinião pública do país), bem como de outros crimes de agentes do Estado que marcaram a ditadura. Mas sem ter havido qualquer empenho de trazer ao banco dos réus o ditador (ou os chefes maiores da ditadura, os ex-ditadores e seus colaboradores de alto nível), não cabe esquecer a banalidade de que o que define a ditadura é justamente a ruptura da vigência efetiva do quadro institucional-legal - e que essa ruptura torna irrelevante que em algum desvão da copiosa legislação escrita do país a tortura, como o assassinato e o que mais seja, tenha estado definida como crime. A ditadura instaura o vale-tudo e a violência e abre espaço e estimula tipos variados de comportamento sinistro, incluído o de assassinos e torturadores, que, na verdade, como destacava Elio Gaspari na "Folha de S.Paulo" há alguns dias, cumpriam determinações de seus superiores. Nessa perspectiva, é mesmo preciso apontar o que há de acomodatício e inaceitável na frase de Pedro Aleixo, furtando-se a confrontar o ditador que toma a iniciativa do AI-5 e é o grande responsável pelas feiúras correlatas. Ironicamente, o destino posterior do próprio Pedro Aleixo é prova adicional da irrelevância de qualquer aspecto dos dispositivos institucional-legais.
Poupar os chefes e punir os sabujos?
O que temos, em outras palavras, é luta política em forma nua e crua, que desbordava o quadro legal do ponto de vista tanto de certa esquerda e suas aspirações e disposições quanto da reação golpista e violenta da direita e dos militares (de maneira em boa medida independente, vale acrescentar, do grau em que haveria, de parte a parte, apego generoso a valores e ideais ou motivação ignóbil). A grande indagação refere-se às razões de que a luta política pudesse assumir essa forma - e a resposta se encontra, por certo, justamente na debilidade das instituições, que não são ajudadas pela adesão vigorosa e autocomplacente de grupos diversos a valores contrastantes. A questão agora é como construir instituições, como melhor transitar para um marco de democracia institucional real, isto é, de instituições que possam de fato enquadrar formalmente a luta política e regulá-la de modo efetivo e estável.
Nas análises de ciência política sobre os processos de transição à democracia, tendia-se a convergir no reconhecimento da necessidade de um realismo capaz de viabilizar compromissos e de permitir avançar além do mero jogo bruto de força física. Até que ponto seguirá valendo a recomendação de realismo, especialmente com relação aos militares, protagonistas decisivos daquele jogo? Nos debates latino-americanos de algum tempo atrás, o realismo assumiu, às vezes, a forma curiosa de simplesmente se fazer caso omisso da interferência militar, ou da presença mesmo legal das forças armadas como ator político, na avaliação das vicissitudes e perspectivas da democracia em diferentes países. Na atualidade brasileira, a pergunta é antes a de até que ponto não estaremos sendo (não estarão sendo os governos) mais realistas do que o rei: será verdadeira a força da ameaça latente de turbulência militar significativa na vida política do país que o pressuroso empenho de acomodação governamental parece contemplar?
Creio que, em nome da construção institucional, é bom esquecer os crimes (autênticos) e os enfrentamentos do passado. Mas não vejo razão para que, diante da postura desafiante adotada pela corporação militar em todas as ocasiões em que sua própria perspectiva a respeito lhe parece questionada, o governo haja como se os militares fossem de fato o poder autônomo e de inclinação hostil que transparecia na declaração do almirante Mário César Flores, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Itamar Franco, no já longínquo ano de 1994: o regime civil brasileiro de hoje, dizia ele no Fórum Nacional, não deve ser visto como a "rendição incondicional" das forças armadas, mas apenas como um "armistício"...
Num mundo mudado, nossa democracia passa com êxito, quase cumpridos dois mandatos institucionalmente tranquilos de Lula e do PT na Presidência, por seu teste crucial. Já é tempo de acabar com o fantasma militar.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Fábio Wanderley Reis
É famosa a manifestação de Pedro Aleixo a propósito do AI-5, retomando velha idéia e declarando que o motivo de preocupação era o uso que faria dos poderes arbitrários não o presidente da República, mas o guarda da esquina. É indicativo dos problemas atuais do Judiciário brasileiro o fato de que essa manifestação, opondo o guarda da esquina à figura do ditador (embora, naturalmente, essa não fosse a linguagem de Pedro Aleixo), venha sendo evocada, como em editorial recente do jornal "O Estado de S. Paulo", a propósito das relações das altas cortes de Justiça com juízes de primeira instância: se fizesse sentido ver estes últimos como instrumento de poderes ditadoriais, acabaríamos tendo, ao contrário do que pretende o jornal, um argumento em favor da independência dos juízes.
Mas a contraposição entre o ditador e o guarda da esquina é aplicada de maneira também confusa na discussão sobre a punição aos torturadores do regime de 1964. A defesa da punição se baseia na idéia de que, em vez de crime político, trata-se de crime comum, definido como tal na própria legislação em vigor durante o regime, e além do mais hediondo, inafiançável etc. Deslocando assim o problema para o terreno de tecnicismos jurídicos, a posição deixa de lado algo essencial: a relação do torturador (o "guarda da esquina" que comete abusos e violências) com seu chefe, o ditador.
Não há dúvida quanto ao caráter odioso do crime de tortura (que, de passagem, continua a ser prática corriqueira em nosso sistema prisional, lastreado, ademais, como mostram com clareza as pesquisas, em difundido desapreço pelos direitos civis na opinião pública do país), bem como de outros crimes de agentes do Estado que marcaram a ditadura. Mas sem ter havido qualquer empenho de trazer ao banco dos réus o ditador (ou os chefes maiores da ditadura, os ex-ditadores e seus colaboradores de alto nível), não cabe esquecer a banalidade de que o que define a ditadura é justamente a ruptura da vigência efetiva do quadro institucional-legal - e que essa ruptura torna irrelevante que em algum desvão da copiosa legislação escrita do país a tortura, como o assassinato e o que mais seja, tenha estado definida como crime. A ditadura instaura o vale-tudo e a violência e abre espaço e estimula tipos variados de comportamento sinistro, incluído o de assassinos e torturadores, que, na verdade, como destacava Elio Gaspari na "Folha de S.Paulo" há alguns dias, cumpriam determinações de seus superiores. Nessa perspectiva, é mesmo preciso apontar o que há de acomodatício e inaceitável na frase de Pedro Aleixo, furtando-se a confrontar o ditador que toma a iniciativa do AI-5 e é o grande responsável pelas feiúras correlatas. Ironicamente, o destino posterior do próprio Pedro Aleixo é prova adicional da irrelevância de qualquer aspecto dos dispositivos institucional-legais.
Poupar os chefes e punir os sabujos?
O que temos, em outras palavras, é luta política em forma nua e crua, que desbordava o quadro legal do ponto de vista tanto de certa esquerda e suas aspirações e disposições quanto da reação golpista e violenta da direita e dos militares (de maneira em boa medida independente, vale acrescentar, do grau em que haveria, de parte a parte, apego generoso a valores e ideais ou motivação ignóbil). A grande indagação refere-se às razões de que a luta política pudesse assumir essa forma - e a resposta se encontra, por certo, justamente na debilidade das instituições, que não são ajudadas pela adesão vigorosa e autocomplacente de grupos diversos a valores contrastantes. A questão agora é como construir instituições, como melhor transitar para um marco de democracia institucional real, isto é, de instituições que possam de fato enquadrar formalmente a luta política e regulá-la de modo efetivo e estável.
Nas análises de ciência política sobre os processos de transição à democracia, tendia-se a convergir no reconhecimento da necessidade de um realismo capaz de viabilizar compromissos e de permitir avançar além do mero jogo bruto de força física. Até que ponto seguirá valendo a recomendação de realismo, especialmente com relação aos militares, protagonistas decisivos daquele jogo? Nos debates latino-americanos de algum tempo atrás, o realismo assumiu, às vezes, a forma curiosa de simplesmente se fazer caso omisso da interferência militar, ou da presença mesmo legal das forças armadas como ator político, na avaliação das vicissitudes e perspectivas da democracia em diferentes países. Na atualidade brasileira, a pergunta é antes a de até que ponto não estaremos sendo (não estarão sendo os governos) mais realistas do que o rei: será verdadeira a força da ameaça latente de turbulência militar significativa na vida política do país que o pressuroso empenho de acomodação governamental parece contemplar?
Creio que, em nome da construção institucional, é bom esquecer os crimes (autênticos) e os enfrentamentos do passado. Mas não vejo razão para que, diante da postura desafiante adotada pela corporação militar em todas as ocasiões em que sua própria perspectiva a respeito lhe parece questionada, o governo haja como se os militares fossem de fato o poder autônomo e de inclinação hostil que transparecia na declaração do almirante Mário César Flores, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Itamar Franco, no já longínquo ano de 1994: o regime civil brasileiro de hoje, dizia ele no Fórum Nacional, não deve ser visto como a "rendição incondicional" das forças armadas, mas apenas como um "armistício"...
Num mundo mudado, nossa democracia passa com êxito, quase cumpridos dois mandatos institucionalmente tranquilos de Lula e do PT na Presidência, por seu teste crucial. Já é tempo de acabar com o fantasma militar.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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