José de Souza Martlns*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Publicado em 21/9/2008
À falta de uma utopia fundadora da identidade nacional, a Bolívia unificou-se à força e importou o colonialismo.
É velha história a de que a Bolívia é um país inviável. Produto histórico de uma colagem política que atendeu a conveniências geopolíticas e de ocasião no momento das independências latino-americanas, acabou juntando o que não se juntava anão ser pela exploração econômica, peIa opressão social e pela dominação política; Não é o único caso de países gestados por artifícios vários, tanto aqui na América Latina quanto na Europa, na Ásia e na África. O discurso sobre a inviabilidade boliviana tem a sua dose de malícia interesseira. Se as enormes diferenças lingüísticas, culturais e étnicas, tão características da Bolívia, fossem obstáculos à afirmação de um país, a Suíça não existiria. No entanto, existe, é próspêra e sólida, reunindo harmonicamente povos de quatro diferentes línguas e várias religiões. A diferença é que os suíços compartilham o credo republicano da comunhão política que unifica no respeito à diversidade.
Muitos países ditos inviáveis o são porque não encontraram a referência unificadora, a utopia fundadora de uma identidade nacional e da premissa de que o todo antecede os interesses das partes e das facções. Acabaram perdendo-se na unificação forçada das ditaduras explícitas ou dissimuladas, meio de realimentar as formas de dominação e exploração econômica que transferiu para dentro o colonialismo de fora. O desenvolvimento econômico difícil dos países latino-americanos tem sido feito à custa da interiorização dos vínculos de dominação colonial, no chamado colonialismo interno, que cimentou com base no desenvolvimento desigual as unidades nacionais _ a prosperidade de umas regiões em detrimento de outras. Portanto, desigualdades que só podem ser superadas por meio de pactos e não por meio de conflitos.
Nas décadas recentes, a dinâmica da civilização contra a barbárie, já em si equivocada, deu lugar a uma nova polarização, cujo equívoco não é menor: a do socialismo contra o capitalismo. Polarização que não leva em conta as muitas limitações históricas e insufIciências da América Latina, onde o capitalismo é, quando muito, um resíduo mal realizado desse modelo de economia e de sociedade. O próprio Marx tinha sérias dúvidas sobre a possibilidade do salto para o socialismo em sociedades de capitalismo precário.
Não obstante, o socialismo de classe média que se disseminou na América Latina ignorou tanto a teoria como a realidade regional. O limite trágico dessa orientação foi a revolução foquista e desenraizada de Che Guevara na Bolívia. Mas o foquismo continua sendo a orientação dominante das idéias e da prática de esquerda nos diferentes países da América Latina, no pressuposto de que os pobres precisam de quem os liberte, já que incapazes de libertarem-se a si mesmos e de perseguirem causas próprias.
O socialismo não encontrou na América Latina o teórico que pudesse interpretá-Ia na perspectiva dos anseios e carências de mudança emancipadora e libertadora das populações desvalidas, no marco do que são e não no marco do que não ,são. Ao contrário, o elitista socialismo latino-americano contribuiu para acentuar a conflitividade das nacionalidades inconclusas, quando muito tornando-se instrumento da nova barbárie representada por diferentes apoios, como o socialismo bolivariano, de Hugo Chávez, na Venezuela, o socialismo cocaleiro, de Evo Morales, na Bolívia, o socialismo místico dos sandinistas, na Nicarágua, e do PT e do lulismo, no Brasil. São designações que evidenciam a ausência dos fundamentos sociais apropriados para gestação de uma visão social da América Latina que seja universalista e includente, que norteie a busca de emancipação como momento do processo de confirmação das nacionalidades e de emancipação de todos e não só de alguns.
O que se passa na Bolívia e em outros países latino-americanos é a disseminação da ideologia da revanche, como se fosse equivalente de socialismo e revolução. Não o é. A mística da vingança histórica não liberta nem revoluciona. É a mera fantasia da insurgência dos oprimidos por séculos de iniqüidades, que poderiam, finalmente, refundar o Novo Mundo e refundar as raças, em que os índios se tornariam um fictício índio genérico, inventado pelo branco. Os mestiços e os negros se purificariam na ficção de um retorno a identidades que expressam despeitos brancos de hoje. Os brancos, enfim, se negariam historicamente e se libertariam deixando de ser o que são, imitando quem não são. Uma absoluta negação da diversidade própria do mundo moderno e da democracia necessária à coexistência dos diferentes.
A América Latina tem opressões e conflitos sociais e étnicos consolidados, o que torna o cenário político da região muito complicado. A ascensão política recente de governantes oriundos das populações pobres, como o proletário Lula, no Brasil, o mulato Chávez na Venezuela e o índio Evo, na Bolívia, altera o cenário profundamente. Lula, oriundo da elite operária bem paga do ABC, se compôs com o poder dominante e se distanciou de seus compromissos de origem. Chávez ascendeu por dentro da instituição militar e, portanto, por dentro de um estamento residual da velha e elitista sociedade venezuelana, que foi incapaz de promover a democracia e a distribuição de renda. Evo, mestiço, ascendeu na economia marginal da coca e do atraso que ela representa. O socialismo de discurso apenas grudou neles em busca de uma alternativa de poder sem de fato enraizar-se, injetando o sucedâneo do conflito de cIasses nos respectivos populismos. Na falta de inserção política no historicamente possível, a popularidade desses governantes apenas confirma que Evo se perde no isolamento, Chávez no confinamento da gravata e do palavrão e Lula na solidão palaciana e na bajulação da corte.
Perdem-se também as oposições, incapazes de pensar saídas políticas que não sejam mera cópia de modelos de países que não somos, porque não conseguem decifrar o clamor político da nova humanidade que na América Latina pede a palavra e pede o poder.
* José de Souza Martins é professor de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP e autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Publicado em 21/9/2008
À falta de uma utopia fundadora da identidade nacional, a Bolívia unificou-se à força e importou o colonialismo.
É velha história a de que a Bolívia é um país inviável. Produto histórico de uma colagem política que atendeu a conveniências geopolíticas e de ocasião no momento das independências latino-americanas, acabou juntando o que não se juntava anão ser pela exploração econômica, peIa opressão social e pela dominação política; Não é o único caso de países gestados por artifícios vários, tanto aqui na América Latina quanto na Europa, na Ásia e na África. O discurso sobre a inviabilidade boliviana tem a sua dose de malícia interesseira. Se as enormes diferenças lingüísticas, culturais e étnicas, tão características da Bolívia, fossem obstáculos à afirmação de um país, a Suíça não existiria. No entanto, existe, é próspêra e sólida, reunindo harmonicamente povos de quatro diferentes línguas e várias religiões. A diferença é que os suíços compartilham o credo republicano da comunhão política que unifica no respeito à diversidade.
Muitos países ditos inviáveis o são porque não encontraram a referência unificadora, a utopia fundadora de uma identidade nacional e da premissa de que o todo antecede os interesses das partes e das facções. Acabaram perdendo-se na unificação forçada das ditaduras explícitas ou dissimuladas, meio de realimentar as formas de dominação e exploração econômica que transferiu para dentro o colonialismo de fora. O desenvolvimento econômico difícil dos países latino-americanos tem sido feito à custa da interiorização dos vínculos de dominação colonial, no chamado colonialismo interno, que cimentou com base no desenvolvimento desigual as unidades nacionais _ a prosperidade de umas regiões em detrimento de outras. Portanto, desigualdades que só podem ser superadas por meio de pactos e não por meio de conflitos.
Nas décadas recentes, a dinâmica da civilização contra a barbárie, já em si equivocada, deu lugar a uma nova polarização, cujo equívoco não é menor: a do socialismo contra o capitalismo. Polarização que não leva em conta as muitas limitações históricas e insufIciências da América Latina, onde o capitalismo é, quando muito, um resíduo mal realizado desse modelo de economia e de sociedade. O próprio Marx tinha sérias dúvidas sobre a possibilidade do salto para o socialismo em sociedades de capitalismo precário.
Não obstante, o socialismo de classe média que se disseminou na América Latina ignorou tanto a teoria como a realidade regional. O limite trágico dessa orientação foi a revolução foquista e desenraizada de Che Guevara na Bolívia. Mas o foquismo continua sendo a orientação dominante das idéias e da prática de esquerda nos diferentes países da América Latina, no pressuposto de que os pobres precisam de quem os liberte, já que incapazes de libertarem-se a si mesmos e de perseguirem causas próprias.
O socialismo não encontrou na América Latina o teórico que pudesse interpretá-Ia na perspectiva dos anseios e carências de mudança emancipadora e libertadora das populações desvalidas, no marco do que são e não no marco do que não ,são. Ao contrário, o elitista socialismo latino-americano contribuiu para acentuar a conflitividade das nacionalidades inconclusas, quando muito tornando-se instrumento da nova barbárie representada por diferentes apoios, como o socialismo bolivariano, de Hugo Chávez, na Venezuela, o socialismo cocaleiro, de Evo Morales, na Bolívia, o socialismo místico dos sandinistas, na Nicarágua, e do PT e do lulismo, no Brasil. São designações que evidenciam a ausência dos fundamentos sociais apropriados para gestação de uma visão social da América Latina que seja universalista e includente, que norteie a busca de emancipação como momento do processo de confirmação das nacionalidades e de emancipação de todos e não só de alguns.
O que se passa na Bolívia e em outros países latino-americanos é a disseminação da ideologia da revanche, como se fosse equivalente de socialismo e revolução. Não o é. A mística da vingança histórica não liberta nem revoluciona. É a mera fantasia da insurgência dos oprimidos por séculos de iniqüidades, que poderiam, finalmente, refundar o Novo Mundo e refundar as raças, em que os índios se tornariam um fictício índio genérico, inventado pelo branco. Os mestiços e os negros se purificariam na ficção de um retorno a identidades que expressam despeitos brancos de hoje. Os brancos, enfim, se negariam historicamente e se libertariam deixando de ser o que são, imitando quem não são. Uma absoluta negação da diversidade própria do mundo moderno e da democracia necessária à coexistência dos diferentes.
A América Latina tem opressões e conflitos sociais e étnicos consolidados, o que torna o cenário político da região muito complicado. A ascensão política recente de governantes oriundos das populações pobres, como o proletário Lula, no Brasil, o mulato Chávez na Venezuela e o índio Evo, na Bolívia, altera o cenário profundamente. Lula, oriundo da elite operária bem paga do ABC, se compôs com o poder dominante e se distanciou de seus compromissos de origem. Chávez ascendeu por dentro da instituição militar e, portanto, por dentro de um estamento residual da velha e elitista sociedade venezuelana, que foi incapaz de promover a democracia e a distribuição de renda. Evo, mestiço, ascendeu na economia marginal da coca e do atraso que ela representa. O socialismo de discurso apenas grudou neles em busca de uma alternativa de poder sem de fato enraizar-se, injetando o sucedâneo do conflito de cIasses nos respectivos populismos. Na falta de inserção política no historicamente possível, a popularidade desses governantes apenas confirma que Evo se perde no isolamento, Chávez no confinamento da gravata e do palavrão e Lula na solidão palaciana e na bajulação da corte.
Perdem-se também as oposições, incapazes de pensar saídas políticas que não sejam mera cópia de modelos de países que não somos, porque não conseguem decifrar o clamor político da nova humanidade que na América Latina pede a palavra e pede o poder.
* José de Souza Martins é professor de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP e autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)
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